Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Embora ainda não esteja
aposentado de todo, já me julgo completamente desligado do emprego público que
exerci, na Secretaria da Guerra, durante quinze anos.
A vida de cada um de nós, que é
feita e guiada mais pelos outros do que por nós mesmos, mais pelos
acontecimentos fortuitos do que por qualquer plano traçado de antemão,
arrasta-nos, às vezes, nos seus pontapés e repelões, até onde nunca julgaríamos
chegar.
Jamais imaginei, em dia algum da
minha vida, ter de ir parar naquele casarão do Campo de Santana e testemunhar
as sábias e pressurosas medidas que os presidentes da República e seus
ministros da Guerra põem em prática para a eficaz defesa armada do Brasil.
Mas sucessos imprevistos da minha
vida com dolorosas desgraças domésticas, num instante de necessidade e
angústia, levaram-me até ali, fizeram-me ver bem profundamente, de excelente
lugar na plateia, uma das partes mais curiosas da administração republicana.
Não me despedi ainda do lugar,
mas, de qualquer modo, hei de fazê-lo; e, quando de todo o fizer, penso bem que
o farei sem saudades.
E não é propriamente por ser ele;
fosse outro, creio que se daria o mesmo.
Neste como naquele, nesta ou
naquela profissão, tenham-se as melhores ou piores aptidões, o que se nos pede
nessa sociedade burguesa e burocrática é muita abdicação de nós mesmos, é um
apagamento da nossa individualidade particular, é um enriquecimento de ideias e
sentimentos comuns e vulgares, é um falso respeito pelos chamados superiores e
uma ausência de escrúpulos próprios, de modo a fazer os tímidos e delicados de
consciência não suportar sem os mais atrozes sofrimentos morais a dura obrigação
de viver, respirar a atmosfera deletéria de covardia moral, de panurgismo, de
bajulação, de pusilanimidade, de falsidade, que é a que envolve este ou aquele
grupo social e traz o sossego dos seus fariseus e saduceus, um sossego de morte
da consciência.
Os delicados de alma, nos nossos
dias, mais do que em outros quaisquer, estão fatalmente condenados a errar por
toda a parte. A grosseria dos processos, a “embromação” mútua, a hipocrisia e a
bajulação, a dependência canina, é o que pede a nossa época para dar felicidade
ao jeito burguês.
É a época dos registros e dos
tabeliães, mas é o tempo das maiores falsificações; é a época dos códigos,
sendo também o tempo das mais vivas ladroeiras; é a época das polícias
aperfeiçoadas, apesar de que é o tempo dos fiadores, endossantes etc.,
verificando-se nele os maiores calotes; é a época dos diplomas e das cartas,
entretanto, sobretudo, entre nós — é o tempo da mediocridade triunfante, da
ignorância arrogante escondida atrás de diplomas de saber; etc., etc.
Quem fez nas primeiras idades uma
representação da vida cheia de justiça, de respeito religioso pelos direitos
dos outros, de deveres morais, de supremacia do saber, de independência de
pensar e agir — tudo isto de acordo com as lições dos mestres e dos livros; e
choca-se com a brutalidade do nosso viver atual, não pode deixar de sofrer até
o mais profundo do seu ser e ficar abalado com esse traumatismo para toda a
vida, desconjuntado, desarticulado, vivendo aos trombolhões, sem norte, sem
rumo e sem esperança.
Um espírito que criou para si um
ideal de vida muito diferente do que a nossa atual de fato apresenta, conclui
que tanto vale ter isto ou aquilo; que os homens são insuportáveis, tolos,
injustos e que devemos vê-los, ricaços ou generais, doutores ou curandeiros,
carvoeiros ou almirantes, ministros e os seus sábios secretários, na sua
hipocrisia de tartufos, na sua miséria moral, na sua abjeção necessária, como
atores de uma comédia que nos deve fazer rir, sem esquecer de ter pena deles,
pois os seus esgares, as suas pinturas, as suas roupagens brilhantes de reis,
de príncipes, de papas ou os trapos de mendigos que os vestem, a sua
caracterização, enfim, tem por destino ganhar dinheiro, a fim de que não morram
de fome.
Sem que me atribua qualidades
excepcionais, detesto a hipocrisia e por isso digo que deixo o emprego sem
saudades.
Nunca o amei, jamais o prezei. No
começo, se tivessem respeitado justamente a dignidade do meu juramento, o meu
trabalho e as qualidades de burocrata que eu tinha como todos os outros, talvez
mudasse de sentimento, e, mesmo, como tantos outros, me tivesse deixado anular
comodamente no ramerrão burocrático.
Não quiseram assim, revoltei-me;
e, desde essa revolta, sei que os meus desastres são devidos muito a mim e um
pouco aos outros. Daí para cá, todo o meu esforço tem sido o livrar-me de tal
lugar, que é para a minha consciência um foco de apreensões, transformando-se
ele em um inquisitorial aparelho de torturas espirituais que me impede de
pensar tão somente no esplendor do mistério e rir-me à vontade desses bonecos
sarapintados de títulos e distinções que, não sem pena, me fazem gargalhar
interiormente para mais perfeitamente gozar a bronca estultícia deles.
A minha sociedade agora não será
mais a dos simuladores do talento, do trabalho, da honestidade, da temperança,
será a dos défroqués, dos toqués, dos ratés de todas as profissões e situações, mas que sabem
perfeitamente que falta confessada é “meia falta”, e também que Sardanapalos
poderoso mandou pôr como seu epitáfio as seguintes e eloquentes palavras
“Fundei Tarso e Anquíale, entretanto, aqui estou morto”.
Antes, porém, de esquecer
totalmente os episódios desses meus quinze anos de vida que deviam ser os
melhores dela, mas que me foram os de maiores angústias, quero registrar
algumas passagens curiosas que observei, e também curiosas figuras que conheci,
durante eles.
Todo o mundo está disposto a
acusar os burocratas desta ou daquela coisa feia. Mas poucos lembram das
“partes” de certa espécie que são de pôr um cristão doido. Há algumas que são
verdadeiramente importunas, insuportáveis e de desafiar a paciência de Jó.
No meu tempo de Secretaria, havia
por lá muitos; e, de tão renitente espécie, eu me lembro de um preto de quase
setenta anos, forte ainda, que, em um mês, fez entrar mais de dez
requerimentos, pedindo a mesma coisa.
Chamava-se Agostinho Petra de
Bittencourt e tinha sido músico de um batalhão de voluntários da Pátria, que
estivera no Paraguai.190 Dizia-se filho de um padre Petra que morrera há mais
de cinquenta anos, deixando uma incalculável fortuna, em barras de ouro e
pedras preciosas, em moedas de ouro e prata, que se achava depositada no
Tesouro. Era seu herdeiro, como seu filho; e, quando bem interrogado, Agostinho
dizia que o padre era branco. Entretanto, não seriam precisos grandes
conhecimentos antropológicos para dizer-se, à primeira vista, que o herdeiro de
fortuna tão grande não tinha nem uma gota de sangue caucásico. Um jornal daqui
chegou a tratar do caso; mas anos se passaram e só ele não deixou de falar na
famosa herança...
A sua demanda com o Ministério da
Guerra, porém, era de outra natureza e muito mais prosaica. Tendo vindo a lei
que dava vitaliciamente aos voluntários da Pátria, sobreviventes, o soldo dos
postos e graduações com que foram dispensados, ao terminar a guerra, Agostinho
requereu-lhe fosse concedida semelhante pensão como mestre de música.
A Contabilidade da Guerra,
consultando os documentos originais da época, as folhas de pagamento,
denominadas na linguagem militar “relações de mostra”, só encontrou o nome de
Petra como músico de 1ª classe. O velho não se conformou e, daqui e dali,
arranjou uma biblioteca de Ordens do Dia da guerra contra Lopes, que ele
sobraçava dia e noite, onde o seu nome figurava como mestre de banda.
Armado contra elas, Agostinho foi
a ministros, a secretários de Sua Excelência, a ajudantes de ordens de Sua
Excelência, a todo o pessoal majestoso que recebe luz de Sua Excelência,
queixar-se da imaginária injustiça de que vinha sendo vítima. Não havia nenhuma,
mas Petra atribuía aos empregados da Contabilidade má-fé, dolo, falsidade
administrativa, quando eles tinham cumprido seu dever.
Como, em geral, todos os
requerentes, o pobre músico de batalhão só se queixava dos pequenos; e os
grandes, ao receberem as suas queixas, aconselhavam que requeresse. E ele
requeria sem dó nem piedade; anos e anos levou ele pelos corredores do
Quartel-General, sobraçando a sua biblioteca belicosa, requerendo, resmungando,
reclamando e um mês até deu entrada a mais de dez requerimentos no sentido da
sua modesta pretensão.
À vista desse exemplo e de outros
mais significativos, talvez, mas pouco pitorescos, é de crer que o Império e a
literatura patriótica da ocasião tenham posto no espírito dos voluntários do
Paraguai grandiosas esperanças de toda ordem. É mesmo vezo de todos os
governos, quando precisam de soldados para suas guerras, isso fazerem. O nosso
não podia fugir da regra e, ao se ver a braços com El Supremo do Paraguai, se não disse francamente aos voluntários, se
voltassem, não teriam mais que trabalhar para viver, prometeu com certeza
grandes coisas, pois todos com que tratei estavam possuídos de uma forte
convicção dos deveres do Estado para com eles.
Foi, naturalmente, esse
sentimento multiplicado, quadruplicado, decuplicado, centuplicado e também
deformado no espírito simples, primitivo e vaidoso de um ingênuo e ignorante
preto que levou o major honorário do Exército, voluntário da Pátria, José
Carlos Vital, ao mais completo dos desastres que se pode imaginar.
Vital foi há anos uma figura
popular do Rio de Janeiro. Todos devem lembrar-se de um pretinho muito baixo,
miúdo, feio, com feições de pequeno símio, malares salientes, lábios moles,
sempre úmidos de saliva, babados mesmo, que era visto passar pelas ruas
principais, fardado de major honorário, com uma banda obsoleta na cintura, um
espadagão antediluviano, de colarinho extremamente justo e botas cambaias...
Hão de se lembrar, por força! Pois essa figura pouco marcial era o major José
Carlos Vital.
Para obedecer à justiça, diga-se
que todos o olhavam com respeito. Aos poucos, envaideceu-se com isto e não
perdoava continência, brados d’armas e outras cerimônias militares devidas a
seu posto. Ficou irritante e cavava assim a sua ruína. A vaidade matou-o, como
veremos.
Nos seus tempos áureos de
“major”, era Vital um simples servente do Arsenal de Guerra; e, quando deixava
as suas humildes funções, lá, no Cafofo, nas proximidades do atual mercado,
envergando solenemente a farda e sobraçando com o braço esquerdo o espadagão,
não era raro que, na primeira tasca, aceitasse o copo de parati e contasse,
encostado ao balcão da venda, à gente humilde e tresmalhada daquelas paragens
as suas proezas guerreiras. O arsenal era naquele tempo local escolhido quase
sempre, para embarque ou desembarque de figurões de toda ordem e nacionalidade;
e, quando isso se dava, o major julgava-se obrigado a comparecer com o seu
fardão, o seu espadagão, o seu colarinho sujo, as suas botas cambaias e o seu
charuto de tostão. Às vezes mesmo, com tal toilette,
apresentava-se no Palácio do Catete, para cumprimentar o presidente da
República, em dias festivos...
É fácil de imaginar como a
presença de semelhante herói quebraria a harmonia de tão solenes e graves
cerimônias por demais obedientes ao protocolo e às regras de precedência. Mas o
major, “Voluntário da Pátria”, que era, nunca quis convencer-se de que o seu
heroísmo ficava mal em tais lugares e devia somente brilhar no largo da Sé, no
do Moura e em outras molduras dessa natureza que lhe eram adequadas e próprias.
Um belo dia aparece um branco, e modestamente vivendo em Pernambuco, recebendo
também etapa de asilado lá, como o seu homônimo preto recebia aqui. Abre-se
inquérito; cada um dos Josés Carlos Vitais apresenta as suas provas de
identidade; a indagação da verdade é feita com o máximo critério e
imparcialidade, acabando-se por concluir que o de Pernambuco é o autêntico,
embora o daqui não tenha procedido de má-fé. O festejado herói do largo do
Moura, do beco da Batalha,191 o orgulho das últimas pretas minas que conheceram
o Príncipe Obá,192 perde as zonas, o emprego, a etapa de asilado, enviúva do
fardão, para sumir-se dentro de um velho fraque de paisano vulgar.
E aquela satisfação de ser major,
com as suas honras, privilégios, garantias e isenções, esvai-se, some-se, foge
da sua triste vida de filho sem pai e que da mãe não tem a mais vaga lembrança;
essa satisfação infantil que lhe resgatava os padecimentos de criança desvalida
e levada em tenra idade, como se verificou, para os campos de batalha — essa
satisfação se aniquila completamente como se o destino não lhe quisesse dar,
nos seus últimos dias de vida essa vã e pueril consolação, como se não lhe
quisesse dar a mínima ilusão de felicidade, a ele que passara toda a existência
esmagado, humilhado, sem prazeres, sem alegrias, talvez, mesmo as mais
vulgares!... Ah! a Vaidade...
Chamei de vã e pueril a
consolação que podem dar as honras e que envaidecem o “major”. Será verdade? Vi
tanta gente disputá-las, vi tantos homens, de condições de riqueza e instrução
mais variadas, requestá-las que estou disposto a crer que errei quando assim as
qualifiquei.
Não poderei citar muitos casos de
pedidos delas, porque quase todos, por comuns de argumentação e motivos, me
escaparam da memória; mas um, por ser sobremodo grotesco, viveu-me sempre na
minha lembrança e, ainda hoje, quando dele me recordo, causa-me riso. Conto-o.
Um voluntário da Pátria chamou em seu auxílio, ou tentou chamar, a aritmética
para obter o justo honorário a que se julgava com direito. O senhor José Dias
de Oliveira, porteiro adido do extinto Hospital do Andaraí, vivo ainda, como o
são também os outros dois seus colegas a que aludi, era um velho pesadão, curto
de membros e de corpo, com umas abundantes e longas barbas mosaicas, ventre
proeminente e acentuado na sua redondeza, voz cava, que, de quando em quando,
aparecia na secretaria, a fim de procurar com um seu amigo, funcionário dela,
“o livro dos voluntários da Pátria”. Só ele conhecia esse livro e ele o pedia
com a máxima insistência. A sua voz cava não permitia grandes gritos; mas,
assim mesmo, nos dias de reclamação, conseguia encher os corredores e as salas
com o seu rouco vozeiro. Quem o visse, nesse transe, poderia apreciar o
gesticular desenfreado com que acompanhava a sua abafada gritaria e o cuidado
constante que tinha, para não lhe caírem as calças perna abaixo. Movia todas as
partes do corpo que permitiam movimento: os braços, as pernas, a cabeça, o
pescoço; e falava, falava, semigritando.
Queria o tal “livro” para
resolver ou justificar os seus direitos, que tinham o apoio da matemática. Era,
argumentava, tenente honorário e fora tenente da polícia do Paraná. Ora, 2 + 2
são quatro. Logo, ele possuía quatro galões, o que equivale a dizer que era
major e, como tal, tinha direito à patente desse posto. De alguma forma, penso
eu agora, o Senhor José Dias de Oliveira tem razão. Se o esoterismo positivista
da geometria e do cálculo tanto concorreu para o 15 de Novembro, não é demais
que a cabala da tabuada de somar auxiliasse a pretensão do porteiro adido do
antigo hospital do Andaraí. 2 + 2 = 4; ele é, portanto, major. A matemática não
falha...
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