11/05/2017

A epilética (Conto), de Humberto de Campos


A epilética

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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— Estás, então, separado de tua esposa?

— É verdade; internei-a em uma casa de saúde.

E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que lia muito se não viam, o mais moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma conceituada casa da praça, justificou a sua conduta:

— A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um perverso, um miserável, um desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora sabidamente enferma, perseguida por moléstia tão delicada.

— Era, então, doente?

— Doentíssima! — confirmou o esposo inconsolável.

E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um desejo de conhecer, fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração, tomou-o pelo braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim, principiou, calmo, a descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de fumaça, as duas xícaras de café.

— Há muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado sempre de casa por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo interior de Minas, ora por São Paulo, era com estranheza, com mágoa íntima, que eu observava, de mês para mês, a mudança nos modos de minha mulher. A transformação do seu caráter, das suas maneiras, do modo, enfim, por que definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na suspeita de que alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em uma dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um parente meu, fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria de ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e, chamando-me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a limpo essa dúvida, empregando, no caso, a experiência da tigela de leite.

— Da tigela de leite? — interrompeu o amigo.

— Da tigela de leite, sim.

E continuando:

— Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma tigela de leite, e põe-se debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do colchão. Em seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e amarra-se no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de modo que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o leite, mas de maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de epilepsia, a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no líquido da tigela, registrando o fenômeno.

— E fizeste a experiência?

— Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se achava ausente, e fiz o que me haviam aconselhado com a diferença, apenas, da colher, que, por ser a cama um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um batedor de doce, que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia a São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.

— E então? — indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.

— O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...

— Que é que tem? — interrompeu o outro.

E o desgraçado, enxugando os olhos:

— Estava cheia... de manteiga!...

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