A filha do faroleiro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Manhã alegre
de outubro, no sul. A cidade do Desterro acordara há muito pela linha do cais,
no seu contínuo movimento marítimo. O sol, ascendendo gloriosamente por trás do
morro do Antão, lançava a princípio os seus grandes panos de luz sobre as
montanhas fronteiras correndo na terra firme; depois estendia-os, pouco a
pouco, às terras altas da ilha onde, pela distância, disposição e relevo das
massas de argila e granito se iam desenhando com nitidez os quadrados irregulares
das roças, de um verde de tons infindos. Toda a vasta e magnífica baía começava
a resplandecer então como uma imensa catalufa líquida em que se espalhavam ao
litoral, à calmaria da hora, as paisagens e o casario branco e rareado dos
sítios alcandorados, aqui, além, sobre cabeças e cabos, como imensos ninhos
risonhos onde a felicidade habita. Na bela curva do porto, fechada a noroeste
pelo monte do Estreito e a sueste pela ponta do Zé Mendes, cruzavam-se, em
velejos graciosos, lanchas, canoas e botes,
com velas alvas de linho. Muito fora, para o largo, a multidão dos navios
de longo curso e de cabotagem: cascos elevados de barcas, bordas de lúgares e
brigues, de polacas e patachos, e talhes finos de escunas e iates coroados pelo
arvoredo dos mastros, artisticamente entrelaçado à larga trama delicada e aérea
da cordoalha. Mais além, para o sul, onde a recortada costa insular finda em
ponta, ponta de penedia empinada, entrevia-se, através os rasgões da bruma
argêntea, já em dispersão e em fuga sobre a vastidão das águas, os pórticos
amplos da barra abrindo para os rumos austrais – o cabo dos Naufragados e três
ilhotes graníticos, rendados e meio fulvos na orla afastada e nostálgica do
horizonte do mar.
De pé, no
cimo da escada, ao extremo da longa ponte da Capitania, em que se erguia um
alto guindaste de ferro em meio às duas linhas dos turcos de onde pendiam,
içados, os escaleres do serviço — eu e o meu camarada Horácio de Carvalho,
oficial de diligências da repartição onde éramos empregados, contemplávamos,
mudos e enlevados, o quadro admirável do alvorecer na baía, enquanto embaixo,
na vaga, ao longo das muralhas circulares do antigo forte de Santa Bárbara, a
poucos metros dali, um grupo de remadores em faina, numa “lupa” maruja,
desfazia a amarração da catraia que nos devia levar ao farol de Naufragados.
Assim nos achávamos quando uma figura alta de caboclo surgia de repente a meu
lado, grosso e atlético na sua japona escura de oleado, a mão erguida em
continência até o boné em palmatória, de pala curta encurvada: — Pronto, seu secretário. ‘Stá atracada a
catraia...
Acomodando
os sobretudos e livros que levávamos, descemos logo a escada, tomando lugar à
popa, sobre as largas bancadas recobertas de tapetes de linho branco orlados de
pano azul, com âncoras vermelhas aos ângulos. O marinheiro, que embarcara em
seguida e se fora colocar à ré do guarda-patrão, depois de me dirigir uma
pergunta a que dei assentimento, gritou para os tripulantes:
— Larga! E
aguentaremos pra adiante, até que venha uma aragem...
Doze pulsos
musculosos vibraram os punhos dos remos, cujas longas e polidas pás de pinho de
Riga entraram a bater a superfície serena das águas com chapes-chapes
contínuos, alternando ritmicamente com o cantar monótono e áspero das
toleteiras metálicas.
A catraia
começou a resvalar pesadamente no meio da calmaria, uma calmaria de fim de
sueste, completa, absoluta, “podre”, como dizem os marujos. Mas o céu, no alto,
era azul, de um azul macio e límpido,
sob o pálio de ouro do sol. E à proporção que avançávamos para o meio da baía,
onde velas e velas passavam, lentamente, em revoadas alvíssimas, a amontoação
dos navios de longo curso e de cabotagem se ia gradativamente ampliando e cada
casco destacava, aproado à maré, nas amarras, a mastreação muito nítida à loura
luz da manhã.
Reclinados à
borda, e ainda enlevados no pitoresco panorama da rade, olhávamos agora,
não sem uma vaga nostalgia, as casas brancas da cidade recuando pouco a pouco,
sob as cintilações de ouro do sol, na linha rasa do cais. Era uma
profusão de paredes fulgurantes no mar de almagre dos telhados, de onde
irrompiam para o alto, aqui, ali, como grandes brochadas de cal, as torres
altas das igrejas dispostas aos pares, muito eretas, com as suas cruzes de
ferro como se fossem traçadas, à pena, no cetim azul do Espaço.
O mar nos
atraía porém no seu lençol de esmeralda, estreitado entre o continente e a
ilha, expondo a cada margem, em recortes arenosos, alvuras doces de praias: e,
passada a linha dos barcos, esquecemos a cidade, fascinados pelos ninhos
risonhos das enseadas e sacos, bordando a costa insular para o sul do Desterro
a Naufragados.
Pela ilhota
do Largo, um vago sopro de brisa começou de frisar levemente a serenidade das
águas. O patrão mandou então içar velas: e dois latinos alvacentos palpitaram
nos mastros, imensamente abertos, como um estranho, gigantesco par de asas em
voo Mas a aragem mal pudera bojá-los a um bordo, nas lassas escotas delgadas. E
a catraia parecia adormentada no banzeiro, sem uma esteira de espuma popa fora,
ou burburinho cantante ao talha mar.
Assim
rolamos longas horas, sem quase nada adiantarmos, até que enfrentamos o arraial
da Tapera, para onde mandei aproar. Aí lançavam redes e pelo alto dos cômoros
cresciam já alguns pequenos montes de peixe,
cobertos com ramos de árvores. Por toda a parte o meio-dia jorrava profusamente
do alto um fino pó de ouro morno — e como estivéssemos só com o café da manhã,
ordenei ao patrão fosse arranjar uns peixes para uma “caldeirada”. O prestante
marinheiro partiu para o recanto da costa onde andavam as redes e daí a
instantes volvia com uma cambulhada de corvinas frescas. Rapidamente se fez um
fogo de gravetos e, pronto o “caldo”, foi-nos ele servido, em pratos de uma
cabana próxima, à sombra de um laranjal, enquanto a catraia, abicada na areia,
as velas ferradas nas altas vergas recurvas, balouçava os topes no ar. E um
rapazinho grumete, de quinze anos mais ou menos, a face róseo-morena e de
negros olhos nostálgicos, que ficara a tomar conta da embarcação, sentado ao
banco de proa, alegremente cantava:
Em que ditosos momentos
Dorme a veleira catraia,
Na calma do mar, dos ventos
Sobre as areias da praia!
Duas horas
depois, já a embarcação velejando e ao rumo, a aragem refrescava e, em algumas
bordadas, apesar da maré de enchente, alcançávamos Naufragados. Todo esse
último trecho da viagem, eu e o meu companheiro, o fizemos estirados às longas
bancadas de ré; com as roupas a bem dizer escaldando, mordidos intensamente nas
mãos e no rosto pela viva luz solar que nos batia de chapa, entediados pela
singradura morosa e esquecidos das belas paisagens litorais e do próprio Mar,
que nessa época irresistivelmente nos levava a passarmos domingos inteiros a
bordejar à vela em escaleres ou baleeiras e acordarmos com as estrelas para as
pescarias ao largo.
Entretanto,
ao pisar o cais de pedra do porto eu me sentia bem outro, no bom humor da
chegada. O Horácio, muito alto no seu todo da houssard, sobraçando o sobretudo
e os livros, o grande pince-nez de
tartaruga acavalado ao nariz, a face pálida meio tostada agora pelo sol,
dizia-se ainda “maçado da retardada viagem”. Mas no seu vago sorriso
transparecia sem dúvida um alegre
estado da alma.
Para se ir
de desembarque ao farol era necessário percorrer-se uma extensão de mil metros,
ou mais a galgar, por um sinuoso atalho de cabras, a grande lombada de outeiros
que começa em Caiacanga e vem morrer em Naufragados. Conhecendo bem o local,
meti-me logo a caminho, sem esperar que o patrão e os remadores saltassem e,
seguido do meu amigo, que às vezes tenteava cautelosamente as ervagens para não
rolar morro abaixo, entrei a recontar-lhe alegremente a deliciosa impressão que
eu experimentara, quando ali estivera pela primeira vez, ao ver a filha do 1º
faroleiro, a Rosália; uma morena de rara e adorável beleza.
— Fora isso
há quatro anos, dizia-lhe eu, quando tu andavas ainda lá pelo Rio ou São Paulo.
Eu tinha vindo examinar o farol. A inspeção fora rápida porque o dia ameaçava
temporal e a embarcação que me trouxera — um velho escaler de cavernas partidas
e metendo água — não dava para aguentar o tempo, caso se fizesse preciso
arrastá-lo. Ainda assim, pude percorrer a grande casa dos faroleiros e a torre
do farol, examinar o aparelho da lâmpada e os sobressalentes. Foi em uma das
seções dessa casa — a que está hoje de luto pela morte do chefe — que vi a
Rosália, uma menina de treze anos então, cujos olhos negros e lindos, a pele
doce e de jambo os cabelos pretos e densos caindo-lhe até muito abaixo da
cinta, fascinavam vivamente. E era de tal graça ingênua essa adorável criança,
no seu porte alto e cheio, que a gente esquecia-se a olhá-la, num enlevo...
Enfim, meu amigo, uma verdadeira formosura. Contemplei-a por instantes apenas,
pois já estava a embarcar. Mas a impressão experimentada, ao deixar nesse dia o
farol, ficou-me indelével no espírito. Vais ver daqui a pouco a Rosália, que,
apesar de um lustre volvido, deve estar ainda a mesma, ou mais formosa, talvez.
E mais não digo, por enquanto, para que tenhas uma verdadeira surpresa.
O Horácio,
que caminhava mais atrás e já cansado da subida íngreme, às minhas últimas
frases murmurou apenas monossílabos, como numa vaga dúvida de tudo o que eu lhe
narrava...
No entanto
chegávamos ao alto da vasta colina onde se abria o amplo terrapleno em que
assentavam a torre branca do farol e a casa dos faroleiros: e paramos um pouco,
a descansar sob as raras árvores copadas que aí ensombravam o atalho, admirando
a imensa marinha circundante envolvendo todo o cabo. O sol, posto fosse
de primavera e descesse já do zênite, tinha rutilação ardentíssima e peneirava
moedinhas de ouro dançantes através as rendas das ramas que tremiam ao vento. E
apesar dessa aragem do mar era tal a mornidão do ambiente que uma sonolência
invadia-nos, argumentada pelo contínuo zumbir dos besouros e o chiar
melancólico e monótono das primeiras cigarras. O verão antecipava-se
estranhamente naquele ano.
Como porém o
serviço do farol aguardava-nos com urgência, recomeçamos a marcha que se fazia
agora por caminho plano e livre, de boas andadas. Ao cairmos no descampado do
outeiro encontramos o 2o faroleiro que, tendo visto a catraia
atracar, corria já ao nosso encontro. Apenas trocamos os primeiros
cumprimentos, eu e o meu camarada demos-lhe os nossos pêsames pela morte do
irmão, o 1º faroleiro. E eu, curioso de pormenores sobre o passamento desse
obscuro mas digno homem, que conheci durante meia dúzia de anos, sempre forte e
atlético embora já na velhice, interroguei:
— Mas como
fora a morte do Espírito Santo, coitado, assim tão de repente, pois não havia
ainda um mês estivera na Capitania? Não obstante a idade, estava forte, alegre,
bem disposto, revelando ainda muita vida. Imagino em que desolação se não acha
a família...
O homem,
marchando ao meu lado, o pescoço meio vergado agora pelas desilusões e os
desgostos, os cabelos e a barba mais grisalhos que nunca, respondeu-me numa voz
trêmula e desolada:
— É verdade,
seu secretário, ninguém esperava por
aquela: O Joaquim, apesar dos setenta, andava ainda muito rijo, trabalhava como
há quinze ou vinte anos passados, e nunca se queixava de nada. E para ver, eu
lhe conto. Quando se fez a última pintura, no farol, este ano, foi ainda ele
quem subiu à cúpula da torre, a pulso, para pintar a agulha e os para-raios...
De repente, e quando menos se esperava, apanhou uma que o levou logo à cama...
E não houve nada que o aliviasse, nem remédios de botica. Em cinco dias deu a
alma ao Altíssimo. E lá está enterrado no cemitério do Pântano, desde a semana
atrasada...
Aproximávamo-nos
da vasta casa dos faroleiros. Pela frente, no terreiro limpo e varrido, um
grupo de crianças de luto traquinava. À empena do norte, elevava-se um alto
cercado de jardim e de horta, abrigado dos ventos furiosos do sul. Ao lado
oposto, mais avançada para o mar, sobre o descalvado do cabo, a torre alta do
farol, troncônica e de alvenaria branca, destacando no céu azulado como uma das
grandes e luminosas catedrais da Esperança e do Bem, que se erguem
humanitariamente por todas as paragens litorais do globo, beirando de um
gigantesco rosário faiscante de belas estrelas de ouro as ilhas, penínsulas e
continentes, para guiarem ao asilo remansoso e seguro os Nautas desventurados
que, pelas desoladas noites revoltas de tormenta, buscam ansiosamente as
enseadas e portos de abrigo, fugindo aos tremendos escarcéus do alto mar.
Depois, eram os grossos vagalhões do Atlântico que vinham, iracundamente
rugindo, desmanchar-se contra a penedia em rolos de espuma alva.
A certa
distância, eu vi assomarem à porta de uma das seções do amplo casarão duas
matronas de preto — a mulher do 2º faroleiro e a viúva cunhada. Estranhando a
ausência da Rosália, cuja lembrança me bailava vivamente no espírito, perguntei
ao bom do homem que caminhava a meu lado:
— Então, Sr.
Francisco, que é da sua sobrinha Rosália, que eu aqui encontrei da vez
passada?! Casou ou está passando tempos em casa de parentes aí para algum
arraial?...
— A Rosália?
seu secretário, acudiu o homem
imediatamente, na sua voz de pesar. A Rosália anda por aí, bonita ainda, é verdade,
mas totalmente louca, pobrezinha! Vossa senhoria não sabe o que houve? o
Joaquim não lhe contou? Pois eu lhe conto. Faz um ano, agora em junho, que se
deu uma grande desgraça. A Rosália ia casar, por esse tempo, com um rapaz da
Pinheira, que aqui esteve de uma feita e a pediu ao pai. O Joaquim e a “mana” não lhe negaram a mão da filha, porque o
rapaz era bom, de gente pobre e honrada, mas um mouro de trabalho: vivia da
pescaria, já tendo a sua casinha e umas braças de terra, que dava a “meias” no
lugar. As bodas estavam tratadas para o São João. Tinha-se falado ao rapaz para
vir nas vésperas pra cá, e daqui os dois se irem “receber”, na igrejinha do
Pântano... No dia aprazado, o rapaz, trazendo as suas coisas e “preparos”,
embarcou numa canoa com dois camaradas e fez-se de proa para cá. Mas o tempo
não estava seguro e, logo ao
amanhecer, todos nós começamos a cismar que poderia sobrevir de repente um
transtorno. E assim foi, por nossa desgraça, porque quando a canoa em que vinha
o Tomás apontou no primeiro ilhote dos Papagaios, o pampeiro caiu, furioso,
acompanhado de uma trovoada que parecia o fim do mundo. A canoa rompeu bem até
à ilhota da Fortaleza, mas ao chegar a meio do canal da barra, onde o vento e
as águas eram um Deus nos acuda, e foi virar para o porto, entrevelou-se nas
ondas e desapareceu. Nós que estávamos a vê-la, lá do alto da torre, deitamos
logo a correr para a ponta a arriar a baleeira, mas já ninguém viu mais nada,
além da canoa emborcada... Daí a três dias dois dos corpos foram parar à
Tapera: o de Tomás, porém, nunca mais apareceu... Assim que deu com o sinistro,
a Rosália caiu com um vagado, e teve muitos seguidos durante quase um mês.
Quando isso passou, a coitadinha entrou a malucar, a falar sozinha, a não
“assuntar” direito o que dizia... De então para cá, quando o sol está
vai-não-vai, à tardinha, pega num braçado de flores que colhe atabalhoadamente
no jardim, e lá se atira a correr em direção à ponta do cabo, onde se afundou a
canoa. Aí, de pé sobre as rochas mais avançadas, e inclinada para as vagas,
põe-se a jogar, aos punhados, aquelas flores no mar, como se elas porventura
caíssem sobre o sepulcro do noivo... O Joaquim, ao ver a filha nesse estado,
pegou a cismar e a entristecer, caindo por fim muito mal. Correu para a botica,
mas foi o mesmo que nada. Ao cabo de quinze dias sucedeu o que já lhe contei, e
a viúva, infeliz, ficou por aí a lastimar-se, com os filhos na orfandade...
Enfim, seu secretário, foi uma grande
desgraça.
Quando o
homem findou, eu e o meu camarada, vivamente impressionados, exclamamos:
— É verdade,
Sr. Francisco, que terrível desgraça!...
Mas já
chegávamos à primeira seção do vasto prédio e, saudando as senhoras e crianças,
entramos para uma sala onde logo nos foi servido café. E como desejávamos
voltar à cidade nessa mesma tarde, apenas descansamos um instante, passamos a
cuidar do inventário, transportando-nos, acompanhados do 2o
faroleiro, ao compartimento ou depósito em que se achavam os sobressalentes e
demais material. No depósito havia quatro janelas abrindo para um e outro lado
do terreiro, e duas pequenas portas — uma para a torre do farol e a outra, pela qual passaremos,
comunicando com a enorme habitação dos faroleiros e do pessoal da baleeira do
serviço, que, uma ou duas vezes por mês, viaja entre o farol e a capital.
Prateleiras, como as de uma tasca, tomavam as paredes de alto a baixo, exibindo
uma multidão de objetos de todo o gênero e grandes latas cilíndricas de óleo
mineral.
Sentado numa
cadeira de ferro junto de uma pequena mesa, o oficial de diligências abriu os
livros e, tirando o tinteiro e a pena, entrou a inventariar os objetos por
classes, número, estado de conservação e qualidades, enquanto o faroleiro nos
ia mostrando um a um...
Posto que
atento ao serviço, eu não esquecia a Rosália, num grande desejo de a ver, como
outrora, na sua beleza adorável. E olhava de vez em quando o terreiro
que se alongava pelo cabo batido da aragem do mar e revolvia no espírito a
dolorosa história da pobre rapariga — quando ela subitamente apareceu rente à
janela onde eu me achava, atacada no seu vestido afogado de luto, mas os olhos
fascinantes no rosto inefável de virgem, carminado pelo sol. Saudou-me
silenciosamente, com um gracioso mover de cabeça e estendeu-me a mão pequenina,
roliça e de unhas rosadas, que apertei sorrindo, mas com uma emoção de mágoa.
Depois, desviando de mim os seus olhos encantadores, debruados de longos cílios
veludosos, pousou-os no meu amigo, e teve um vago sorriso. O Horácio,
suspendendo por instantes a escrita, voltou-se, cumprimentou-a e pôs-se a
fixá-la também. Mas fora só um relance, porque ela fugiu logo, num ímpeto
incerto de louca e numa grande mudez...
E agora,
mais penalizado e mais triste, eu acompanhava com a vista o seu vulto alto e
negro, marchando a passadas violentas, mas ereta e garbosamente, para os
rochedos avançados do cabo. Ao voltar-me para dentro, deparou-se com o meigo
olhar do meu amigo, buscando vivamente o meu através dos vidros do seu pince-nez de míope. E ele murmurou com
tristeza:
— Muito
linda na verdade, a Rosália, coitada!...
Quando o
inventário findou já o sol, no outro lado do mar, ocultava a sua luz por trás
dos montes de oeste.
Saímos a dar
uma volta pelo cabo. E como a cinza da noite começasse a rolar do alto e se
acendesse já a leste a pontilhação dos astros, entramos na torre do farol para
a nossa visita ao aparelho da lâmpada, que radiava lá acima, pelo seu foco
colossal, aberto como uma fantástica e monstruosa tulipa de ouro, o qual
encerrado num grande círculo envidraçado, com os seus eclipses instantâneos,
banhava de largas faixas de luz a barra, o longo canal da baía e a amplidão
negra, desolada e nostálgica do Atlântico...
Em seguida
embarcamos, entrando a bordejar na catraia em demanda da cidade. O céu estava
deliciosamente sereno, muito alto e radioso na imensa rede prateada das
estrelas. O mar, açoutado pelo vento do largo, dobrava, em curtas vagas
espumosas, aqui e além feericamente malhado de estrias de luz escarlate, sob os
farolins dos navios e os combustores erguidos da profusa iluminação do cais.
Aconchegados à popa, nos
sobretudos de inverno, por causa do vento frio do mar, eu e o meu amigo, os
olhos alçados ao Azul, nos embebíamos fundamente do esplendor sideral, trocando
ainda palavras de compaixão e de afeto sobre a jovem e desventurosa Rosália,
flor de beleza e de graça, irremediavelmente perdida para sempre na noite turva
e sinistra, pior sem dúvida que a Morte, da loucura formidável!
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