Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Vem ao seu almoço, não?
— São horas; traga-me hoje duas torradas.
— E o café com leite?
— Que pergunta!
Passava-se este diálogo no Carceller, em uma manhã do
ano de 1860, entre um dos caixeiros da casa e um constante freguês que ali se
demorava perto de duas horas almoçando e lendo os jornais. O caixeiro não se
demorou em servir o freguês; veio a clássica bandeja com o açucareiro, a
cafeteira, a leiteira, a xícara, as torradas, os palitos e o guardanapo.
— Agora o Jornal
do Comércio.
— Está ocupado.
— E o Diário?
— Também está ocupado.
— Onde está o Jornal?
— Tem-no aquele sujeito de gravata amarela.
O freguês resignou-se e começou a almoçar dividindo a
sua atenção entre as torradas e o sujeito da gravata amarela. Posto que muitas
vezes se desse aquele inconveniente de já estar ocupado o Jornal do Comércio, o nosso homem parecia extremamente irritado, e
a um observador fino não seria difícil conhecer que ele tinha um sistema
nervoso de fácil irritação.
Com a irritação de um contrastava a tranquilidade do
outro. O leitor da gravata amarela tinha a calma natural que a posse inspira ao
homem. Já havia engolido o almoço, tinha entre os dentes um alvíssimo palito
cuja ponta mastigava, cruzara as pernas, encostara-se à parede e lia
voluptuosamente os a pedido da folha. Era um destes homens que leem tudo e não
leem nada; percorria os primeiros períodos de um artigo, ia ler os últimos,
voltava aos primeiros, passava a outro artigo, virava e revirava a folha, como
se não houvesse para ele nenhuma outra ocupação. Algumas vezes parecia disposto
a deitar a folha sobre a mesa, e o outro que o espreitava, ia-se levantando
para a ir buscar com medo que outro pretendente adiantasse a mão. Engano! O
sujeito da gravata amarela não concluía o gesto e continuava a ler
tranquilamente, como se fosse o único assinante daquele exemplar.
Durante esta longa leitura, entremeada de negaças sem
intenção, concluiu o outro o almoço, pediu um charuto, acendeu-o e esperou pelo
Jornal. Representava ter quarenta
anos; era um pouco calvo, meão na altura, olhos amortecidos, barba cerrada;
vestia um paletó verde-garrafa, abotoado até o pescoço, deixando aparecer uma
gravata preta algum tanto amarrotada pelo uso. Não era fácil adivinhar o estado
da fortuna deste sujeito; a roupa tinha certa decência, posto que não fosse
absolutamente nova; a camisa estava lavada, e a barba penteada com certo apuro.
Podia-se, entretanto, aventurar a suposição de que os seus ganhos eram
pequenos, mas que ele fazia das fraquezas forças para continuar hábitos de
limpeza e alinho contraídos em tempos melhores.
O caixeiro compadeceu-se da angústia do nosso homem, e
lançando mão de um pequeno jornal que havia sobre uma mesa, foi propor uma
troca ao leitor da gravata amarela.
— Que é? perguntou este levantando a cabeça do Jornal.
— Quer trocar por este?
O leitor da gravata amarela olhou com indiferença para
a folha que o caixeiro lhe apresentava, deu duas voltas ao Jornal do Comércio, e o entregou ao caixeiro, dizendo:
— Já acabei.
Pagou depois o almoço, saiu até à porta, olhou para um
e outro lado, e saiu vagarosamente como um homem que não tem nenhuma ocupação
debaixo do sol.
— Aqui está o Jornal,
Sr. Mendonça, disse o caixeiro entregando a folha ao impaciente freguês.
— Já era tempo! disse este recebendo a folha, e
preparando-se para fazer o mesmo que o leitor da gravata amarela.
Mendonça começou a ler o Jornal. Era outro gênero de leitor; não deixava passar uma linha
desde a primeira até à última, inclusive os anúncios teatrais, posto que não
frequentasse espetáculos.
Já ele percorria vagarosamente a terceira página,
quando lhe surgiu aos olhos um anúncio singular. Começava então a florescer
naquele tempo certo costume transatlântico de tratar na imprensa negócios de
coração ou de arranjos domésticos. O costume não me parece bom, nem mau. Alguns
têm colhido vantagens dele; não é raro que um senhor solteiro ou viúvo precise
de uma moça para lhe cuidar da casa, e ache uma excelente pessoa que lhe cuide
da casa e do coração.
Desta vez não se tratava de um senhor, tratava-se de
uma senhora que declarava ter alguma coisa de seu, e desejava casar com um
homem de 40 anos para cima. Pedia que deixasse carta na tipografia com as
iniciais P. P. P. Qualquer homem menos aventuroso refletiria logo que uma
senhora, com alguma coisa de seu, não deixaria de achar marido sem recorrer ao
anúncio. O dinheiro é uma espécie de molho que faz passar na goela as mais
insípidas viandas deste mundo. Portanto, ou o anúncio era uma pulha solene, ou
a anunciante tinha muito pouco de seu, tão pouco, que não valeria a pena de
escrever uma carta.
Mendonça pensou nisto, mas rapidamente; era homem dado
ao mistério, e entrevia naquele anúncio um aceno da sorte a seu favor. Demais
que perderia ele em arriscar uma carta? Suas relações eram poucas; se fosse
pulha não teria nunca uma publicidade que lhe fizesse mal.
Feita esta reflexão acabou de ler o Jornal, pagou o almoço e saiu com a
intenção firme de ir deixar uma carta na tipografia. Daí a uma hora estava a
carta no lugar indicado, e Mendonça aguardou os acontecimentos com a confiança
de um homem que faz depender o seu destino do acaso.
No dia seguinte de manhã, não se arriscou a ir ler o Jornal no Carceller; foi à padaria que
lhe ficava defronte de casa na Rua da Assembleia, e leu um anúncio em que se
convidava o correspondente A. A. A. a ir a tal rua, número tantos.
Correu Mendonça ao almoço e, uma hora depois, seguia
para a casa da misteriosa anunciante, não sem que lhe palpitasse o coração
entre a esperança e o natural receio que acompanha esta virtude, ainda nos
corações mais animosos.
— Quem é? perguntou uma preta do patamar.
— Sou a pessoa que escreveu uma carta…
— Ah, faça o favor de entrar…
Mendonça subiu os degraus que lhe faltavam, e foi
introduzido numa sala onde a preta lhe disse que esperasse um pouco.
A sala estava mobiliada com algum apuro e gosto.
Indicava certa abastança. Tinha o chão forrado de palhinha, e cortinas brancas
nas janelas. Das paredes pendiam algumas gravuras de preço, cópias de quadros
célebres. Havia um piano aberto tendo na estante um livro de sonatas alemãs.
Mendonça percorreu todos estes objetos, sem reparar muito neles, cheio como
estava do desejo de conhecer a sua noiva.
Mas não aparecia a dita noiva e Mendonça estava cada
vez mais impaciente. Entrou a conjecturar quem seria:
— É naturalmente alguma velha decrépita, pensou ele;
alguma mulher corcunda e coxa, algum milagre de fealdade que a sorte me guarda.
E logo depois desta reflexão melancólica vinha outra mais risonha.
— E por que será assim? continuava ele. O destino tem
segredos que ninguém pode devassar; o melhor é esperar tranquilamente e não ir
adiante do tempo.
Nestas alternativas do pensamento decorreram largos
minutos. Só no fim de meia hora ouviu Mendonça uns ruge-ruge de seda que lhe
anunciaram a chegada da pessoa. Lançou um rápido olhar para o espelho e
esperou. Abriu-se a porta e entrou a anunciante.
Era uma mulher bonita, representando ter 25 anos de idade,
vestida com esmero e graça. Andava com a mesma placidez do cisne que atravessa
um tanque, e tinha na voz e no olhar a mesma placidez do andar.
Entrou e estendeu a mão a Mendonça, que se levantara e
dera um passo para ela. A mão era macia e branca; Mendonça apertou-lha trêmulo
e deslumbrado.
Não sendo comuns situações iguais a esta, não sei como
imaginará o leitor o sentimento de Mendonça em frente da moça. Era de rigor e
natural um largo silêncio, durante o qual ambos se sentaram e olharam um para o
outro. Mendonça já estava arrependido do passo que dera; como podia aquela
moça, bonita, elegante, abastada, recorrer ao Jornal do Comércio para obter um marido? Mendonça imaginou que era
vítima de algum logro. No entanto era necessário sair do embaraço e dar algum
desfecho razoável à situação. Não acusem o escritor de algumas contradições que
aí se revelam no espírito de Mendonça; o autor não quer desnaturar o caráter do
personagem, quer expô-lo.
— Vi um anúncio, minha senhora, disse Mendonça, e
escrevi uma carta a qual me foi respondida hoje com outro anúncio. Dizia-me que
viesse aqui ter; obedeci. Vejo porém que ambos nós nos enganamos…
— Por quê? perguntou ela.
— A senhora esperava outro homem; eu esperava outra
mulher.
— Explique-se.
— Não posso crer que tanta beleza e mocidade
estivessem guardadas para mim por um acaso tão fortuito; e por outro lado,
recorrendo a um meio tão romântico, a senhora esperava que a fortuna
apresentasse outro homem que não este que está falando.
A moça não pôde reprimir um sorriso. Olhou firmemente
para Mendonça e ficou silenciosa alguns minutos.
Depois disse:
— Fez mal em raciocinar assim com o destino; é o meio
mais seguro de lhe perder as boas graças; eu pedia um homem maior de 40 anos; o
senhor tem a idade precisa; não discuto mais. Se eu quisesse outras condições
não as teria exposto no anúncio? Exigi apenas a idade da reflexão e da
experiência…
— Oh! isso… interrompeu Mendonça, não é certo que o
tenha todo o homem de 40 anos. A senhora não me conhece; sabe acaso se eu não
sou um leviano, apesar dos meus direitos ao senado?
Outro sorriso da moça.
— O senhor raciocina demais, disse ela. Também o
senhor não me conhece, e entretanto veio disposto a aceitar-me por esposa.
A conversa tinha colocado Mendonça em má posição.
Tratou ele de melhorá-la passando a falar das graças pessoais da misteriosa
anunciante. Ela ouviu os elogios com pronunciada indiferença, e nenhuma palavra
respondeu ao pretendente, que punha em ação todos os seus meios de retórica
natural.
— Em resumo, disse ela quando ele acabou, quando
realizaremos o nosso intento?
Mendonça olhou para ela antes de lhe responder. Queria
medir o abismo do desconhecido antes de se atirar nele. Convertera-se-lhe a
coragem em covardia, a confiança em receio.
Ela olhava para ele, não admirada nem imperiosa, mas
indiferente. Mendonça disse resolutamente:
— Quando quiser.
— Bem, respondeu ela, quanto antes.
Tudo isto que levo aqui narrado parecerá tão estranho
que eu receio estar enfadando às leitoras. Mas se a palavra honrada de um
escritor merece respeito, afirmarei que nada disto é invenção, antes puríssima
verdade. Não componho um romance; redijo uma notícia mais extensa que as dos
jornais. Este Mendonça não é criação de fantasia; é homem de carne e osso. A
moça declarou que se chamava Branca, nome de poema romântico, nome que traz
consigo umas ideias e encantamentos assaz adequados ao caso. Mendonça também
disse como se chamava, e referiu à misteriosa senhora as principais
circunstâncias de sua vida. Confessou que recebera de seus pais algum pecúlio,
e que o perdera com alguns amigos, amigos da boa mesa e pródigos dos bens dos
outros. Não lhe negou que esta circunstância lhe inspirara tal ou qual
misantropia. Seus atuais rendimentos consistiam nos honorários que lhe dava um
advogado principiante, mas generoso, como escrevente que era dele.
— Bem vê, concluiu Mendonça, que a minha posição é
humilde, e não sei se isto me fará desmerecer a seus olhos.
Branca estendeu-lhe a mão, dizendo:
— Eu não exigia posição nem fortuna; pedia um homem de
40 anos e estava disposta a aceitar o primeiro que me aparecesse. Apareceu-me
um apenas; mais razão tenho para não regatear o marido.
— Mas… objetou Mendonça.
— Hesita? perguntou Branca, levantando-se.
— Não hesito; mas não me dirá também alguma coisa de
sua vida?
Branca pareceu refletir alguns instantes. Mendonça
estava de pé em frente da moça.
— Se o senhor tirasse a sorte grande, perguntou ela,
indagaria a procedência das notas que lhe dessem, ou por que mãos haveriam
passado?
— Oh! a comparação é mal cabida.
— Nem mais uma palavra a este respeito, disse Branca,
pondo o dedo na boca.
E dirigiu-se ao piano onde começou a tocar
distraidamente, sem dar a menor atenção ao pobre homem que ali ficou de pé,
oscilando entre o receio e a ambição.
Branca tocou muito tempo sem dizer palavra, e Mendonça
julgou melhor não reatar a conversa, até porque não sabia o que lhe havia de
dizer. Contemplava-a entretanto; e não podia arrancar os olhos das belas
espáduas da noiva, mal disfarçadas por um tenuíssimo véu de filó. Ao mesmo
tempo perguntava se não era aquilo um sonho, e se aquela mulher, bonita,
elegante, jovem e rica como parecia ser, estava destinada a um pobre amanuense
já no outono da vida, sem presença que o recomendasse a um espírito de mulher.
No fim de meia hora, Branca volveu o rosto e perguntou
ao noivo se achava bonito aquilo que acabava de tocar.
Mendonça nada ouvira; mas respondeu-lhe que era
excelente e pediu que continuasse.
— Não, disse ela, por hoje basta.
Levantou-se e dirigiu-se para o sofá, onde começou a
revistar as unhas com uma indiferença pouco de acordo com a fantasia romântica
do anúncio.
Mendonça sentia ferver em si o fogo da mocidade, não
extinto apesar dos anos e dos dissabores.
— Branca! murmurou ele.
A moça ergueu-se rapidamente, franziu a testa, e
atravessando a sala com a majestade de uma rainha, desapareceu.
Se a torre da Candelária, deixando o seu natural
alicerce, fosse por si mesma colocar-se no Campo de Sant’Ana, não admiraria
mais o desastrado amanuense do que a inesperada saída da moça.
Durante cinco minutos Mendonça não pôde fazer o menor
raciocínio. Ficou com os olhos pregados na porta por onde Branca desaparecera,
e assim esteve até compreender que o gesto da moça era uma ordem formal de despejo.
Zangou-se consigo mesmo por ter sido tão desastrado, e pegando no chapéu
encaminhou-se para a porta da saída.
Mas ainda não havia deixado a sala quando lhe apareceu
um moleque e disse:
— Acompanhe-me.
— Onde está a senhora? perguntou Mendonça.
— Acompanhe-me, repetiu o moleque.
Mendonça foi conduzido a outra sala menor que a
primeira, e mobiliada mais ou menos do mesmo modo. Não tinha piano; tinha mais
uma mesa e uma estante com livros. As gravuras da parede eram todas de assuntos
bíblicos. O moleque desapareceu; Mendonça não se sentou, estava curioso de
saber em que daria aquilo tudo; e ao mesmo tempo ansioso por pedir perdão à
irritada senhora a quem, sem intenção, ofendera.
Não tardou que ela aparecesse, não já irritada, mas
triste. Mendonça correu para ela e pediu-lhe humildemente perdão da ofensa.
Branca levou-o para o sofá e disse:
— Está perdoado; refleti que a ofensa não era
intencional. Demais, eu mesma tive culpa disso; e agora vejo que não andei bem
recorrendo a um meio tão singular de encontrar marido. Que pensará o senhor
comigo? Que eu era uma mulher como tantas e que minha tenção era apagar com um
ato sagrado, algum erro ou muitíssimos erros. Naturalmente pensou isso, e
aceitou todas as consequências com os olhos na fortuna; e para ter certeza de
que eu era o que supunha, deu-me um nome que só a intimidade podia permitir.
— Isso é ofender-me também, observou Mendonça; eu não
pensei semelhante coisa. Falei daquele modo, porque não é fácil ao pé de uma
mulher formosa, já considerada noiva, obstar a que os lábios deixem sair uma
palavra de ternura.
Branca fechou os olhos.
— Mas, continuou Mendonça, temos um meio de arranjar
tudo; retirar-me-ei como vim, e não pensarei mais no assunto em que me ocupo há
tantas horas.
A moça abriu os olhos mas não disse palavra.
Mendonça era sincero no que dizia; já aquela aventura
lhe pesava, e ele queria sair dali dando ao diabo a mulher e a fortuna.
Insistiu no pedido; a moça murmurou:
— Se o ofendi, perdoe-me. Quanto a sair daqui depois
das esperanças que me deu, acho que é crueldade sem nome.
— Crueldade?
— Sim.
— Por quê?
Branca murmurou consigo:
— Não me compreende, não me compreende?
Houve um silêncio. A moça olhava para o chão; Mendonça
olhava para ela.
— Não me explicará uma coisa? disse ele.
— O que é?
— Qual a circunstância da sua vida que a impede de
achar um marido por simpatia e afeição? Ninguém compreenderá que uma moça
formosa e abastada, precise recorrer aos jornais para casar. Há de concordar
que pelo menos é inverossímil.
— Contar-lhe-ei tudo quando formos casados.
Nada pôde vencer a obstinação. Mendonça contentou-se
com a promessa. Conversaram ainda longo tempo de coisas indiferentes, até que
um escravo veio anunciar o jantar.
— Podia convidá-lo para jantar comigo, disse Branca,
mas o senhor não poderá sentar-se à minha mesa senão depois que for meu marido.
Mendonça curvou a cabeça.
— Quando deseja que eu volte cá? perguntou ele.
— Todos os dias, disse a moça. E quando começa a
tratar dos papéis?
— Imediatamente, murmurou Mendonça.
Saiu o nosso homem aturdido com esta aventura. Durante
uma hora vagou à toa pelas ruas, sem saber que resolução tomaria. A riqueza e a
beleza de Branca o arrastavam; mas o mistério que havia em tudo aquilo parecia
aconselhar prudente abstenção. Vontade de comer não tinha; todavia, quando
deram trindades, sentiu o homem que alguma coisa devia mandar ao estômago, e
entrou no primeiro hotel que achou à mão.
Comeu pouco e distraído; foi logo para casa, de onde
saiu pouco depois. Em nenhuma parte se achava bem. O que ele precisava era um
conselheiro que o guiasse naquela extravagante posição. Mas a quem recorreria?
Nenhum amigo lhe ficara dos muitos que houve em tempos melhores; lembrou-se do
advogado a quem servia; mas teria o rapaz a reflexão necessária para lhe dar um
bom conselho?
Nestas dúvidas passou a noite e o dia seguinte. O
advogado achou-o extremamente preocupado.
— Que tem o senhor hoje? perguntou-lhe.
— Nada; uma pequena dor de cabeça.
— Vá para casa.
— Não precisa.
O advogado insistiu; Mendonça não cedeu.
Às três horas foi jantar. Durante o jantar pensou
muito no acontecimento e procurou sinceramente uma solução ao caso. Não a
achou. Estava na sobremesa quando apareceu um conhecido de poucos meses, que
lhe parecia ser homem de prudência e bom juízo. Ocorreu-lhe a ideia de lhe
pedir conselho; mas ao mesmo tempo refletiu na inconveniência de o fazer
diretamente.
Achou o meio já velho de aludir à terceira pessoa.
Começou a falar de um amigo, a quem acontecera uma singular aventura, etc. Não
lhe ocultou nada.
Como sempre acontece, o ouvinte não se deixou iludir
pela forma da oração. Sorriu velhacamente, e não hesitou em dizer que a
verdadeira resolução era não voltar à casa da misteriosa moça.
— Para mim é claro que essa moça é uma doida, concluiu
o prudente conselheiro.
— Será, retorquiu Mendonça, mas não tem ares disso.
— Não tem ares disso? perguntou o prudente
conselheiro; não tem ares de outra coisa; pois que outra coisa é o anúncio, a
proposta, o arrufo, o segredo, a hesitação? Diga ao seu amigo que não seja
tolo. Não volte lá.
Conversaram neste sentido até à boca da noite;
Mendonça ficou convencido de que a moça realmente tinha uma aduela de menos (ou
de mais). Não voltou lá nesse dia; mas no dia seguinte continuava a sua
preocupação, porque a ideia do dinheiro e da beleza de Branca o não havia
deixado durante a noite.
— Se for com efeito alguma doida, pensava ele no dia
seguinte de manhã na ocasião em que abotoava o colete, bem pode acontecer que
pelo tempo adiante venha a recuperar o juízo. E nesse caso…
Foi distraído para o escritório. Tinha de copiar nesse
dia uns embargos e começou uma fórmula de libelo. O advogado sorriu quando viu
o engano, sentou-se ao pé dele e disse-lhe:
— Diga-me cá, meu caro Mendonça, que tem o senhor há
dois dias? Anda perturbado e distraído. É alguma questão de dinheiro? Fale, que
eu sempre valho para alguma coisa.
A franqueza do advogado convidou a franqueza do
escrevente. Contou este toda a história do anúncio e da moça.
— E que faz o senhor? perguntou o advogado.
Mendonça deu-lhe as razões de dúvida que tinha a
respeito da moça.
— Não seja tolo, disse o advogado; esta moça é
simplesmente uma moça romântica. Não perca assim a fortuna que lhe entra por
casa; vá ter com ela e arranje o casamento.
— Dá-me este conselho?
— Não lhe dou outro, porque sou seu amigo.
Nessa mesma tarde Mendonça foi à casa de Branca.
Achou-a arrufada.
— Por que não veio ontem? perguntou ela.
— Estive doente, disse Mendonça.
A resposta pareceu satisfazer à moça. Mendonça
desfez-se nessa tarde em protestos de ternura, o que agradou sumamente à
misteriosa anunciante.
Desta vez não se atreveu o nosso homem a usar de
nenhum tratamento familiar com medo de ofender a delicada suscetibilidade de
Branca. Qual não foi porém o seu assombro quando, estando muito sério diante
dela, a moça pespegou-lhe na testa o mais ruidoso, o mais volumoso, o mais
furioso beijo que ainda ninguém recebeu?
Mendonça recuou instintivamente; lembrou-se da opinião
do seu prudente conselheiro do hotel; pensou que a moça ia ter um acesso de
loucura e olhou para a porta.
Branca não pareceu reparar ou desconfiar do gesto e do
pensamento de Mendonça. Continuou a conversa com ele como se nada houvesse.
Tinha o olhar calmo e dizia coisas de muito juízo.
— Já começou a dar andamento aos papéis? perguntou
ela.
— Já, respondeu Mendonça.
Era a segunda mentira que pregava naquela tarde.
— Quando pensa que poderemos casar? continuou ela.
— Daqui um mês.
— Bem.
Daqui em diante não houve da parte de Branca outra
qualquer manifestação de ansiedade a respeito do casamento. Mendonça estava
extasiado diante dela; mas quando lhe lembrava o ósculo, uma espécie de nuvem
lhe cobria o rosto, e ele abanava a cabeça com pena e desespero.
A pena era por ela, o desespero era por si.
— São horas de ir-se embora, disse Branca a Mendonça;
amanhã virá mais cedo, sim?
— Sim.
— E tratará dos papéis com a maior celeridade
possível?
— Tratarei.
Mendonça pegou no chapéu e aproximou-se da porta.
— Não repare, disse ela no patamar da escada, não
repare na manifestação de ternura que lhe dei há pouco.
— Não reparo, agradeço-lha, respondeu Mendonça com um
riso amarelo.
— Há de notar em mim certa contrariedade, não lhe
parece?
— Qual!
— Não finja, tomou ela batendo-lhe no ombro. Mas quer
saber a razão?
— Quero, respondeu Mendonça, sem se lembrar da
resposta anterior.
— Bem disse eu que estava fingindo.
— Perdoe-me, tinha razão. Mas diga…
— Amo-o hoje apaixonadamente. O senhor é hoje para mim
tudo que posso ambicionar na terra e no céu.
A quem não lisonjeariam palavras tais? Mendonça
ouviu-as com susto; primeiramente, ele não acreditava que houvesse uma mulher
para quem ele fosse toda a ambição da terra e do céu; depois o tom com que
Branca disse aquilo tinha um que de sobrenatural que o afligia. Agradeceu como
pôde as benévolas palavras da moça e despediu-se.
No dia seguinte perguntou-lhe o advogado pelo
resultado da entrevista.
— Devo perder as esperanças, respondeu Mendonça. É uma
doida varrida.
E referiu o que se passou.
— Minha resolução é não voltar lá mais.
Ocorreu-lhe porém ir indagar da vizinhança quem era
aquela misteriosa moça.
— Não sei quem é, disse o padeiro da esquina; mora ali
há poucos dias; vive encerrada em casa; só duas vezes apareceu à janela; os
escravos são discretos.
A resposta do confeiteiro foi idêntica; o taverneiro
inclinava-se a crer que Branca era casada e separada do marido. Não pensava
assim o carvoeiro que achava na cara da moça visíveis sinais de pertencer a
Citera. Esta expressão é tradução do pensamento do carvoeiro que evitou o
circunlóquio e a figura.
Nada soube portanto o nosso homem, mas desta vez
assentou resolutamente em não voltar lá.
Era corajosa resolução; porque ele já gostava
imensamente dela. Correram cinco dias; Mendonça esteve a duas por três a lá ir
a casa de Branca; mas conteve-se graças a esta reflexão:
— Por que razão estará guardada para mim tamanha
felicidade? Reflexão de desânimo, que nunca entrou na cabeça dos Césares nem
dos Rothschilds.
Ao sexto dia apareceu-lhe em casa um moleque com uma
carta de Branca. Era toda de recriminações e ameaças. Mendonça prometeu lá ir,
e despediu o moleque, não sem tentar obter alguma coisa dele. Mas o moleque
pareceu não entender o que ele lhe perguntava.
Nessa tarde preparou-se o nosso homem para ir à casa
de Branca: novas esperanças lhe enchiam o coração. Já se amaldiçoava a si mesmo
de ter sido tão fraco e irresoluto.
Tudo isto porém foi enquanto não chegou à rua em que
morava a misteriosa moça.
Apenas viu de longe a casa, Mendonça hesitou e parou.
— Que triste ambição me leva ali? perguntou ele a si
mesmo; que espero eu mais para saber que aquela moça é uma infeliz doida?
Outras perguntas fez iguais a esta. Passou pela porta
dez vezes sem ousar entrar. O padeiro e o carvoeiro puseram-se à porta para ver
se ele lá entrava; correram assim longos minutos até que Mendonça desistiu da
empresa e voltou para casa.
Não recebeu nenhum recado mais. Percorria todos os
dias o Jornal do Comércio a ver se
encontrava algum anúncio convidando outro marido visto que ele renunciara
tacitamente.
Nada achou.
No fim de oito dias estava ele em casa preparando-se
para sair, quando sentiu baterem-lhe à porta.
— Quem é? disse ele.
— Abra, respondeu uma voz doce.
Mendonça foi abrir a porta e recuou espantado.
Era ela.
Trajava de preto: estava solenemente bela.
Entrou placidamente sem o menor sintoma de perturbação
moral; todavia Mendonça receou uma cena desagradável, e o ato da moça o
autorizava a crer nisso.
Preparou-se para acalmar os furores da pobre
desprezada que, provavelmente, iam rebentar daí a alguns segundos.
Ofereceu-lhe cadeira, ela recusou.
— Minha demora é pouca, disse ela; venho despedir-me
do senhor.
— Eu desejava explicar-lhe…
— Não tem que explicar, atalhou ela com voz melíflua.
Eu compreendi que o senhor é um homem fraco, e incapaz de ser coisa nenhuma
nesta vida.
— Mas…
— Assustava-o o mistério, continuou Branca impassível.
Tinha medo do desconhecido. Nasceu para ser amanuense; recusou a mão que eu lhe
dava; nunca sairá do que é hoje.
Mendonça estava aturdido; as palavras da moça
entravam-lhe no peito como punhais.
Branca deu um passo para a porta.
— Adeus, disse ela.
Mendonça foi até à porta.
— Mas quem é a senhora que assim me traz atribulado há
quinze dias?
— Eu sou a felicidade. Adeus.
E saiu sem olhar para trás.
Mendonça caiu prostrado em uma cadeira.
Meia hora depois saiu de casa apressadamente e foi à
casa de Branca. Estava fechada.
Indagou da vizinhança. Todos lhe disseram que a
misteriosa habitante mudara-se na véspera. Quando ouviu esta mesma resposta do
padeiro da esquina, Mendonça deu uma risada, e perguntou se era possível ver
estrelas ao meio-dia, e quantos palmos tinha o nariz do carvoeiro. Em seguida
prometeu que mudaria o ministério e convidou o padeiro a dançar o miudinho na
rua. Não consentindo o padeiro nesta distração coreográfica, Mendonça propôs-se
a transformar o dito padeiro em gaturamo ou macaco. Nessa ocasião chegou o
inspetor, que um caixeiro fora chamar; Mendonça seguiu dali para a polícia e da
polícia para a Praia Vermelha, onde faleceu há um ano.
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