A conferência do Dr. Assis Brasil
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A Liga da Defesa Nacional, com as
suas filiais pelo país, resolveu fazer propaganda dos seus intuitos,
difundi-los, passá-los, por meio de conferências. A conferência entrou deveras
nos nossos hábitos mentais... porquanto não haveria tanta gente a fazê-las, se
não houvesse muita gente para ouvi-las.
Desde as suas antepassadas, as da
guerra no Império, que elas pedem novos conspícuos, homens de respeitáveis
posições e costumes puros, sem vícios ostensivos, mesmo o de firmar, ricos e
por muitos modos felizes, para que não fujam delas ouvintes veneráveis, pela
riqueza, posição, virtudes... e felicidades.
A Liga da Defesa Nacional estados
não se quis afastar da tradição e chamou para as suas conferências pessoas
notáveis merecedoras, por todos os modos e, por que não, do meu respeito.
Atrevo-me a observar que ela fez
e faz mal, por um motivo muito simples: os graves senhores que lá vão fazer as
suas prédicas patrióticas só podem ter o auditório dos seus homens como já
disse; e toda essa gente deve ser por força patriota e estar disposta a
defender bem a pátria pelo muito que ela já lhe fez.
Eu quisera que os seus oradores
pudessem converter aquele famoso mendigo de Londres que mendigava num dos
cantos da grande capital da Grã-Bretanha:
— Eu tenho o Egito, o Canadá, a
Jamaica, a Austrália, a Índia, a Birmânia, o Tibete, entretanto não tenho nem
uma roupa para vestir.
São Paulo, para falar no maior
dos apóstolos, certamente não iria pregar o Evangelho a s. Pedro; ele o pregou
aos gálatas, aos romanos, aos efésios, a todos aqueles que necessitavam dessa
pregação, e aos mais humildes deles.
Os apóstolos da Liga e filiais
deviam seguir o exemplo dos grandes pregadores da fé cristã, antigos e
modernos, e não ficarem fazendo aquilo que um dito popular chama chover no
molhado.
Buda era príncipe e fez-se
mendigo para pregar na religião, e Dr. Calmon, que se quer nobre, e é rico, bem
podia vir falar certamente... matutos miseráveis sobre as excelências da
devoção da pátria antes que eles se convertam à temível e ignóbil heresia de
que o mundo é largo e o mato é maior.
Mas o Sr. Calmon de qualquer modo
precisa falar e não se lhe está discursar para caipiras do interior desde que
possa orar ali, na avenida, para uma centena de damas e diante de uma
aristocracia transitória, mas aristocracia.
Talvez vá mais direto ao seu fito
como está fazendo, ele não quer a espada de Amadis, a “Ardiente”, de que falava
Dom Quixote a Sancho que a não queria de forma alguma, escudeiro que era.
A não ser com o Sr. Dr. Calmon,
eu tenho com quase todos os outros conferencistas, ou conferentes, como
quiserem, anunciados; e, conquanto tenha com alguns outros laços que parecem
ser sólidos, não direi literários, mas de camaradagem, sou capaz de ir assistir,
à de Afrânio Peixoto.
Ele vai falar da “Educação” e
ilustre romancista não pode sofrer aquela censura que Voltaire, ao aparecer o Émile arranjou ao infeliz Rousseau, a
que notável fisiocrata quis saíssem da Áustria para pôr em cabanen. O sábio professor não é Rousseau; é um moço educado e pode
falar de cadeira das duas educações, sobretudo da cívica, a que se propôs.
Afrânio é de fato um cidadão respeitador das instituições e autoridade entre
nós.
O mesmo não direi do Sr. Homem
Batista, sua excelência é diretor do Banco do Brasil, mas creio que desse
negócio de economia individual pouco entende. Quando se fala nisto, pensa-se
logo no pé-de-meia e sua excelência, em matéria de finanças, sempre alto nos
relatórios da receita da República, onde só se lida com cem, duzentos,
quinhentos, mil, dois mil, três mil, dez mil, cem mil, duzentos mil, trezentos
mil contos.
Para falar em “economia
individual”, eu indicaria o senador Pires Ferreira ou o Zé Bezerra, o nosso bom
Sully do Açúcar.
Porém, eu nada tenho a ver com a
organização das conferências, onde vejo o meu amigo Félix Pacheco e o Gregório
Fonseca tratando de coisas militares, ainda por cima Bilac, a puxar a espada,
para defender a língua nacional. Está aí uma coisa muito própria de cavalheiro
e de grande poeta que Bilac é: vai defender um sonho, uma criação da sua
imaginação.
Eu quisera saber, meu caríssimo
Bilac, onde está esta língua nacional? É a minha ou a do precocemente
respeitável Aloísio de Castro, descendente em linha reta de João de Barros?
É a do Sr. Alberto Rangel, quando
trata do Amazonas, ou é a do Seixas Maia, quando trata do Rio Grande? É a do
Coelho Neto ou a do velho Sousândrade? É a do insigne Ataulfo ou a desconhecida
do Sr. Lauro Müller, da Academia de Letras?
Embora tenha dito que não tenho
nada com isto, ia continuar a meter-me onde não sou chamado.
O meu fito era comentar aqui a
conferência que o Sr. Assis Brasil fez em S. Paulo. Eu a li na íntegra no
Estado de São Paulo e o fiz porque tinha por tema a ideia de pátria, sob os
auspícios da Liga de Defesa Nacional. De lá, o título me seduziu e espantou.
Como é que se vai discursar sobre
uma coisa tão árida, tão maçante para um auditório tão pouco curioso do exame
dessas coisas por assim dizer de nefelibatas.
Sabia que, em França, há bem caro e, há bem pouco, Bergson
falando de coisas mais áridas, tinha tido auditórios femininos quase mundanos,
que é bem outra coisa. Faço justiça às mulheres. Lá em França, porém; mas São
Paulo...
Antes de ler quatro dias
considerei como trataria do assunto; e concluí que o entenderia como uma
análise e consequente exame dos fatos, dos elementos de toda a ordem e
natureza, da pesquisa de todas as nações, cuja associação tivessem determinado
o aparecimento no nosso entendimento de semelhante ideia.
Li e não vi nada disto.
É verdade que o Sr. Pedro Lessa,
muito respeitado nessas coisas de filosofia, aqui no Rio, tinha feito uma
parecida. Intitulou de sua também de Defesa Nacional — ideia de Justiça e não
quis descer ao exame dessa ideia, nem à sua
análise.
O ilustre ministro do Supremo
Tribunal falou muito, mas nada disse como semelhante ideia se tinha criado,
surgido, quais os fatos internos e externos e externou os dados de consciência
que a tinham incorporado ao nosso pensamento.
Falou sua excelência mais em
aplicação da Justiça do que sua ideia dela, mais em tê-la na consciência do que
como ela havia assim aparecido.
Antes de acabar de me referir a
ela de passagem, como estou fazendo, eu tomei a liberdade de lembrar ao ilustre
ministro do Supremo Tribunal que não há motivo para lamentar a queda do Império
Romano como ele fez. Uns sociólogos, e tantos o têm feito, podem escrever
grossos volumes para forrarem as suas camas. É ofício deles; mas falando da
ideia de Justiça, como hoje ela se apresenta a todos nós, nada temos que
lamentar a morte do Império Romano.
A sua queda alargou essa ideia,
porque nos dá uma outra concepção do universo, da vida e dos destinos humanos.
Bendito sejam pois os juízes
frouxos que aplicaram frouxamente o atualmente execrável direito romano, tão
execrável que, até há bem poucos anos, nos seus textos, se iam buscar argumentos
para justificar a escravidão moderna e as suas consequências.
Mas eu não queria falar da
conferência do Sr. Pedro Lessa; eu quero falar da do Sr. Assis Brasil, com quem
sempre simpatizei, por ser um Cincinato que não foi ditador, nem uma simpatia,
entretanto sempre cismado por isto ou aquilo, pela lembrança de quando me acode
o seu nome me surge a resposta daquele ateniense que votava pelo crescimento de
Aristides por estar cansado de chamá-lo sempre de justo.
Chegarei até à ideia de pátria,
do Sr. Assis Brasil, cujo nome prometia um mais forte conhecimento da história,
de nossa geografia — de tudo que a agudeza em explicar certos fatos dele ajuda
o Brasil.
Na nossa civilização, o amor da
pátria é um sentimento de origem religiosa, fazendo do antigo culto familiar
aos nossos mortos, que eram supostos, mesmo depois da morte, passando no lugar
do seu nascimento e precisando da assistência cultual, dos sacrifícios e
oferendas de seus descendentes, para que as suas almas vivessem sossegadas no
seu túmulo. Com o tempo, apagando essa origem da nossa memória, ficou, porém,
no fundo de nós essa religiosidade ancestral de um modo vago, como se pode ver
em frases nossas, tendo ela se mostrado com o sempre presente espetáculo das
mentes, das águas, dos céus, das casas, das gentes, do pedaço da terra em que
nascemos ou vivemos. Como que tudo isso entrou em nós e nós entramos em tudo
isso? A alma humana está pronta a extravasar-se sempre e animar, e harmonizar
com todas as coisas, vivas ou mortas que a cercam, sobretudo nos primeiros anos
da nossa existência, quando o sentimento e espontaneidade emocional dominam
todo o nosso pensamento.
O patriotismo, porém, é outra
coisa. Não tem raízes tão vivas e naturais na nossa natureza. É um sentimento
político, artificial, que é instilado nos poros, mantido neles pela cultura,
pelo ensino oral ou escrito feito pelo funcionário, pelos professores, pelo
sacerdote e até pela presença de uma força armada.
Destinado à manutenção da pátria
política, ele é tão artificial quanto ela, em geral formada por casamentos
reais ou de príncipes, por tratados, por conquistas, ou compras, por trocas,
por este ou aquele meio de aquisição de territórios.
Só a ambiência fragílima da
cultura constante, da tradição e outros meios semelhantes, é que consegue dar,
às vezes, a tais aglomerados uma aparência de corpo vivo e organizado.
Se isto que acaba de ser dito é
visto, podem existir os dois sentimentos separados.
Um camponês rústico ama
naturalmente a sua aldeia, onde vive a vida toda e mora, cujos arredores
conhece e lhe têm dado as emoções que é capaz de sentir, mas não amará
naturalmente a sua pátria política de que ele possui as mais nebulosas
informações.
Um artista avançado teria grande
emoção amorosa diante da cidade em que nasceu, mas será indiferente à pátria
subjetiva, quase mística, que os políticos lhe querem dar.
Para as necessidades transitórias
da humanidade atual é conveniente que um sentimento se una a outro, mas não
integralmente para que a nossa humanidade não se uniformize tolamente e ela
seja variada de aptidão, de aspectos e de formas de sentir.
Se o patriotismo matasse o amor
da pátria, em breve cada um esqueceria a sua aldeia, o lugarejo do seu
nascimento e não trataria de contribuir para o seu progresso, dar-lhe aperfeiçoamentos
materiais e homenagear o que tiver conseguido na vida, despertando este,
certamente, emulação entre os seus patrícios.
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