A ideia de Ezequiel Maia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A ideia do Ezequiel Maia era achar um
mecanismo que lhe permitisse rasgar o véu ou revestimento ilusório que dá o
aspecto material às coisas. Ezequiel era idealista. Negava abertamente a
existência dos corpos. Corpo era uma ilusão do espírito, necessária aos fins práticos
da vida, mas despida da menor parcela de realidade. Em vão os amigos lhe
ofereciam finas viandas, mulheres deleitosas, e lhe pediam que negasse, se
podia, a realidade de tão excelentes coisas. Ele lastimava, comendo, a ilusão
da comida; lastimava-se a si mesmo, quando tinha ante si os braços magníficos
de uma senhora. Tudo concepção do espírito; nada era nada. Esse mesmo nome de
Maia não o tomou ele, senão como um símbolo. Primitivamente, chamava-se
Nóbrega; mas achou que os hindus celebram uma deusa, mãe das ilusões, a que dão
o nome de Maia, e tanto bastou para que trocasse por ele o apelido de família.
A opinião dos amigos e parentes era que este
homem tinha o juízo a juros naquele banco invisível, que nunca paga os juros,
e, quando pode, guarda o capital. Parece que sim; parece também que ele não
tocou de um salto o fundo do abismo, mas escorregando, indo de uma restauração
da cabala para outra da astrologia, da astrologia à quiromancia, da quiromancia
à charada, da charada ao espiritismo, do espiritismo ao niilismo idealista. Era
inteligente e lido; formara-se em matemáticas, e os professores desta ciência
diziam que ele a conhecia como gente.
Depois de largo cogitar, achou Ezequiel um
meio: abstrair-se pelo nariz. Consistia em fincar os olhos na extremidade do
nariz, à maneira do faquir, embotando a sensibilidade ao ponto de perder toda a
consciência do mundo exterior. Cairia então o véu ilusório das coisas;
entrar-se-ia no mundo exclusivo dos espíritos. Dito e feito. Ezequiel metia-se
em casa, sentava-se na poltrona, com as mãos espalmadas nos joelhos, e os olhos
na ponta do nariz. Pela afirmação dele, a abstração operava-se em vinte
minutos, e poderia fazer-se mais cedo, se ele não tivesse o nariz tão extenso.
A inconveniência de um nariz comprido é que o olhar, desde que transpusesse uma
certa linha, exercia mais facilmente a miserável função ilusória. Vinte
minutos, porém, era o prazo razoável de uma boa abstração. O Ezequiel ficava
horas e horas, e às vezes dias e dias, sentado, sem se mexer, sem ver nem
ouvir; e a família (um irmão e duas sobrinhas) preferia deixá-lo assim, a
acordá-lo; não se cansaria, ao menos, na perpétua agitação do costume.
— Uma vez abstrato, dizia ele aos parentes e
familiares, liberto-me da ilusão dos sentidos. A aparência da realidade
extingue-se, como se não fosse mais do que um fumo sutil, evaporado pela
substância das coisas. Não há então corpos; entesto com os espíritos,
penetro-os, revolvo-os, congrego-me, transfundo-me neles. Não sonhaste a noite
passada comigo, Micota?
— Sonhei, titio, mentia a sobrinha.
— Não era sonho; era eu mesmo que estava
contigo; por sinal que me pedias as festas, e eu prometi-te um chapéu, um
bonito chapéu enfeitado de plumas...
— Isso é verdade, acudia a sobrinha.
— Tudo verdade, Micota; mas a verdade única e
verdadeira. Não há outra; não pode haver verdade contra verdade, assim como não
há sol contra sol.
As experiências do Ezequiel repetiram-se
durante seis meses. Nos dois primeiros meses, eram simples viagens universais;
percorria o globo e os planetas dentro de poucos minutos, aniquilava os
séculos, abrangia tudo, absorvia tudo, difundia-se em tudo. Saciou assim a
primeira sede da abstração. No terceiro mês, começou uma série de excursões
analíticas. Visitou primeiramente o espírito do padeiro da esquina, de um
barbeiro, de um coronel, de um magistrado, vizinhos da mesma rua; passou depois
ao resto da paróquia, do distrito e da capital, e recolheu quantidade de
observações interessantes. No quarto mês empreendeu um estudo que lhe comeu
cinquenta e seis dias: achar a filiação das ideias, e remontar à primeira ideia
do homem. Escreveu sobre este assunto uma extensa memória, em que provou a
todas as luzes que a primeira ideia do homem foi o círculo, não sendo o homem
simbolicamente outra coisa: — um círculo lógico, se o considerarmos na pura
condição espiritual; e se o tomarmos com o invólucro material, um círculo
vicioso. E exemplificava. As crianças brincam com arcos, fazem rodas umas com
as outras; os legisladores parlamentares sentam-se geralmente em círculo, e as
constantes alterações do poder, que tanta gente condena, não são mais do que
uma necessidade fisiológica e política de fazer circular os homens. Que são a
infância e a decrepitude, senão as duas pontas ligadas deste círculo da vida?
Tudo isso lardeado de trechos latinos, gregos e hebraicos, verdadeiro pesadelo,
fruto indigesto de uma inteligência pervertida. No sexto mês...
— Ah! meus amigos, o sexto mês é que me
trouxe um achado sublime, uma solução ao problema do senso moral. Para os não
cansar; restrinjo-me ao exame comparativo que fiz em dois indivíduos da nossa
rua, o Neves do nº 25, e o Delgado. Sabem que eles ainda são parentes.
E aí começou o Ezequiel uma narração tão
extraordinária, que os amigos não puderam ouvir sem algum interesse. Os dois
vizinhos eram da mesma idade, mais ou menos, quarenta e tantos anos, casados,
com filhos, sendo que o Neves liquidara o negócio desde algum tempo, e vivia
das rendas, ao passo que o Delgado continuara o negócio, e justamente falira
três semanas antes.
— Vocês lembram-se ter visto o Delgado entrar
aqui em casa um dia muito triste?
Ninguém se lembrava, mas todos disseram que
sim.
— Desconfiei do negócio, continuou o
Ezequiel, abstraí-me, e fui direito a ele. Achei-lhe a consciência agitada,
gemendo, contorcendo-se; perguntei-lhe o que era, se tinha praticado alguma
morte, e respondeu-me que não; não praticara morte nem roubo, mas espancara a
mulher, metera-lhe as mãos na cara, sem motivo, por um assomo de cólera. Cólera
passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes... — Estão feitas, acudiu
ele; Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah! doutor, é uma santa mulher! — E
então? — Mas não posso esquecer que lhe dei, não me perdoo isto; sei que foi na
cegueira da raiva, mas não posso perdoar-me, não posso. E a consciência tornou
a doer-lhe, como a princípio, inquieta, convulsa. Dá cá aquele livro, Micota.
Micota trouxe-lhe o livro, um livro
manuscrito, in folio, capa de couro escuro e lavrado. O Ezequiel abriu-o na
página 140, onde o nome do Delgado estava escrito com esta nota: — “Este homem
possui o senso moral”. Escrevera a nota, logo depois daquele episódio; e todas
as experiências futuras não vieram senão confirmar-lhe a primeira observação.
— Sim, ele tem o senso moral, continuou o
Ezequiel. Vocês vão ver se me enganei. Dias depois, tendo-me abstraído, fui
logo a ele, e achei-o na maior agitação. — Adivinho, disse-lhe; houve outra
expansão muscular, outra correção... Não me respondeu nada; a consciência
mordia-se toda, presa de um furor extraordinário. Como se apaziguasse de quando
em quando, aproveitei os intervalos para teimar com ele. Disse-me então que
jurara falso para salvar um amigo, ato de covardia e de impiedade. Para
atenuá-lo, lembrava-se dos tormentos da véspera, da luta que sustentara antes
de jazer a promessa de ir jurar falso; recordava também a amizade antiga ao
interessado, os favores recebidos, uns de recomendação, outros de amparo,
alguns de dinheiro; advertia na obrigação de retribuir os benefícios, na ridicularia
de uma gratidão teórica, sentimental, e nada mais. Quando ele amontoava essas
razões de justificação ou desculpa, é que a consciência parecia tranquila; mas,
de repente, todo o castelo voava a um piparote desta palavra: “Não devias ter
jurado falso”. E a consciência revolvia-se, frenética, desvairada, até que a
própria fadiga lhe trazia algum descanso.
Ezequiel referiu ainda outros casos. Contou
que o Delgado, por sugestões de momento, faltara algumas vezes à verdade, e
que, a cada mentira, a consciência raivosa dava sopapos em si mesma. Enfim,
teve o desastre comercial, e faliu. O sócio, para abrandar a inclemência dos
fados, propôs-lhe um arranjo de escrituração. Delgado recusou a pés juntos; era
roubar os credores, não devia fazê-lo. Debalde o sócio lhe demonstrava que não
era roubar os credores, mas resguardar a família, coisa diferente. Delgado
abanou a cabeça. Não e não; preferia ficar pobre, miserável, mas honrado; onde
houvesse um recanto de cortiço e um pedaço de carne-seca, podia viver. Demais,
tinha braços. Vieram as lágrimas da mulher, que lhe não pediu nada mas trouxe
as lágrimas e os filhos. Nem ao menos as crianças vieram chorando; não, senhor;
vieram alegres, rindo, pulando muito, sublinhando assim a crueldade da fortuna.
E o sócio, ardilosamente ao ouvido: — Ora vamos; veja você se é lícito trair a
confiança destes inocentes. Veja se... Delgado afrouxou e cedeu.
— Não, nunca me há de esquecer o que então se
passou naquela consciência, continuou o Ezequiel; era um tumulto, um clamor, uma
convulsão diabólica, um ranger de dentes, uma coisa única. O Delgado não ficava
quieto três minutos; ia de um lado para outro, atônito, fugindo a si mesmo. Não
dormiu nada a primeira noite. De manhã saiu para andar à toa; pensou em
matar-se; chegou a entrar em uma casa de armas, à Rua dos Ourives, para comprar
um revólver, mas advertiu que não tinha dinheiro, e retirou-se. Quis deixar-se
esmagar por um carro. Quis enforcar-se com o lenço. Não pensava no código; por
mais que o revolvesse, não achava lá a ideia da cadeia. Era o próprio delito
que o atormentava. Ouvia vozes misteriosas que lhe davam o nome de falsário, de
ladrão; e a consciência dizia-lhe que sim, que ele era um ladrão e um falsário.
Às vezes pensava em comprar um bilhete de Espanha, tirar a sorte grande,
convocar os credores, confessar tudo, e pagar-lhes integralmente, com juro, um
juro alto, muito alto, para puni-lo do crime... Mas a consciência replicava
logo que era um sofisma, que os credores seriam pagos, é verdade, mas só os
credores. O ato ficava intacto. Queimasse ele os livros e dispersasse as cinzas
ao vento, era a mesma coisa; o crime subsistia. Assim passou três noites, três
noites cruéis, até que no quarto dia, de manhã, resolveu ir ter com o Neves e
revelar-lhe tudo.
— Descanse, titio, disse-lhe uma das
sobrinhas, assustada com o fulgor dos olhos do Ezequiel.
Mas o Ezequiel respondeu que não estava
cansado, e contaria o resto.
O resto era estupendo. O Neves lia os jornais
no terraço, quando o Delgado lhe apareceu. A fisionomia daquele era tão
bondosa, a palavra com que o saudou — “Anda cá, Juca!” vinha tão impregnada da
velha familiaridade, que o Delgado esmoreceu. Sentou-se ao pé dele, acanhado,
sem força para lhe dizer nem lhe pedir nada, um conselho, ou, quando menos, uma
consolação. Em que língua narraria o delito a um homem cuja vida era um modelo,
cujo nome era um exemplo? Viveram juntos; sabia que a alma do Neves era como um
céu imaculado, que só interrompia o azul para cravejá-lo de estrelas. Estas
eram as boas palavras que ele costumava dizer aos amigos. Nenhuma ação que o
desdourasse. Não espancara a mulher, não jurara falso, não emendara a
escrituração, não mentiu, não enganou ninguém.
— Que tem você? perguntou o Neves.
— Vou contar-lhe uma coisa grave, explodiu o Delgado;
peço-lhe desde já que me perdoe.
Contou-lhe tudo. O Neves, que a princípio o
ouvira com algum medo, por ele lhe ter pedido perdão, depressa respirou; mas
não deixou de reprovar a imprudência do Delgado. Realmente, onde tinha ele a
cabeça para brincar assim com a cadeia? Era negócio grave; urgia abafá-lo, e,
em todo caso, estar alerta. E recordava-lhe o conceito em que sempre teve o tal
sócio. — “Você defendia-o então; e aí tem a bela prenda. Um maluco!” O Delgado,
que trazia consigo o remorso, sentiu incutir-se-lhe o terror; e, em vez de um
remédio, levou duas doenças.
“Justos céus! exclamou consigo o Ezequiel,
dar-se-á que este Neves não tenha o senso moral?”
Não o deixou mais. Esquadrinhou-lhe a vida;
talvez alguma ação do passado, alguma coisa... Nada; não achou nada. As
reminiscências do Neves eram todas de uma vida regular, metódica, sem
catástrofes, mas sem infrações. O Ezequiel estava atônito. Não podia conciliar
tanta limpeza de costumes com a absoluta ausência de senso moral. A verdade, porém,
é que o contraste existia. Ezequiel ainda advertiu na sutileza do fenômeno e na
conveniência de verificá-lo bem. Dispôs-se a uma longa análise. Entrou a
acompanhar o Neves a toda a parte, em casa, na rua, no teatro, acordado ou
dormindo, de dia ou de noite.
O resultado era sempre o mesmo. A notícia de
uma atrocidade deixava-o interiormente impassível; a de uma indignidade também.
Se assinava qualquer petição (e nunca recusou nenhuma) contra um ato impuro ou
cruel, era por uma razão de conveniência pública, a mesma que o levava a pagar
para a Escola Politécnica, embora não soubesse matemáticas. Gostava de ler
romances e de ir ao teatro; mas não entendia certos lances e expressões, certos
movimentos de indignação, que atribuía a excessos de estilo. Ezequiel não lhe
perdia os sonhos, que eram, às vezes, extraordinários. Este, por exemplo:
sonhou que herdara as riquezas de um nababo, forjando ele mesmo o testamento e
matando o testador. De manhã, ainda na cama, recordou todas as peripécias do
sonho, com os olhos no teto, e soltou um suspiro.
Um dia, um fâmulo do Neves, andando na rua,
viu cair uma carteira do bolso de um homem, que caminhava adiante dele,
apanhou-a e guardou-a. De noite, porém, surgiu-lhe este caso de consciência: —
se um caído era o mesmo que um achado. Referiu o negócio ao Neves, que
lhe perguntou, antes de tudo, se o homem vira cair a carteira; sabendo que não,
levantou os ombros. Mas, conquanto o fâmulo fosse grande amigo dele, o Neves
arrependeu-se do gesto, e, no dia seguinte, recomendou-lhe a entrega da
carteira; eis as circunstâncias do caso. Indo de bonde, o condutor esqueceu-se
de lhe pedir a passagem; Neves, que sabia o valor do dinheiro, saboreou
mentalmente esses duzentos réis caídos;
mas advertiu que algum passageiro poderia ter notado a falta, e,
ostensivamente, por cima da cabeça de outros, deu a moeda ao condutor. Uma ideia
traz outra; Neves lembrou-se que alguém podia ter visto cair a carteira e
apanhá-la o fâmulo; foi a este, e compeliu-o a anunciar o achado. “A
consideração pública, Bernardo, disse ele, é a carteira que nunca se deve
perder.”
Ezequiel notou que este adágio popular —
ladrão que furta a ladrão tem cem anos de perdão, — estava incrustado na
consciência do Neves, e parecia até inventado por ele. Foi o único sentimento
de horror ao crime, que lhe achou; mas, analisando-o, descobriu que não era
senão um sentimento de desforra contra o segundo roubado, o aplauso do logro,
uma consolação no prejuízo, um antegosto do castigo que deve receber todo
aquele que mete a mão na algibeira dos outros.
Realmente, um tal contraste era de ensandecer
ao homem mais ajuizado do universo. O Ezequiel fez essa mesma reflexão aos
amigos e parentes; acrescentou que jurara aos seus deuses achar a razão do
contraste, ou suicidar-se. Sim, ou morreria, ou daria ao mundo civilizado a
explicação de um fenômeno tão estupendo como a contradição da consciência do
Neves com as suas ações exteriores... Enquanto ele falava assim, os olhos
chamejavam muito. Micota, a um sinal do pai, foi buscar à janela uma das
quartinhas d’água, que ali estavam ao fresco, e trouxe-a a Ezequiel. Profundo
Ezequiel! tudo entendeu, mas aceitou a água, bebeu dois ou três goles, e sorriu
para a sobrinha. E continuou dizendo que sim, senhor, que acharia a razão, que
a formularia em um livro de trezentas páginas...
— Trezentas páginas, estão ouvindo? Um livro
grosso assim...
E estendia três dedos. Depois descreveu o
livro. Trezentas páginas, com estampas, uma fotografia da consciência do Neves
e outra das suas ações. Jurava que ia mandar o livro a todas as academias do
universo, com esta conclusão em forma de epígrafe: — “Há virtualmente um
pequeno número de gatunos, que nunca furtaram um par de sapatos”.
— Coitado! diziam os amigos descendo as
escadas. Um homem de tanto talento!
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