A mulata
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Aumentados com a descoberta do
Brasil os limites civilizáveis do mundo, compreendeu Jeová, do seu trono de
nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em nome da sua
glória, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele encher, porém, a
terra maravilhosa, que se mostrava tão promissora? A raça branca, que ele tanto
amava e protegia, dominava, já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço da
humanidade e dos grandes mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que
a enchiam toda, e que se haviam derramado, aventureiros, pelas ilhas
circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se lamentava da sua condição e
do seu destino, coubera a África inteira, de que se tornara senhora. Fazia-se
mister, pois, criar um tipo novo, uma raça nova e bendita, que se apropriasse
com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das ondas.
Resolvido isso, tomou o Senhor do
seu camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material, em suma, com que
trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e, misturando um pouco da
pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente igual na dosagem, de que
fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta morena e macia, em que se pôs
a modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
Concluída a obra, o estatuário
quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que pusera toda a sua
experiência de escultor inexcedível, a nova Afrodita resumia, com os seus olhos
negros, os seus cabelos crespos, as suas linhas voluptuosas e a sua pele
acentuadamente castanha, todos os encantos e todas as graças da criação.
Deslumbrado, encantado, embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a,
banhou-a com a luz dos seus olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma
ideia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um dente de
alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estátua, friccionou-lhe
pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços. Em
seguida, ordenou-lhe, recuando:
— "Surge et ambula!"
A estátua moveu-se, preguiçosa, e
com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo em que fora polida.
Jeová sorriu, de novo, e, com
orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço, dizendo-lhe, como dissera
a Constantino, na legenda sagrada:
— "In hoc signo
vinces!"
A mulata abriu os lábios num
sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um gesto, o caminho da
terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em direção ao
Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém, batia, de novo, à porta da oficina
celeste.
— Você por aqui, ainda? —
estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou os olhos,
procurando justificar-se:
— Foi impossível chegar ao meu
destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das nuvens.
— Por quê? — trovejou o Criador,
indignado.
E ela, corando, envergonhada:
— As almas dos portugueses não me
deixaram passar...
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