A
Carteira
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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...De repente, Honório olhou para o chão e
viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns
instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que,
sem o conhecer, lhe disse rindo:
— Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma
vez.
— É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é
preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos
mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para
um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes
ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos
de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar
à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus,
leques, tanta coisa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro.
Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos,
duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os
bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma
voragem.
— Tu agora vais bem, não? dizia-lhe
ultimamente o Gustavo C... advogado e familiar da casa.
— Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de
pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um
processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até
parece que ele lhe tirou alguma coisa à reputação jurídica; em todo caso,
andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não contava
nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão
alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia
todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com
três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia
tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou
jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos
beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou
espantada, e perguntou-lhe o que era.
— Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o
horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os
dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e
quatro anos; era o princípio da carreira; todos os princípios são difíceis. E
toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar
mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos
quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela
cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos
peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer
pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um
agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembleia é que
viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.
Durante os primeiros minutos, Honório não
pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo
parou alguns instantes, − enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e
entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de São
Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma
coisa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a
carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo
tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe
se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de
quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar
mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou
por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou
anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da
ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam
mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria
entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a
do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo.
Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos
mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou
mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas
urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar,
e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a
carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a,
com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e
contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém
viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo...
Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles?
E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o
contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver
se havia na carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma indicação qualquer,
não posso utilizar-me do dinheiro", pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou
cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão
de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por
fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois
cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar
com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu
coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se
como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava
frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece
que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele consigo; verei
amanhã o que posso fazer".
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um
pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e
perguntou ao amigo se lhe faltava alguma coisa.
— Nada.
— Nada?
— Por quê?
— Mete a mão no bolso; não te falta nada?
— Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem
meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?
— Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou
desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de
estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu
amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações
precisas.
— Mas conheceste-a?
— Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo
sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos
bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que,
ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.
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