À luz das estrelas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao gradil da
larga varanda de madeira do grande prédio acaçapado da fazenda cercado de
laranjeiras e cafeeiros tufados e adormecidos já sob a noite avançada no solene
e profundo silêncio dos campos, um vulto de mulher assomara de repente, em
gestos misteriosos, a passadas nervosas, inquietas, hesitantes. Ora voltando-se
para a porta de onde saíra e que deixara cautelosamente cerrada, sem o mínimo
rumor, ora como que sondando com um fundo olhar rebuscador e ansioso a sombra
espessa das ramagens em torno, deslizou apressada para os balaústres da escada
que descia ao terreiro sob uma pequena latada aromal de rosas e trepadeiras. Aí
estacara por instantes, protegida por esse estranho dossel de renda de verdes
folhas miudinhas e alçadas corolas abertas que lhe afagavam em frescas carícias
vegetais o colo, as faces, os cabelos — quando uma figura de homem corpulento,
surgindo dentre o laranjal, correu ao seu encontro e pegando-lhe de uma das
mãos fortemente, murmurou numa arrebatação e num enlevo:
— Vamos,
querida! A noite está deserta e silenciosa: ressonam os lares. O que tu ouves
não é senão a monótona zoeira das árvores ao vento, o latir rouco e melancólico
dos cães, ou o pio longínquo de alguma ave noturna que esvoaça lá para os lados
da igreja. Teu pai e teus irmãos nada sabem. Os escravos já dormem. Enrola-te
na minha capa. Dá-me a tua mão. Vamos!...
Mas a
donzela hesitava, olhando ainda o prédio, a varanda, as árvores, o campo
imenso, tudo indeciso, confuso, sonolento, apagado na treva, — e após ergueu o
olhar às estrelas que se ostentavam idealizadoramente lá acima, no céu muito
alto, com os seus pequeninos olhos de ouro, tremeluzentes.
Por fim,
entregou-se de todo ao seu bem-amado, deixando o destino, a felicidade, a
beleza, a vida correrem acordes ao seu coração, no tumulto absoluto e
absorvente do Amor que tudo irresistivelmente, heroicamente, benditamente
sacrifica à sua consumação.
E eles
partiram ao longo de meandrosos atalhos e trilhas, à claridade frouxa, muito
vaga, quase imperceptível, dos belmazes altíssimos dos astros, radiando
magicamente, encantadamente, na incomparável vastidão do Infinito.
Iam felizes,
unidos, cochichantes naquela inefável aventura, ardente e complicado episódio
de romance, que o amor enchia de energia e audácia, ao mesmo tempo que um
calafrio de medo os invadia e traspassava, quando alguma rajada mais rija
açoitava as ramarias.
Numa volta
de estrada, em que a vegetação se descerrava como num rasgão de clareira, a
brancura de uma pedra musgosa paralisou-os subitamente num susto,
destacando-se, terrível e apavorante, dentre a negra espessura das capoeiras,
quando um pirilampo passou faiscando rente. Depois, um novo sobressalto
colheu-os, ao enfrentarem uma larga porteira de engenho, de onde se avistava, à
pequena distância, em meio às plantações, uma enorme figura de homem, vestida
de branco, ameaçando, com uma vara na mão, a quem porventura ousasse
acercar-se. Pararam outra vez por instantes, observando atentamente o vulto,
muito achegados aos espinheiros do outro lado da estrada e ocultos na sombra
densa de suas altas frondes rendilhadas, através de cujas malhas tremulantes
espiavam as estrelas, essa adoráveis, louras e luminosas veladoras do Espaço,
durante o curso nostálgico e desolado das noites. E apenas os dois amantes
reconheceram que o “homem” não passava do conhecido espantalho feito sempre na
roça para afugentar os pássaros e macacos rapinantes dos milharais em semente e
maturidade — retomaram o seu caminho.
Mais
adiante, porém, um ruído de patas que lhes deixou no peito anelante a
palpitação de um perigo — elevou-se e foi morrer longe, cortando o ar na
direção do rio. Aqui e além então, os latidos roucos dos cães se tornaram mais
intensos, menos espaçados, ecoando merencoreamente em meio ao silêncio augusto,
misterioso, espiritual e solene das altas horas da Noite.
Trêmulos e
ofegantes, estreitamente enlaçados, caminhavam agora precipitadamente, como se
algum tropel os seguisse pela espessura das árvores, das moitas, ou pela vasta
amplidão desafogada e livre das imensas pastagens em sombra.
E assim
chegaram a um rancho, onde os esperava uma grande canoa de voga tripulada por
negros. Embarcaram. E logo uma voz precipitada e viril vibrou de rijo:
— Larga!
Então, em
seguida, um marulho fresco e cristalino da água mansa sulcada se ouviu,
afastando-se por entre o ranger seco e compassado dos remos a cantar nas
toleteiras côncavas.
Nesse
momento, como minutos antes, um grito possante e formidável golpeou o espaço,
numa prolongada estridência, perseguidor e alarmante:
— Ladrões!
Assassinos!...
Era o
Vicente, o filho da Andreza, um verdadeiro “quebra” dos sítios, rapaz arrojado
e valente, que, ao recolher a cavalo da sua costumada perambulação noturna,
ouvira vozes de homem falando no rancho, e então, batido da curiosidade de
saber quem estaria de viagem por uma noite assim escura, prometendo mau tempo —
lançara-se a galope até perto, deixando porém, para não ser pressentido, o seu
gordo e fogoso Tordilho bem amarrado
e oculto entre os vassourais da estrada, a alguns metros do porto. Aí,
agachado, atento, quedara-se cautelosamente a espreitar: os seus olhos de
roceiro noctívago, varando o ambiente escuro, iam pouco e pouco dominando todo
o terreno em volta, com uma grande nitidez de visão. E ele pôde descobrir uma
grande canoa que flutuava sobre a faixa negra do rio onde, arrumados e bem
postos aos remos, alguns homens esperavam, parlando segredeiramente. Percebeu
que ali havia “marosca” e aguardando um desenlace para tudo aquilo, pusera-se à
escuta, quando subitamente lhe chegara aos ouvidos a voz grossa do patrão:
— Aí vem
eles... não tardam... olha os cães como ladram...
Com efeito,
daí a instantes, dois vultos embuçados — um homem e uma mulher — chegavam a
passo estugado, embarcando precipitadamente.
Ao vê-los, o
Vicente lembrou-se de súbito da Eugeninha, a filha do Venâncio (o ricaço que
morava havia um ano no sítio), uma rapariga morena e formosa, que tivera,
segundo diziam, não fazia muito tempo, uma grande paixão amorosa por um rapaz
da cidade, a quem o pai odiava e perseguia. Indignado e não podendo conter-se,
diante daquela fuga traiçoeira da moça com o primeiro namorado, a quem ia agora
pertencer para sempre, quando já era noiva do Ernesto, o seu prezado camarada
de infância que havia dois meses não saía de casa empolgado pela malária —
berrou forte, com a sua possante garganta de touro:
— Ladrões!
Assassinos!...
E
sinistramente o grito perseguidor ecoou, por momentos, na alta noite estrelada,
profundamente silenciosa e solene, enquanto a canoa em que ia o amoroso par
fugitivo galhardamente singrava sobre a ampla corrente do rio, retinta,
chamalotada e marulhosa, aqui e além constelada de uma imensa pontilhação de
ouro líquido.
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