A chuva
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há
seguramente três dias que não vivo, que não vejo o sol, nem falo. E ela, a
minha adorada Everalda, não veio, não virá mais, decerto. E no entanto,
dizia-me na sua carta de uma letra fina e miúda: “Amanhã,
quinta-feira, vou. Estou louca por abraçar-te... saudades... não imaginas...”
A chuva tem
caído e cai incessante, desventurosamente. O céu, pardacento, de uma claridade
esmaecida e igual, jorra a água em fios, como se a passasse por uma peneira
gigante.
Um arrepio
de sezões anda-me nas carnes e o negro e fundo spleen aristocrático e mylord
ataca-me com fúria o coração, onde o fel rebenta em ondas. Tenho as unhas
roxas e a pele engelhada, como um cadáver. Sentado, o busto inclinado sobre a
mesa da escrita, o braço direito em ângulo, apoiando o rosto, voltado para a
janela, os olhos cravados longe, através dos vidros açoitados pelas rijas e
sonoras bátegas — aqui estou, mudo e tempestuoso,
numa formidanda excitação de nervos e penso profundamente na mais
amada das mulheres, sentindo, na sofreguidão imensa de a possuir, uma elétrica
nevrose de ferocidade animal, que me incendeia delirantemente.
Debalde
intento ler. O meu livro mais querido, O
Primo Basílio, o livro extraordinário, que está aberto diante de mim, não
me glorifica, nem me atira para o alto.
E quando
subitamente me acode ao cérebro, como uma desolação, a ideia de que talvez
mentisse a mais amada das mulheres, inflama-me o sangue um furor nefasto e ruge
no antro o coração indomado.
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