A Mboitatá
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Foi assim:
Num tempo
muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais
haveria luz do dia.
Noite escura
como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro
dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens
viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais
sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos
estavam se apagando e era preciso poupar os tições...
Os olhos
andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando,
sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... as brasas somente, porque as
faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas
contentes.
Naquela
escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo,
nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até
nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite
velha ia andando... ia andando...
II
Minto:
No meio do
escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez
em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu
ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre,
esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já…
Só o téu-téu
de vez em quando cantava; o seu — quero-quero! — tão claro, vindo de lá do
fundo da escuridão, ia aguentando a esperança dos homens, amontoados no redor
avermelhado das brasas.
Fora disto,
tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.
III
Minto:
Na última
tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das
coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d’alva, nessa última tarde
também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão
a cair, e durou… e durou...
Os campos
foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos
tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo
aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que
ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo
das coxilhas. E nessas coroas e que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo
misturado, no assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes
e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!...
Nas copas
dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na
enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas, boiavam os
ratões e outros miúdos.
E, como a
água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a
— boiguaçu —
que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então
acordou-se e saiu, rabeando.
Começou
depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer as carniças. Mas só
comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi
baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a
cobra-grande comia.
IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira
que só come trevo maduro dá no leite o cheiro do milho verde; o cerdo que come
carne de bagual nem alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho o
biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens,
que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos
limpos guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidados com os
amarelos; e, toma tendência doble com os raiados e baços!…
Assim foi
também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu.
V
Todos — tantos, tantos! que a cobra-grande comeu —, lavam, entranhado e luzindo, um rastilho da última luz eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu...
E os olhos —
tantos, tantos! — com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no
princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma
braçada…
VI
E vai...
Como a
boiguaçu não tinha pelos como o boi, nem escamas o dourado, nem penas como o
avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo
foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos
tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena
réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem
chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos
olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos…
VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez primeira viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas
vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era
então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens,
por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente,
transparente — tatá, de fogo — que media mais braças que três laços de conta e
ia alumiando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam,
desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz
que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os
das carniças a enfartavam...
VIII
Mas, como dizia:
Na escuridão
só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu
cantava de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um
tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos
encheram-lhe o corpo mas não lhe deram sustância, pois que sustância não tem a
luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos…
Depois de
rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as
carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas,
o corpo dela desmanchou-se, também como coisa da terra, que se estraga de vez.
E foi então,
que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu coisa mandada: o
sol apareceu de novo!
IX
Minto:
Apareceu
sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram
despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no cobreado do céu; depois
foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista
de luz… depois a metade de uma cambota de fogo… e já foi o sol que subiu,
subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para
igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
X
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre
arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no
inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de
verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá,
toda enroscada, como uma bola — tatá, de fogo! — empeça a correr o campo,
coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo
amarelo azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos
manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se,
apagando... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito!
Desconjuro!
XI
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá
vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda
se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na
aragem que ajuda.
XII
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!
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