Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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De “maillot”, apenas, arrebicando as faces
diante de um espelho, Nina, a bailadeira, tinha um milhão de pensamentos banais
no cérebro ardente.
Os traços da sépia e os rebordos do nanquim,
já lhe acentuavam a grande vivacidade do olhar, e o pó de arroz atenuava e
embelecia as cores róseas do rosto criadas pelo carmim vencedor.
Uma vez por outra, deixava de conformar-se,
para atender aos apelos da porta, de onde, sem deixar ninguém penetrar, voltava
enfastiada com as iterações de estranhos.
Esperava Otávio: era o “aimant du coeur”,
porque o Cônsul, o velho francês, pelas suas funções representativas, evitava
aqueles encontros mais notórios...
***
— Nina?
— Quem
bate? Otávio?
— El,
sim!
— Entra,
meu rico amor!
— Fiz-me
esperar, hein?
— Nem
tanto, mas eu tenho a regalia de poder cheirar-te as vestimentas para saber se
tiveste o contato do corpo de outra mulher, de vistoriar-lhe o casaco, para
descobrir aí os fios perdidos dos cabelos da que me logrou...
— Descansa
o teu coração. Vivo inteiramente para ti. E enquanto estou longe do teu olhar,
sou como o barro que espera, ardorosamente, a toda a hora, a plasmagem do
artista. Por ele, passam e voltam, vão e tornam, todos os profanos: mas ele não
é menos monopolizador de sua plasticidade do que uma flor do gnomo que só abra
a horas certas...
— Não
sabes? O Cônsul pediu-me a noite...
— E
deste-lha?
— Nem
sei...
— Já me
toma os dias inteiros... Entra agora pelas noites... Que horas serão as minhas?
— Todas
até. Aturo-o porque tu consentes.
— Exatamente.
Mas ele vem a prejudicar-me se continuas a não se satisfazer com o que lhe dás.
Às vezes, lá para as tantas do dia, penso em ti. O brasido abre em chamas ao
menor sopro. O incêndio alastra. Quero remediar-me e sofrer a carícia dos teus
beijos anti-incendiários. Vem logo a certeza de que o Cônsul te frequenta o dia
inteiro. Esmoreço. Abomino-me e espero confiante o prazer da noite. Tenho sido
certo e insubstituído. De agora por diante, nem mesmo nas noites poderei
confiar. Ao amante nunca lhe dês demais. Se te pede uma hora, dá-lhe meia, se
te pede um dia, dá-lhe horas, se te pede uma noite, dá-lhe um dia, e reduze
sempre as suas pretensões. Ao contrário, todo o tempo será absorvido. E, quanto
ao mais, espera-te hoje a ventura. Vais dormir com o Cônsul... Estou
libertado...
— Oh!
não! Que sucede Otávio?
— Nada.
Não estorvo os teus anelos. Leva contigo o Cônsul. Dá-lhe o meu lugar, mas
dize-lhe, ao menos, que não me ocultaste a entrada dele no leito que deixo
vazio...
— Espera
um pouco que te falarei melhor. É só acabar de toucar-me...
— Careces
de mim?
— Não me
aborrece, Otávio!
— Pensei
sempre que valesse mais do que todos os outros teus amantes. Vejo, entretanto,
agora, que um existe mais poderoso ainda do que todos nós reunidos...
— Vale a
pena a descoberta.
— Desmente-me,
pois. Não tens um amante que preferes ao Cônsul, um amante diante do qual te
esqueces mesmo de mim?
— Dizes-me
coisas extraordinárias...
— Contesta
a existência desse outro amante onipoderoso, que motiva teres-me deixado no
exílio deste divã, na semi-obscuridão de teu camarim...
— Não és
amável.
— De mais
em mais se confirma o que te digo: nem tens ânimo, por causa dele mesmo, para
contestares o que te afirmo de um modo tão categórico... Digo-te centos de
coisas e nada te abstrai desse amante único...
— Agora,
sim! Dei um último retoque nos meus preparativos de cena... Que te pareço de maillot?
— Não
trato disto. Refiro-me ao teu poderoso amante.
— O
Cônsul?
— Não
sabia que este seja poderoso. Mas não é a ele. Ao outro, diante do qual te
esqueces de mim, do Cônsul e de alguns menos e mais cotados do que nós
outros...
— Amante?
— Decerto.
Negas que não te absorve ele mais do que qualquer de nós?
— Nego.
— Contestas
que exista esse amante?
— Juro-te
mesmo.
— Vê lá
que não me enganas...
— Quem
será, Otávio?
— O teu
espelho...
— Aceito
a graça. Em troca, porém, vais dizer-me o que julgas de meus trajos em maillot?...
— Julgo
mal, porque te acho parecida com uma lebre a quem cortaram cerce todos os
pelos... Assim muito delambida, muito escorrida, muito masculina...
— Tens
espírito.
— E fui
franco do modo que tu me pediste. Veste as rendas, sobrepõe as sedas, ou tira o
maillot. Se vamos ao mundo, todos os
atavios, todos os soutaches,
aplicações e manteaux serão poucos;
se ficamos aqui, o menor fragmento de tecido mais fino, será demais... Ou o
extremo enroupamento, ou a extrema nudez...
— Figuremos
duas hipóteses. Se me visses enroupada, com um luxuoso vestido, de muitas
rendas, muitas fitas, muito decote, muita joia, e lindo chapéu de plumas, que
farias de mim?
— É essa
a primeira hipótese?
— Sim!
— Pois
bem: levar-te-ia, logo, à tua casa para que, antecipando a hora de tua saída, o
Cônsul, nem de longe, pelo meu braço, te visse hoje...
— És
digno de um ato destes.
— Bravura
do amor. Agora, a segunda hipótese?
— Sim: se
me visses nua, tão nua que nem uma écharpe
me velasse as pomas, que farias de mim?
— Ah!...
Aí está uma pergunta de difícil resposta, uma hipótese de operosa solução...
— Por
quê?
— Porque
uma nuesa dessas exigiria um leito e sem este tu serias apenas uma gravura...
— Venceste-me.
Despacharei o Cônsul.
— Não sou
eu quem determina. Passarias uma noite igual às de Bhodis na companhia de
Chrysis... Porque escancelas tanto os teus deformados olhos? Não calculas,
assim, a desproporção do teu semblante, lindo como um camafeu...
— Procurei
ouvir o que se faz em cena, a fim de verificar quanto falta para a minha vez...
— Queres,
saio a ver...
— Não.
Chamarei o contrarregra. Nem precisa: canta a Solidônia...
— A
pernóstica!
— Deixa-a,
coitada! Ainda tenho todo um intervalo e dois números da outra parte. Agora...
dá-me um beijo, paixãozinha!
— Guarda-te
para receberes os do Cônsul, senhora Consulesa...
— Otávio,
para que sentes ciúmes desse devasso? que te importa que eu lhe tenha prometido
uma noite, quando não lha darei por preço nenhum?
— Ciúmes?!...
Não os sinto dos outros homens, porque nenhum deles logrará de ti as venturas e
as concessões que eu tenho gozado... Nem mesmo do Cônsul... Se um prazer novo
junto de ti ele experimentar, deve dizer sempre que antes dele provei-o eu.
Tenho ciúmes, Nina, do que tu vestes, do que te pinta, do que te adorna, do que
mordes, do que fitas... Se eu pudesse, haveria de ser o tecido com que se fazem
os teus vestidos. Invejo deles a sorte de cingirem-te o corpo e serem
confidentes dos teus nervos e das tuas pulsações. Tenho ciúmes das flores que
exornam os teus cabelos, porque somente elas passam o delíquio de uma vida
inteira, enlanguescidas do teu amor. Tenho ciúmes do fruto que mordes, diante
da grande fortuna de ser apertado entre os teus dentes luxuriosos. Inquieto-me
com a sorte do perfume que te inebria, porque somente ele atravessa as tuas formas
e vai arrebatar-te na essência do teu ser. Tenho inveja da palavra que
proferes, porque somente ela vive fecundada da umidade quente dos teus lábios.
Por tudo isto, eu quereria ser o sono que te fecha as pálpebras, porque
participaria das felicidades todas dos teus sonhos; a água que te banha as
formas, porque desvendaria os imensos segredos e mistérios de tua beleza única,
e o riso que te doura o semblante, porque teria o domínio do mundo inteiro.
Recordas-te, Nina, do instante mágico em que pela primeira vez nos pertencemos
mutuamente? São deveras muito irmãs as almas que tocam à meta de uma ventura no
mesmo instante... e as nossas duas...
— De
lembrar isto, criei uma lenda. Sou eu a mulher que conseguiu o poder de duas
virgindades, uma sacrificada no início da puberdade, com a inclemência de
Nausithea diante do deus Príapo, e a outra, concedida ao amante, no fervor do
gozo, entre os teus braços, naquela noite, Otávio, naquela primeira noite...
— Desgraçadamente,
já eu, então, poderia ter sentido por toda a parte de teu corpo, o hálito
bafiento do outro amante.
— O outro
amante?!... Tenho-o, e é como se ele não existisse. Tenho-o porque tu consentes
que eu o tenha. E mais nada. Contra o seu amor, protestam os meus seios, bem
diversos na tua presença do que são na dele. Diante de ti, as minhas pomas
parecem florescer como os jasmineiros em deliciosas noites de luar, como as
laranjeiras em uberosos tempos de outono. Diante dele... nem perdem na secura e
esterilidade os pinheiros agrestes que vegetam nas fendas dos rochedos... És a
águia que se avizinha do sol e beija os astros nos lábios. Ele é o verme que
rasteja sobre o rochedo onde borda todos os seus desejos...
— Mas,
para ele houve um dia venturoso: a mulher não se cede a um homem sem a
experiência de um prazer. E tu tiveste esse prazer...
— Acertaste.
Não sabes, porém, que os olhos da mulher voluvelmente procuram por toda a parte
o homem e que só ao depois de muitos descobre o procurado? Quando topei
contigo, já o tinha no convívio de suas esquisitices.
— Tu és
formosa, Nina, como a flor de mirto! Os gregos te diriam divinamente
pressagiada porque nasceste nas vésperas das Afrodisias! Quero enlanguescer ao
som de tua voz contando-me os teus mais baixos amores...
— Bem sei
que os homens todos são uns animais. Uns, porém, são menos do que outros. Daí
esses amores que tu queres ouvir. Sabes, Otávio, que os cães, nesse mister, são
os equivalentes de certos homens? E que eles são os seres que mais baixos
amores fruem? O Cônsul ama como um cão... Os seus lábios, como os de Pan,
seriam capazes de devorar as virgindades, se as virgens recebessem os seus
beijos...
— Quero
crer.
— É um
libertino.
— Nada
mais?
— É um
estrangeiro...
— Que
importa?
— É um
devasso...
— E
somente isto?
— Ama
como um cão, Otávio.
— E que é
que faz?
— Seria
preciso descrever-te todas as astúcias que emprega para me arrastar à concessão
do prazer que só vige nos seus lábios? Não te bastará a expressão do pouco que
te digo?
— Repugnante!...
— Ah!
deixa-o, deixa-o! O meu amante és tu!... Toda esta noite serei tua como nas
demais...
***
Os rasgados olhos da ervoeira, luzentes nas
sombras dos seus cabelos de ouro como espigas de trigo maduro, pareceram a
fonte de todas as volúpias da terra, como os cornos de Almateia foram de todas
as riquezas do mundo...
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