11/27/2017

A Húngara (Conto), de Almachio Diniz


A Húngara
Cômodo de hotel. Um foco elétrico esverdinhava o azul papel das paredes.
Revolvido, o leito denunciava em duas covas a pressão de dois corpos que nele se afundaram.
Sara, a húngara, recebia Guanabarino, o cronista teatral, com um estridente sinal de contentamento...
***
 —Aqui estou. Nem sei como acertei.
— Estás apaixonado?
— Crês, Sara, que paixão desponte como um sorriso?
— Quem te disse o meu nome?
— Li-o nos programas.
— Ah! sim. Gostaste do meu canto?
— Não te ouvi.
— Como te agradei?
— Pertencendo a outro. A mulher sem dono custará a topar com um amante. Rolará uma eternidade como a pedra que não cria limo... Tenha um amante e dezenas surgirão...
— Como ele é experiente!
— Vejo todos os dias. Se quiseres arrebatar, deixa-te monopolizar por Gustavo. Ouve: agradei-me de ti porque, pelo braço dele, no teu longo manteau de sedas e rendas, pareceste-me uma conquista difícil. Vejo dezenas de mulheres no Café-Concerto. Tyroleanas, que encantam com o canariar de suas vozes; francesas, que arrebatam com o savoir dire as malícias mais leves; espanholas, que excitam com o sensualismo de seus sapateados; americanas, que lembram bugios nos saltos do cake-walk... Todas são-me indiferentes, por todas passo na certeza de cruzar com cocottes para todo o mundo... De começo estive tentado a empreender uma ménage à trois com uma acrobata. Por que assim? A ginasta era um corpo proibido e vivia aferrolhado à concupiscência de seu próprio pai. Tive horror a essa monstruosidade e o desejo passou. Finalmente encontrei-me contigo...
— Ladrãozinho! Como ele sabe contar!
— Junto de Gustavo acendeste-me a centelha de um capricho: trair o teu amante. Tinha eu entrado no Teatro naquela hora mesmo. O grupo de amigos atraiu-me e a atração de todos eras tu. Olhei-te e fiz-te um cumprimento com a cabeça. Não me teres sido apresentada, significou que o teu galã zelava demais. Ah! A cultura humana tem o maior testemunho de seu progresso na sabedoria dos olhares que as pessoas cultas podem trocar. Viste como te compreendi e logo te apertei os dedos, no caminho para o buffet? Atinaste como consegui retirar, por um momento, Gustavo de junto de ti e como tratamos, quais velhos conhecidos este encontro? Na sombra dos pés da mesa, os nossos corpos se trocavam desejos nos encontros, animavam-se também com os prometimentos mais claros, e as nossas carnes se queimavam por detrás dos tecidos de nossas vestias. Tudo isto, porém, ainda não é paixão. É um grito do instinto animal. Só nos não apaixonaremos se não quisermos...
— Como sabes a vida!
— Precisas prender Gustavo. A época é das melhores. O dinheiro passa-lhe pelas mãos como as águas pelos rios para o mar. Segura-o bem, porque, além do mais, é um amante que, por força de ter mulher e filhos e morar longe, te dará muito tempo aos amores furtados.
— Não os quererei. Sempre fui parcimoniosa. Juro-te como o meu corpo não se tem dado a muitos. Fui concubina de um general, durante anos, e só o traí uma só vez: com o pai de meu filho. Gosto de um amor só, de ter um dono e de ser cobiçada. Nem sei como te recebi agora... Em todo o caso, o Gustavo não me agrada... Prefiro-te a ele, serás o meu amante...
— Errarás se assim preferires, Sara. Não tenho posses para te manter, ao passo que o Gustavo...
— Que tem isso? Tenho eu o meu ofício. O empresário paga-me bem, ganho para o luxo e para a mesa. Dou-me a quem eu quero...
— Neste caso ficarás com ele...
— Por que então?
— Conheceste-o primeiro.
— Não importa isso. A ele conheci na manhã, a ti à noite, ambos no mesmo dia. Vi-o a bordo. Trouxe-me ele para a terra. Encaminhou-me do hotel, e... má recomendação tem dado com os multifários obséquios, com os gastos e as gentilezas, somente com essas coisas... Ora, uma mulher como eu, ou quer o homem, ou não o quer... De minha parte dispenso as galanterias...
— Tudo isto concorre para lhe fazeres teu amante, para dispores de sua bolsa...
— E fico contigo para o meu verdadeiro amante, para o meu especial amor...
— Lá com isto combino eu.
— Assim, vá que seja e comecemos...
— Que tenho eu para tanto me olhares?...
— Fixo a tua imagem. Tens um olhar de fogo. Os teus olhos incandescentes são dois vulcões. Como te chamas?
— Guanabarino, um nome difícil.
— Como?
— Guana-ba-rino!
— Guana...
—... barino.
— Ah! sei. Guanabarino. É a primeira vez que ouço esse nome. És brasileiro?
— De corpo e alma. E tu?
— Filha do sul da Hungria. Vim criança para a tua terra. Fui noiva, aprendi a cantar com um meu amante e vivo disto...
— Tens percorrido meio-mundo, hein?
— Não: conheço a tua pátria e a minha, em pálida reminiscência...
— Dize outra vez esse termo...
— Reminiscência.
— Que lindo! Parece-me, Sara, que estás a dar uma série de beijos...
— Como ele é ardente!
— De verdade?
— A tua alma está fugindo-te pelos olhos...
— Junto de um espírito como o teu, como ela não querer a transfusão carnal? Já notaste o frio que regela as mãos do homem emocionado junto da mulher que o escalda?...
— Ih!... Que gelo!
— Sabes explicar?
— Não. É difícil?
— Ao contrário. Bem fácil. O sangue todo afluiu-me ao coração. As extremidades resfriaram-se. Tudo isto já é começo de paixão... Falaste nos meus olhos! E os teus? São capazes de comprar o mundo com um só relance.
— Costumas ser gentil com todas as mulheres de teu conhecimento?
— Que graça! Se costumasse, haviam de estar bem gastas as minhas gentilezas.
— Tens gozado tanto?
— Inda perguntas?! Não sabes que o amor se fez para os temperamentos tropicais, para os homens das terras do Sol, como eu o sou? Tenho um desejo para cada mulher e, posso parodiar um dito desrespeitado a toda hora: sinto que todo o teu sexo não seja uma só mulher para esta ser a minha amante...
— Caloroso! Deita-te aqui, Guanabarino!
— Não.
— Desmentes o que asseguras.
— Já tiveste o teu quinhão.
— Como assim?
— Já te possuiu o Gustavo...
— Juro-te que não. Tem sido o meu apresentante, e, a verdade seja revelada, ainda não desejou...
— De fato?
— Juro-te eu.
— Ao depois dele... nunca!
— Mas, por quê? Metes-me medo...
— Por nada! O Gustavo é um homem para se temer...
— E por que me influis para ser a sua amante?
— Porque o encontrei no fastígio da tua posse, porque vejo que do seu concubinato bem podes usufruir grandes proventos. E, já agora te direi: pouco mais fará ele do que hoje... Entretanto, como homem de recursos, talvez ainda não te desse a menor prova do que seja...
— Fez-me hoje a oblata de um colar de libras...
— Um colar?
— Sim.
— De libras esterlinas?
— Conheces?
— Acho que não. Agora reparo que tens dois fachos lindíssimos...
— Foram presente.
— Fico esmorecido. Nem sei como hei de portar-me para contigo sem outros meios que não esta aparência palavrosa e este atrevimento que me trouxe aqui...
— Não amo os homens pelas riquezas. Tenho os meus rendimentos de chanteuse. Às vezes sucede amar os que podem. Neste caso, sou a primeira a não rejeitar o que me dão. Um deputado deu-me este anel...
— Adorável!
— Um advogado, ao depois de uma perseguição de meses, para eu o receber, ofertou-me estas pulseiras... No entanto, o pai de meu filho aquinhoou-me apenas com o seu amor... Assim vou passando, umas em cheio, outras...
— Muito em cheio, Sara!
— Tu falas? Um mineiro, hoje desesperançado de conseguir a minha retribuição, deu-me estes correntões para atilhos...
— Que lindas formas!
— Mostro-te apenas os atilhos e não as pernas...
— E eu vejo tudo! É admirável como o fraise das meias se destaca no gesso das tuas peles...
— Pois bem, Guanabarino! Permite que eu te diga; amantes que me cobrissem de ouro tenho tido às carradas... mas, um só que me dissesse coisas tão lindas, nunca tive... A palavra inescutada é também uma joia preciosa. E para retribuir tantas distinções inéditas só um beijo de muita paixão, só um beijo...
— Basta, Sara! Basta! Prometeste um e deste mais de mil...
— Longe disto, tu não me recompensaste com um só... Reparei bem...
— Desculpa. Mas, quando sou beijado, não beijo. Esta carícia deve ser sempre espontânea e impagável. E eu não cometo a grosseira sensualidade de pagar uma carícia...
— Ao depois de ti, nem mais sei como receba Gustavo, amanhã...
— Com todo o fervor...
— Não te enciúmas?
— Não. Estimarei que possas flutuar aos olhos do mundo na aeronave de ouro que ele te der.
— Queres ver o colar de hoje?
— Verei.
— Ele me prometeu para amanhã um relógio e um correntão.
— Aproveita, Sara! Gustavo desperdiça dinheiros de herança...
— Vês tu o belo colar?
— É lindo!... Ele to deu?
— Sim.
— Esta joia?
— Que significa o teu espanto?
— É que este colar é...
— Falso?
— Não! Uma joia de família, uma joia da mulher de Gustavo...
— Agora é minha!
— Estás no teu direito. Deixa-o amar-te e colhe os seus esbanjamentos...
— E só a ti amarei, Guanabarino!...
 Pela madrugada, a libertina abria a porta para o sucessor de Gustavo evadir-se, e recebia, instantes depois, reticenciando o silêncio sonolento do casarão do hotel, a figura caprina de um mal conhecido vizinho de quarto...

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