A morte do domador
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Cedo, muito cedo, naquele domingo de entrudo, os rapazes da freguesia e
lugarejos próximos começaram a afluir ruidosamente, em bandos, para o pasto do
Manoel Luís onde o Zé Pedro, o velho tropeiro “guasca”, pusera desta vez a
cavalhada que trouxera do sul, das estâncias de Mostardas e Santo Antônio da
Patrulha. Arrastava-os até ali esse entretenimento alegre e rústico das tropas
percorrendo os sítios pelas quadras festivas e, sobretudo, a notícia que se
espalhara de que, naquela manhã, iam ser experimentados o Picaço do Estêvão e o Tordilho
do Claudino, dois parelheiros que, segundo corria, esses abastados lavradores
tinham há muito encomendado para o serviço de sela e para um desafio à Corruíra, a famosa égua do Teixeira, que
nas costumadas corridas da praia se tornara invencível. Mas a esses rapazes
atraía principalmente, e com mais entusiasmo, o espetáculo — querido entre
todos pelos roceiros — da domação de um potro xucro, em que ia montar o Miguel,
um jovem campeiro dos Zimbos, que se criara a bem dizer sobre os lombilhos, não
só no arraial onde nascera como no Rio Grande e na região serrana catarinense —
em Lages, Curitibanos e São Joaquim.
Na véspera à tarde o Alexandre Bastos, depois de regatear longo tempo,
forcejando por obter uma pechincha, porque “não pagava vontades”, nem que lhe
obrigasse “o Divino” — escolhera entre os “baguais” da tropa um belo potro zebruno, de três anos, que muito lhe
agradara pelo largo peito musculoso, a linda “tábua” de pescoço, as grandes
patas, fortes e bem encascadas, e as suas patas, fortes e bem encascadas, e
suas formas esguias, revelando prontidão de movimentos e uma ligeireza de
veado. E, feito o negócio, o Alexandre falara logo ao Miguel, que viera passar
a festa com a noiva em casa do Pinheiro, para dar-lhe o primeiro “repasso”
naquela manhã de domingo.
À proporção
que os rapazes chegavam, a algazarra crescia no terreiro do Manoel Luís, onde
já se aglomeravam pessoas da vizinhança, jovens e velhos, alegres e expansivos
em meio à zurzinada das crianças — meninos de oito a doze anos — que
desenvoltamente estrafegam, nesses dias de descanso, ao longo de caminhos e
atalhos cortando planícies e montes.
Em frente, no imenso pasto verde alongando-se a perder de vista, manchado
aqui e além pelos homens a correr de um para outro lado entre altas macegas de
rinchão — ouvia-se já, por entre o vivo latir dos cães de gado, a sonora toada
dos tropeiros, reunindo a cavalhada dispersa e tocando-a em direção à porteira.
Homens bem montados surgiam, às vezes, em disparadas infrenes na orla das
capoeiras: e os cavalos irrompiam de baixo, do mato, galopando com estrépito,
destacando na planura do pasto, sobre grama rasteira como num rodeio dos
pampas. Eram o Alexandre Bastos, o Miguel e o Zé Pedro, que andavam a ajudar os
peões na faina de juntar os animais no potreiro, porque o pasto extremava com o
campo e a cavalhada, durante a noite, internara-se pela tiririca e o matagal
dos banhados.
Quando a
tropa se reuniu, já o sol ia alto e o céu cobria-se todo de um pó de ouro
flamante. As cigarras chiavam, traspassadas de calor, no crivo verde dos ramos.
E os homens e rapazes que inundavam a estrada, esperando a domação, depois do
rude e esfalfante trabalho de atacar os cavalos, estiravam-se agora, todos
rubros e suando, sob as árvores do terreiro, as latadas da horta e os galhos
bastos das cercas que estendiam sobre o chão uma estreita renda de sombra,
malhada de pingos de ocre e que vagamente tremia, na areia, ao balanço das
ramagens ao vento.
O intenso alarido de vozes esmorecera por momentos, transformando-se num
murmúrio surdo de conversação zumbidora. As próprias crianças, esquecida por
instantes a sua perpétua e invencível inquietude, repousavam também junto aos
homens, numa posição derreada de fadiga e silêncio. E só ficaram ao longe, no
pasto, o ladrar vigoroso dos cães e a zoada sonolenta e nostálgica dos peões,
separando os animais.
Mas, de repente, o rumor violento de uma disparada estalou no caminho, para
os lados da porteira — e o potro zebruno
do Alexandre apareceu, aos galões e aos trancos, numa nuvem de pó denso.
Ergueu-se então um berreiro. E logo dum salto, todos se puseram de pé e,
com os braços ao ar, cercavam o animal, impelindo-o para dentro do terreiro
onde o Miguel, no seu baio encerado,
o laço ainda na cilha, procurava arrastar o potranco, que empacara na estrada a
um dos lados da cerca.
As moças,
das janelas e portas, num alvoroço e ridentes, agitavam os lenços claros,
buscando também espantar o cavalo, que se mantinha esticado, o pescoço recurvo
no ar e eriçado de crinas, muito erguida e atenta a pequena cabeça bem feita,
os olhos em sangue, as narinas dilatadas, respirando fortemente. Em torno dele
contínuos brados atroadores, de envolta com o latir agora amiudado dos cães,
feriam o ar morno e dormente:
— Eh potranco! Eh demônio! Eh! Eh!...
Mas o animal não se movia, de olhar enraivado, oblíquo nas órbitas, todo o
pelo em fremência.
O Miguel, escarlate e numa impaciência, gritou então para os homens, numa
voz estridente:
— Metam-lhe um pau de porteira! Desanquem-no, rapazes! Desanquem-no que ele
há de espirrar duma vez!...
Todos, a
uma, se lançaram à porteira e, arrancando das longas varas polidas, começaram a
malhar o potranco, fisgando-o pelas virilhas, a garupa, os flancos. Súbito, o
poldro, agredido, jogou-se aos saltos para a
frente.
O Miguel apeou-se logo e destramente, num abrir e fechar de olhos,
deitou-lhe a focinheira dando, em seguida, com o seio rijo do laço, uma volta
firme e forte no guapurubu do terreno. E puxando de uma guasca arrochou-o de
bico contra o grosso tronco da árvore: com as outras voltas do laço,
peritamente, envolveu-lhe, primeiro, as patas traseiras, depois as da frente,
com segurança, pelos machinhos. Em seguida, agarrando-o pelas pernas, enquanto
o Alexandre e o Zé Pedro o amparavam pelas ancas e o ventre — jogou-o ao chão,
de pancada, quedando-se aí o animal, imóvel, de focinho preso.
O Inácio, o
velho preto carreiro do Manoel Luís, correu imediatamente à casinha dos arreios
e volveu num pulo, com um antigo lombilho alongado, recurvo e de grandes
cabeças, cujos loros de couro cru findavam por um pedaço polido de pau, à laia
de estribo, atravessado embaixo aos extremos. De volta com isso vinham também
os apeiros: um espesso xergão de lã a quadrados brancos e negros, a cilha forte
de guasca, as duas canas das rédeas e a larga carona ressequida, toda malhada e
de pelos
Então o Alexandre começou a encilhar o potro, que parecia dormitar, os
olhos cerrados, atado de pés e mãos. Não obstante, o Zé Pedro, por precaução,
segurou-lhe ainda o focinho, enquanto os outros calcavam nos cascos inquietos,
que riscavam continuamente o terreiro.
O povo apinhara-se em torno, sob a ampla e alta parreira ensombrando
largamente o terreiro, e sob as frondes ramalhosas dos cafeeiros e laranjeiras
próximas. Moças enxameavam encantadoramente no patim da alta escada de velhas
pedras musgosas, e às grades da varanda.
Pronto o
animal, o Miguel preparou-se para montar, sacando as grossas botas amarelas e o
“pala” de listras brancas, enquanto o Manuel Luís corria a buscar o relho de
“chiquerá” e as chilenas de ferro, de rosetas acutângulas. Ao voltar, o rapaz,
decidido e risonho, ereto no seu porte elevado, de fortes músculos possantes,
tomou-lhe presto os objetos e, armando-se para a montaria, gritou ao Alexandre:
— Vamos, homem! Tira as voltas do laço ao potranco, e solta-o para vermos
essa “dança”!...
Lesto, num perfeito lidar de campeiro, o Alexandre desfez as voltas ao
laço, deixando apenas a que prendia o poldro ao palanque.
A multidão,
sábia e previdente, como sempre nos momentos supremos, recuou para os lados,
esvaziando o terreiro para dar “campo” ao potranco.
Este, ressurgido de repente, ergueu-se aos roncos do chão e, curvando-se
desesperadamente, atirou-se em medonhos corcovos, o lombo encolhido em
constantes contrações, procurando arrancar o lombilho e mordendo-se, em
reviravoltas vertiginosas e torceduras terríveis, pelo peito e pelos flancos.
Após isso, como um raio, rojou-se em cheio no chão, rebolando-se no pó, patas e
queixo no ar, num furor rodopiante. Debateu-se assim meia hora, finda a qual
quedou-se exausto, o ventre túmido a arfar, as crinas densas em novelos, o pelo
todo arrepiado, num suor abundante.
E logo o Miguel, endireitando-se para ele de chicote em punho e colhendo
resolutamente o fiador, fê-lo súbito levantar-se com um relhaço nas ancas e,
tapando-lhe os olhos com as canas das rédeas, uma das mãos às crinas, firmou-se
rápido nos pés juntos onde tiniam as chilenas, e cavalgou dum salto, com
vigorosa destreza.
O povo, entusiasmado, rompeu numa aclamação.
E o potro, outra vez sublevado sob aquele corpo de homem que o suplantava
fortemente, atirou-se aos galões para a estrada, saltando o cercado da horta,
vencendo tudo de arranco. A multidão, apupando, jogou-se atrás do cavalo que,
com o dorso curvo e enrijado, a cabeça oculta entre as mãos, rodopiava
violentamente, eletricamente, bem em frente à casa do Manuel Luiz, a velhaquear, sem cessar, num turbilhão de
poeira. O Miguel, firme e forte na sela, apesar das negaças do poldro que não
parava um instante, malhava-lhe a relho a cabeça e metia-lhe as esporas no
ventre que escorria sangue.
Das janelas
do prédio caiado, faiscando ao sol ardente, as raparigas roceiras, todas
risonhas e rubras em umas vestes frescas, contemplavam alegremente a cena, com
olhares de admiração e afeto para o bravo domador.
Mas o animal não parava, o olhar em brasa, a boca espumante lacerada aos
cantos pelas laçadas das rédeas arrochando-lhe os beiços empinava-se, jogava-se
em ímpetos para trás, para a frente, e, negaciando sempre contra a Parede da
casa, em esbarradas brutais, tentava deitar fora o cavaleiro. O rapaz,
entretanto, na sua perícia campeira, assim que o potranco encumeava, sentando
de anca no chão, boleando-se — saltava presto da sela e, apenas o animal
endireitava, galgava-a, vivo, outra vez.
Nisto o potro arrancou num ímpeto para a sede da freguesia, para o grande
largo da igreja. A multidão, num frêmito, abalou atrás em avançadas de gamo, a
gritar fortemente com as suas notas roceiras:
— Eh puna!
Eh puna! Lá vai o raio
perdido! Aquilo esbarra-se na primeira cerca! Esbarra-se mesmo, o demônio! É
desta vez que o Miguel “benze” o chão!
E o
potranco, envolto num véu amarelo de poeira dançante, sumia-se por entre as
voltas da estrada, na galopada tremenda, seguido da multidão entusiasta,
acompanhando-o numa corrida álacre e ruidosa, velada também num vulcão de pó
denso.
O Miguel só conseguiu abancar na
Ladeira de Fora, já no adro da igreja, em frente à casa do Pinheiro, onde
estava a Luizinha, “o seu bem”. Fatigado, apeou-se um momento, indo amarrar o
potro para um recanto do largo, ao galho de uma laranjeira. E atirando-lhe um
relhaço à garupa, aproximou-se da janela, a falar à noiva, muito rubro e num
enternecimento.
Das vivendas
vizinhas muita gente acudiu a ver, atraída pelo rumor da galopada e pelo grosso
vozear do povo que chegava a correr...
Era meia tarde quando o Miguel
voltou de novo a montar. O ajuntamento, que se quedara a descansar sobre a
grama da praça, ergueu-se logo, contente. A casa do Pinheiro, como os demais
prédios vizinhos, regurgitava já cheia, pois que a notícia da domação,
espalhando-se eletricamente, fizera ainda afluir para ali bandos e bandos de
gente.
A Luizinha, feliz na sua adoração pelo noivo, sorria, em meio de um grupo
de amigos, ao ouvir os elogios que se faziam ao Miguel como agarrador e domador
valente: e nem um instante despregava os olhos do rapaz que, rodeado do povo,
se encaminhava para a laranjeira — onde o poldro, apenas se viu de novo cercado, ergueu o pescoço,
tomando uma atitude selvagem e, com o olhar ainda em sangue, entrou a voltear a
árvore, ressabiado e aos roncos. Os homens romperam então num berreiro:
— Olha o lonca ainda às
cócegas! Olha o estupor! E não é ainda desta que ele endireita, rapazes! O
diabo vai dar “coisa”!...
A poucos
passos dali, o Manoel Luís e o Pinheiro comentavam o caso, mirando bem o
animal, que reputavam “má compra”. Entretanto o Alexandre conhecia os cavalos
como poucos, pois fora muitos anos peão; mas agradara-se daquela “estampa” e
não olhara dinheiro. A eles é que o “bicho” não conseguira lograr com as suas
“pinturas” e manhas... Aquilo fora uma verdadeira espiga para o Alexandre. E
agora era aguentá-la, não havia remédio. Não se fiasse ele, porém, porque cada
vez que o montasse a “cova estava aberta no chão”...
Suspenderam-se para olhar o Miguel que, já montado e bem firme nas curvas,
esporeava fortemente o potranco nesse instante empacado — quando o Alexandre
passou por eles, furioso, brandindo uma vara de cerca, em direção ao animal,
que entrou a malhar às mãos ambas.
Então o Manoel Luís, vendo iminente uma arrancada terrível para algum lado
perigoso, ia gritar-lhe cessasse — quando o potro atirou-se, qual raio, pela
íngreme ladeira pedregosa que ia dar ao costão. Houve um arrepio no povo,
seguido de um silêncio que empalideceu a todos. Às janelas das casas, as
mulheres, invadidas também de um temor, tinham uma ansiedade nos olhos e uma
vaga lividez no rosto.
Mas já o Manoel Luís e o Pinheiro atiravam-se para a ladeira, gritando:
— Acudam, rapazes! Acudam que o Manoel vai ao chão!...
A turba jogou-se logo, seguindo os dois homens.
Do meio do morro avistava-se o Alexandre que já descia adiante, em
direitura às pastagens da praia, toda fechada entre cômoros. Então, cada um
entrou a investigar miudamente a ladeira pedregosa, batendo a verdura das
bandas, quando o irmão da Luizinha e outros deram com um rastilho vermelho que
levava a uma gruta entre rochas, onde jazia o corpo do rapaz, numa larga poça
de sangue. Todos correram bradando:
— Olha o Miguel desacordado! Olha o Miguel como morto!...
E desceram à grota, a suspender o corpo, que estava ainda quente — o
pescoço caído, uma grande brecha na fronte. Agarraram-no em braços e o levaram
para a casa do Pinheiro, enquanto o Manoel Luís, muito consternado, corria a chamar
o vigário. A maior parte do povo, passada a emoção do primeiro momento, outra
vez em alvoroço, tomou para a praia, onde o Alexandre procurava, por toda a
parte, o potranco...
Quando o corpo do Miguel chegou à casa e foi postado na sala sobre uma velha
marquesa, a Luizinha precipitou-se sobre ele, soluçando e cobrindo-o de beijos.
Os parentes e pessoas amigas acercaram-se também, num coro de lástimas
plangentes. O Pinheiro, triste e aturdido ante tudo aquilo, nem sabia o que
fazer: maquinalmente, porém, pegara de um vidro de arnica e com um pedaço de
pano, apanhado ao acaso, aplicava-a à cabeça do rapaz, num gesto trêmulo das
mãos.
Em pouco, chegou o vigário. Era um velhote alto e seco, a face cavada e
cidrenta, todo corcunda dos anos. Examinou o Miguel, e amarrando-lhe a testa
com um lenço ensopado em arnica, tirou da velha batina um vidro de outro
remédio, do qual vazou-lhe três colherinhas seguidas na boca lívida e inerte. E
olhando as pessoas em roda e a Luizinha, que chorava ininterruptamente agarrada
às mãos insensíveis do noivo, murmurou surdamente uma frase de consolo.
Aproximou-se ainda da moça e, com os seus dedos ósseos e longos, ameigou-lhe
docemente a fronte, dizendo:
— Não chores, menina! Deus é bom e poderoso!...
De novo examinou o rapaz, cujas feições murchavam pouco e pouco, perdendo a
delicada expressão das linhas num regelado palor. Apalpou-lhe um dos lados — o
do coração — espalmando sobre ele uma das mãos muito magras e, com a outra,
tateava o braço todo procurando as pulsações fugitivas. Permaneceu assim um
instante, concentrado e atento. Depois, a uma furtiva estremeção do ferido,
sacudiu tristemente a cabeça e, cerrando os olhos com recolhimento, como em
prece íntima e fervorosa, murmurou compungido esta frase de dor:
— Já não sofre! Expirou!...
Todos, em volta, se lançaram de joelhos, clamando desolamente:
— Está morto! Está morto!
A Luizinha então ergueu-se de um salto, os olhos desvairados, toda
desgrenhada, como uma louca:
— Ai! que ânsia! Ai! que ânsia, meu Deus!...
E foi cair, sem sentidos, entre os braços das amigas, que a cercaram com
amor...
***
Nesse instante, lá fora, na estrada, à luz fria do ocaso afogando-se em
sombras, ouvia-se, como o rugir do mar em tormenta, o grosso vozear da
multidão, perseguindo o potro para o matar a tiro. O clamor perdia-se ao longe,
na extensa paisagem serena, como um eco prolongado de desolação...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...