A caricatura no Japão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Grande coisa, meus senhores, é ter engenho!.. Eu não me gabo muito desta
prenda, confesso-o francamente; mas tive há pouco azo de julgar pela própria
consciência — mercê dum rasgo excepcional do meu bestunto — quanto vale uma boa
ideia; e concluí que a felicidade humana seria coisa fácil, se uma impulsão
sagaz do espírito fosse guiando sempre os nossos passos neste mundo. E assim
fica satisfatoriamente justificada, penso eu, a exclamação com que enceto estas
divagações, escritas por uma noite fria de Janeiro, no meu gabinete silencioso,
na cidade de Kobe, no Japão.
Vamos ao fato. Ah, pobre espírito enferrujado pelos
azedumes da existência, gasto pela longa fricção das coisas e dos homens,
sofrendo pela dor do passado, pela insipidez do presente e pelas tristes
promessas do futuro! como tu, meu pobre espírito, caíras na quase insânia,
consciente, e por isso mesmo mais penosa, daqueles para quem, por mal dos seus
pecados, a vida se vai tornando toda um imenso enfado... Morbidez de
temperamento? incompetência ingênita para a luta? fadiga, após os mil baldões
da sorte? pouco importa; não vale a pena agora desenredar esta meada. Passava,
e passo ainda, longas horas do dia junto da minha secretária; é este o meu
ofício. Alguém, que entrasse, via-me grave, correto, rodeado de livros e
papéis, e até, presumo, — perdoem-me a vaidade — talvez me atribuísse uns
certos ares de sábio, em cuja mente magnos problemas se iam sublimando. Só, bem
só, entre quatro paredes discretas, desfalecia; o olhar vago fixava-se no nada,
todo o meu ser se inutilizava, perdia-se em abstrações, desinteressado da
realidade, de mim mesmo, morto, — porque há para alguns uma morte percussora
daquela que rói na tumba a febra e põe a nu os ossos brancos do esqueleto. — E
vai então, um belo dia, achando-me casualmente num bazar de Osaka, compro uma
figurinha de barro da deusa O Fuku-san, que coloquei sobre a mesma secretária
referida.
Ora aqui está, no fim de contas, em que consiste o meu
rasgo genial; e vou dizer porquê. O barro é trabalhado por dedos tão amorosos
de artista, — um obscuríssimo artista certamente; — a pasta impregnou-se com
tanta obediência da feição predominante da alma japonesa, — naturalismo
humorístico, caricatural; — que a deusazinha patusca que aqui tenho a meu lado,
uma bugiganga de três polegadas de altura, quanto muito, é toda ela uma
gargalhada viva, supina, radiosa!... Acontece que a tristeza, borboleta negra
das trevas, foge espavorida da minha convivência; pouso os olhos na deusa, e
desato a rir perdidamente; e assim me tornei o homem mais divertido deste
mundo.
***
Antes de ir mais longe na palestra, justo é que me
detenha e diga em poucas frases quem é O Fuku-san. Divindade popular, patrona
da boa fortuna e da alegria, representa na gênesis japônica um papel de subida
importância incontestável. Izagani e Izanami, os deuses iniciais e criadores,
formaram o Japão e tiveram por filha, Amaterasu, a deusa do Sol, e outros
filhos, todos com maravilhosos atributos. Amaterasu residia no céu, alumiando a
terra; delicioso ofício; mas tamanhas afrontas sofreu de um seu irmão, o deus
da Lua por sinal, que se amuou e decidiu esconder-se, escolhendo para retiro
uma caverna, aonde se meteu, vedando a entrada com uma enorme pedra; a terra, é
obvio, achou-se às escuras de repente. Os deuses, apavorados, — o caso não era
para menos, — recolheram-se em conselho, e resolveram o seguinte, depois de
larga discussão: foram postar-se todos bem junto da caverna; Takadjira, o deus
de enormes braços, ficou junto da entrada, fazendo sentinela; O Fuku-san, a
mais divertida das patuscas, pôs-se a cantar modinhas; ou, quando não cantava,
tocava numa gaita de bambu; ou, quando não tocava, bailava minuetes,
acompanhando a dança de mil trejeitos faceciosos. Tanta pilhéria teve a
figurona, que a deusa Amaterasu, no seu antro, começou a interessar-se na galhofa,
a rir às furtadelas, — ou não fosse ela japonesa! — e arredou um pouco, para o
lado, o pedregulho, alongou um nada a cabecita para fora, e assim se pôs a
gozar melhor da brincadeira. Então Takadjira, num relance — zás! — caiu-lhe em
cima, lançou-lhe os longos braços ao pescoço, puxou-a para si, foi à força pousá-la
no seu trono... e a terra de novo continuou a ser alumiada pelo sol!
A arte popular veste a deusa O Fuku-san em belos
trajos da corte, dos velhos tempos, cetins rojantes, brancos e escarlates, e
molda-a nos ultracômicos contornos duma japonesita enormemente obesa, toda ela
refolhos de gordura, banhas de pescoço, de colo, de seios, de barriga,
redondezes pasmosas de quadris, e mãos e pés papudos. A cara, a imensa caraça,
de lua cheia, é um poema completo de monstruosidade triunfal e hilariante:
faces prodigiosamente bochechudas, caiadas de cosméticos; um narizito que mal
se vê, rombo, abatatado, como que calcado para dentro, a golpes de martelo; à
fronte curta e estreita, de imbecil, colam-se dois bandós de cabelos de
azeviche; foram rapadas à navalha as sobrancelhas, segundo o uso clássico; os
olhinhos piscos, matreiros e gaiatos, reluzem pelas fendas estreitas das
pálpebras carnudas; e a boca, a boquinha, em forma de cereja, acarminada, sorri
em curvas, em pregas, em covinhas impagáveis... Mas não há palavras que
descrevam, nem de longe, a expressão de toda a figurinha — porque vai além da
nossa compreensão de ocidentais, — no que dela irradia de jocosidade perene, de
beatífico comprazimento, de vagos tiques de inconsciência infantil, de
imbecilidade, de malícia, de perversão; um indefinível conjunto de não sei quê
de iminentemente pueril, satânico e grotesco, todavia gracioso, que é no fim de
contas uma das feições mais características e mais emocionantes da arte inteira
japonesa.
***
Ensina-se nos livros que por meados do nosso século
XII, o pintor Kakuyu, que era bonzo budista, iniciou no Japão a pintura
caricatural. Pois seja assim; concedo ao frade o mérito de ter traduzido pelo
pincel, por vez primeira, o humorismo desta gente. Mas tal humorismo, como
feição moral, nasceu com o mesmo povo, é-lhe um vetor do sentimento; e cada
japonês é, e foi, e será, um caricaturista. Quando se estuda a lenda indígena
japonesa, no vasto repertório das suas fábulas, que eu penso representarem
sempre o mais remoto documento do feitio estético, da individualidade psíquica,
duma qualquer grande família humana, depara-se na cena com a mais curiosa fauna
falante — macacos, caranguejos, raposas, alforrecas, ratazanas e outros vários
bichos; — no apólogo grego, por exemplo, os brutos são doutores, discursam como
filósofos e como moralistas; no apólogo japonês, menos profundo, mas talvez
mais incisivo, a bicharia contenta-se em mascarar-se vestindo kimonos e enfiando as patas nas
sandálias, faz caretas, galhofa, dança e ri, em desenvolturas caricaturais da
mais desopilante troça a todos os ridículos.
Quando as artes se desenvolvem e nacionalizam, e
atingem uma feição independente, inconfundível, a caricatura, como que
traduzindo uma recordação da lenda, vem desempenhar um papel importantíssimo,
não só na pintura, mas nas multíplices afirmações do engenho — escultura,
ornamentação da porcelana, da faiança, dos charões, dos bronzes, em tudo. —
Graças ao pincel e graças ao buril, as rãs decidem-se a vir tocar guitarra para
a rua; os pardais oferecem banquetes aos seus íntimos, servidos em porcelanas
primorosas; desfila um cortejo de raposas, levando a noiva, a rapozinha, ao
noivo feliz, que a espera no seu lar; pelo dorso de Hotei, deus da bondade, vão
trepando os garotos, e um mais atrevido vai pousar-se-lhe em cima da careca; os
guerreiros cobrem os rostos com máscaras de um cômico façanhudo indescritível.
Hokusai, o grande mestre da escola vulgar em pintura, delicia-se em desenhar
cegonhas dum só traço repentino, maravilhosos gatafunhos, palpitantes de
observação e de verdade; no seu álbum dedicado ao Fuji-yama, a montanha
sagrada, contorna-a vista através de uma rede, que um pescador tira do mar; e
através de uma teia de aranha; e entre o A das pernas nuas dum operário
tanoeiro, que do alto de uma dorna ajusta à força de malho as aduelas; e
refletida no chá da taça que um esfarrapado mendigo leva à boca. Hokusai, em
1804, durante certa festividade num templo, manda estender no solo uma folha de
papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza; vem mais um barril com
água, outro barril com tinta preta, uns oitenta litros dela, e mais duas
enormes vassouras e três vassouras mais pequenas; entra o mestre, empunha uma
vassoura embebida na tinta, traça sobre o papel curvas gigantes; no fim de
alguns minutos termina a sua obra, que só é compreendida quando alguns dos
milhares dos assistentes se lembram de galgar ao telhado do templo: à distância
e do alto, o imenso quadro representa um admirável busto de Daruma, o grande
apóstolo budista. Por aquela mesma época, Hokusai pintava sobre um bago de
arroz um grupo de aves, encantador, mas só distinto com a ajuda de uma lupa.
É esta caricatura, melhor será talvez dizer — este
humorismo, que o japonês exerce com habilidade única, magistralmente,
prodigiosamente; é por ela, é por ele, pelo segredo dos exageros, pelo arrojo
da execução, que alcança intenções flagrantes no traço, uma alma quase na
paisagem, um conceito na árvore, no ramo em flor, no simples contorno de um rochedo...
Na pintura japonesa, por exemplo, um pargo, um caranguejo, uma lagosta, o
figurão zoológico mais lorpa que possa imaginar-se, vivem na tela, isto é,
acusam uma vontade, uma intenção, um sentimento, como a fome, como o medo, como
o cio. Não se diga que é a fiel reprodução do modelo que dá isto, — a
fotografia dum caranguejo não palpitaria de vida; — é pelo contrário o exagero
propositado de certas linhas, o exercício de uma arte misteriosa, que
naturalmente se inspira no perfeito conhecimento estrutural e sentimental do
bicho, animalizando de certo modo o artista e humanizando o bruto, e permitindo
caprichos descomunais que o observador não descrimina, que o levam a exclamar,
não sei por que remotas reminiscências ancestrais de súbito recordadas: — “aquele
linguado acha-se triste... aquele camarão arde em ciúmes... aquela lombriga
está-se a rir... —”
***
O humorismo japonês não se limita às artes; divulga-se
nos costumes do povo, nos seus hábitos; quando nos intrometemos na intimidade
indígena, ainda o espetáculo de inesperados disparates, de requintadas
extravagâncias, vem ferir a nossa pupila e prolongar-nos o espanto. Eu não
pretendo escrever aqui um tratado dos exotismos desta gente, aponto ao acaso
alguns dos que me ocorrem.
Pois não são disparatadas, caricaturais, estas mangas
prodigiosamente amplas dos vestidos, e na própria fazenda a estupenda
policromia dos matizes? E estas peanhas de madeira, à laia de calçado, onde se
pousam os pés nus dos japoneses? E estes penteados enormes das mulheres, transformando-lhes
as cabeças em estupendos monumentos ambulantes? E o obi, a cinta de seda que cinge as ancas da musumé em voltas sobrepostas e rematadas num laço colossal? E o
costume das casadas, quando em sinal de desapego às vaidades deste mundo, se
desfeiam rapando as sobrancelhas à navalha, e envernizando de preto a fila dos
dentinhos? A casa de papel, o jardim de Liliput, a vida passada de joelhos
sobre a esteira, a refeição servida em taçazinhas e apreendida nas pontas dos
pauzinhos, a arte doméstica da preparação do chá e dos ramos de flores, a
dança, a música, a cama improvisada a um canto com duas colchas de seda e uma
boceta de charão por travesseiro, as mil saudações trocadas entre duas pessoas
que se encontram, todos os aspetos da vida indígena enfim, íntimos, sociais,
brincadeira, como se o japonês tivesse vindo ao mundo para se rir de tudo em
que se ocupa, e para se rir de si primeiro do que de tudo... Chega-se sem muita
dificuldade a compreender porque, nas relações de convívio de um para outro, de
preferência à palavra, de preferência ao gesto, uma maneira há mais eloquente
de traduzir o pensamento: — a gargalhada!...
***
O próprio japonês é uma caricatura. Não se espantem da
asserção os que tiverem a pachorra de me ir lendo; eu hei de ainda provar que o
próprio deus dos japoneses, o sublime criador do Dai-Nippon, formou num estado
de alma galhofeiro esta terra, sem sistema, sem programa estudado e sem
pressas; sem pressas certamente, recriando-se nos cômicos caprichos que a
fantasia lhe ditava e a mão omnipotente ia executando, ferramenta do ofício em
ação, escopo ou broxa, afeiçoando, retocando, caricaturando, o que do caos ia
surdindo à flor das águas. Depois, concluída a obra, devia ter soltado uma
gargalhada retumbante!...
Ora desde remotas eras até hoje, pratica-se no Japão
um exercício de luta, um sport (como
se diz agora) muito em voga, e do especial agrado desta gente; é o espetáculo
favorito durante determinadas épocas do ano. Limita-se no campo um espaço com
esteiras e bambus, e ao centro dispõe-se uma pequena elevação em forma
circular; içam-se galhardetes e bandeiras, rufa o tambor, e o povo aflui por
centenas de curiosos, compra o seu bilhete e toma pouso; dois homens, quase
nus, combatem corpo a corpo, como na arena grega, até que um deles derruba o
companheiro e é proclamado vencedor. Estes lutadores de profissão são
escolhidos dentre os gigantes, dentre os atletas, e é na província de Tosa que
especialmente se recrutam. Não são homens, são caricaturas de homens, são monstros,
enormes, valendo cada um em peso e em dimensões por seis japonezitos
ordinários. Não se imagina, nem podem descrever-se, as caras, os carões de tais
sujeitos; são máscaras disformes, caraças imberbes, olhinhos ferinos repuxados
para a testa, queixada vigorosa e dentuça arreganhada, orelha polpuda e ampla,
trunfa hirta e espessa, e um risinho estranho, sarcástico, mistura de riso de
criança e de riso de demônio; nem há palavras que expliquem a amplidão dos
vultos, a obesidade das carnes, o braço roliço quase feminino, os seios eretos,
o enorme ventre impando, lenta a marcha e ondulante, de urso da Sibéria em
liberdade. Asseguram estudiosos que estes monstros de Tosa são os últimos
restos, preciosos modelos vivos, da raça pré-histórica japonesa... Pode assim
ser; no japonezito de hoje, embora geralmente franzino, miudinho, delicado, não
repugna acreditar que alguma coisa haja de comum com os lutadores de Tosa: como
que laivos de família, a vaga semelhança com um avô... a não querermos mais
longe ainda ir procurar-lhe afinidades, num remoto parentesco com a deusa
O-Fuku-san, que continua a rir-se para mim, e eu a rir-me para ela...
Relanceemos a chusma, nos teatros, nas feiras, nas
romarias, nos bazares? Pode dizer-se, em geral, que o tipo do japonês, da sua fêmea,
e mais acentuadamente ainda nos obesos, ou nos magros, ou nos anões, ou nos
albinos, ou nos coxos, ou nos corcundas, ou nos leprosos, ou nos que têm um
lobinho, ou nos que têm o nariz roído, em todos aqueles enfim em que um
defeito, uma tara, sobressai, é caricatural supinamente, cômico a ponto de nos
fazer morrer de rir às gargalhadas!... Ah, maganões! vocês, quando nos deram as
imagens dos seus deuses, dos seus gênios do lar: uns pançudos, como odres;
outros esqueléticos, macabros; uns pachorrentamente joviais, outros terríveis,
despedindo raios sobre a terra; vocês retrataram-se a si mesmos, segurando com
uma das mãos o pincel e com a outra o espelhinho onde se viam, maganões!...
Especializando, da multidão das ruas, essa figurinha em miniatura que tão
irresistivelmente cativa as atenções do estrangeiro, toda ela matizes,
perfumes, frescura, gentileza, a figurinha da musumé, da rapariga, podemos ainda defini-la como uma caricatura, a
caricatura mais travessa, a quimera humana mais deliciosa, em que jamais olhos
de viajante se pousaram!...
Profundar o enigma do feitio moral da tribo é
impossível. Apenas conhecemos vagamente que a vida íntima desliza serena e
pueril, sem ralhos, sem exasperos, em culturas de arbustos, em contemplações
dos astros, em banhos quentes, em esmeros junto do espelho, em brinquedos com
as crianças, em debandadas pelos campos, em libações de chá, em jantarinhos de
arroz e fatias de nabos em salmoira, em sonecas tranquilas debaixo do verde
mosquiteiro protetor... Mas desta mesma gente explodem também por vezes os
grandes dramas: crudelíssimos assassínios, por cegueira de ciúmes; suicídios
duplos, por desespero de amor, — ele e ela cingidos num derradeiro abraço; — e
essa horrível sede de sangue, o homem transformado em fera, trucidando tudo
vivo que encontra, estado de loucura conhecido entre os estrangeiros do Oriente
pela denominação de amock, palavra
malaia ou javanesa.
***
A tribo parece ter sido feita de encomenda para o país
exótico que lhe foi dado em patrimônio. Percorrendo-o, estudando-o nos aspetos,
melhor se compreende a índole estética do povo, a alma nacional, com as suas
delicadezes, com as suas graciosidades, com os seus caprichos, com os seus
disparates; manifestações multíplices de um caráter particularíssimo de origem,
mas no qual a influência muito especial do meio laborou também intensamente.
Comparando os aspetos normais, comezinhos, que se
desdobram por este mundo fora, com outros aspetos excepcionais, em contraste
flagrante com a disposição comum das coisas, pergunto eu se o termo —
disparate, — se o termo — caricatura, — são permitidos, julgando a obra da onipotente
criação? Haverá, por exemplo, um ilhéu disparatado, um pinheiro caricatural? Se
permitidos são, se há tal ilhéu, se há tal pinheiro, então não se pode imaginar
coisa mais disparatada, mais caricatural, do que este arquipélago, já
disparatado de nascença, emergindo a pique e como por encanto, do seio das
águas mais profundas do oceano, tênue, rendilhado como uma joia em filigrana,
convulsionado a todos os momentos por misteriosas comoções vulcânicas, zurzido
por tremendos ciclones, invadido por vezes pelas ondas enormes do Pacífico,
caprichosa quimera geológica enfim, que pode amanhã desaparecer no abismo, sem
que por tal se espantem muito os sábios!... Tal é o império do Japão.
A paisagem extravagante, inverossímil, inacreditável,
das porcelanas e charões, hoje divulgada em toda a parte, é com efeito a
paisagem real deste Japão. Colinas, penedias, verdes planícies, lagos,
cascatas, torrentes espumantes, ribeiras dormentes, vales profundos, mares
interiores salpicados de ilhas e rochedos, tudo reduzido a miniaturas
graciosíssimas, reunido em grupos incongruentes e projetado em fundos de céu
estupendamente coloridos, eis o que os olhos abrangem num relance.
Demoremo-nos nos detalhes. As coníferas (algumas
espécies enormes) vestem as encostas, trepam pelas ribanceiras acima, até irem
coroar os últimos píncaros das serras. Aqui, um bosque de bambus gigantes, cuja
sombra eterna e cuja paz soturna dão alucinações àquele que se aventura em
devassar o seu mistério. Ali, outro bosque, de bordos, de momiji; em Novembro, a sua tênue folhagem digitada passa do
verde-claro ao escarlate; o cenário adquire assim deliciosos exotismos
ultraterrestres, como se a gente se achasse de repente pisando o solo de Marte
ou de Saturno. A semente do acaso caiu sobre uma pedra à flor das águas;
germinou o pinheiro, a rede das raízes abraça-se ao granito, e ergue-se
desamparado o tronco, torcido, contorcido pelos anos e pelas intempéries,
refletindo no espelho glauco a sua eterna cabeleira de verdura; há árvores,
enobrecidas ou pela vetustez ou pela forma estranha, célebres como heróis, que
são visitadas por uma multidão de peregrinos. As ameixieiras, as cerejeiras,
abundam; pela Primavera, cobrem-se de florescências pasmosas, luxuriantes, como
nunca se viu em parte alguma; mas não dão fruto, as trapaceiras.
Nos jardins, continua a flora exótica, desconhecida.
Trepa, por onde pode, a asagao; e
abre à alvorada, por curtas horas, as suas frescas campânulas, de qualquer cor,
porque as variedades não se contam, são milhares. Desabrocha a peônia, enorme,
paradoxal. E enfileiram as crisântemos, a flor nacional, sob tendas que as
abrigam do sol, podendo lembrar cortesãs em exposição nos bairros de prazer,
pela extravagância das cores e dos feitios, que recordam a confusão policroma
dos vestidos e dos penteados das mulheres; mas que realmente se assemelham a
enormes actínias, monstros dos mares, multiplicando-se em mil tentáculos
contorcidos, brancos, amarelos, rosados ou sanguíneos.
Agora a fauna. Pelo espaço, negrejam bandos de corvos,
os karasu, escarninhos, voando e
rindo às gargalhadas. Enormes borboletas pretas, nunca vistas, sugam as
corolas. De dia, de noite, é incessante o ruído das cigarras, dos grilos, de
outros bichos. Noites há, pelo Estio, junto às ribeiras, em que uma chuva de fogo,
de pirilampos aos miríades, motiva festas ruidosas. Nos lagos dos jardins
vagueiam peixes de ouro, com os olhos a estourarem, com as caudas esfarrapadas
e rojantes, como se fossem longos capotes de mendigos. Junto da casa de papel
toma o sol, cantarola o galo anão, do tamanho duma pomba; e à porta assoma o
gato indígena, esquelético, rabugento, sem rabo... porque todos os gatos no
Japão nascem sem rabo; ou é o cão que ladra, o chin, verdadeira caricatura de cão, com os olhos esbugalhados a
saltarem-lhe das órbitas, sem nariz, a cauda em pluma, parente degenerado de
qualquer monstro de épocas remotas, hoje extinto.
***
De sorte que todo este Nippon, — arte, povo, paisagem,
planta e bicho, — é uma deliciosa mascarada. Como fazer sentir isto a quem o
não conhece, depois de ter escrito o que escrevi, e de concluir que nada
escrevi do que me vai no pensamento? Olhem: fixem um espelho esférico, ou
cilíndrico; o aspeto das formas refletidas é uma interminável surpresa
hilariante, de caretas supinas, de linhas torturadas; pois tal é o aspeto do
Japão...
***
Todos sabem como a caricatura, pelo desenho e pela
escrita, exerce nas sociedades uma influência decisiva. A pintura e o livro
humorísticos subjugam a atenção e imperam no espírito com intensidades únicas,
alheias às outras formas de arte. Porquê? Fora difícil explicá-lo aqui. É certo
que a ironia, na obra criada, faz mais do que criar: estigmatiza um defeito,
aponta um ridículo, sublinha uma virtude. As coisas triviais, tais como as
conhecemos, passam desapercebidas ou esquecem brevemente; o exagero, pelo
contrário, fica, grava-se a estilete na memória. Viu-se hoje um bom retrato dum
sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quisermos; amanhã nada restará no
pensamento; mas, se foi relanceada a caricatura, fica a súmula cá dentro, uma
reminiscência pertinaz do traço fisionômico (e mais do que isso) do indivíduo.
Seja como for e por que for, é hoje indiscutível que a caricatura representa um
meio altamente poderoso de impressionar os homens; estude-se-lhe os efeitos,
por exemplo, na polêmica dos princípios, onde ela vale pela mais possante
picareta demolidora das instituições, dos tronos e das crenças, rasgando a
estrada nova por onde investem os partidos avançados.
Estando isto assente, imaginem agora um paquete,
despejando em qualquer cais japonês um bando de louros estrangeiros. Eles
todos, os lorpas, têm nos rostos essa feição anódina das cabeças, que é uma das
formas de beleza mais frequentes nas raças europeias; e a julgar pelo olho
azul, de porcelana, sem expressão, sem alma, pode admitir-se que lá dentro da
casca não há senão pevides em guisa de miolos.
Mãos rudes, vermelhas, cabeludas, pés enormes; —
estigmas de um temperamento avesso a coisas de arte e a todas as delicadezes do
sentir. — Emparelham pelas manifestações do gosto: vestidos todos de alvadio,
coco no cocuruto da cabeça, sapatos amarelos e ramozinho na carcela. Como
entidades prestantes, embora talvez não prestem para nada, uns são sábios,
outros são navegadores, outros são diplomatas, outros possuem manhas
maravilhosas de balcão; mas — coitados! — em todos se acoberta o micróbio
devastador, oriundo dos grandes centros, nascidos da podridão da descrença, do
egoísmo, da inveja, da cobiça e da misantropia; e na face e nos gestos alguma
coisa já assoma do mal de que enfermaram. Alguns dão o braço a outros sujeitos
sem bigode, com grandes mãos vermelhas igualmente, e enormes pés calçando
sapatos amarelos; usam bengala, colarinho alto de bretanha, gravata, túnicas em
forma de campânula, uma alcofa à cabeça, cheia de ervas, de aves e de fitas: —
são as damas —.
Os pobres forasteiros veem-se assim de improviso e de
surpresa no meio exótico entre todos, requintadamente artístico, caricatural e
sorridente, que é todo este Japão. Dominados pelos aspetos, alucinados pela
iniciação imposta, riem também, e julgam também sentir a graciosidade indígena
e a gentileza dos cenários. Ei-los que cruzam as estradas e os trilhos das
montanhas, seguem em caravanas numerosas a visitar os lugares célebres,
incorporam-se nas romarias, entram nos templos e entram nos teatros, bebem chá
japonês, e até, burlescamente ajoelhados, engolem o arroz cozido e deliciam-se
no peixe cru que as criadinhas vão servindo.
Oh, a paisagem japonesa! Como ela é encantadora e
fresca, estranha, paradisíaca!... e como aqui o pensamento se dilata, num longo
divagar sereno e amoroso, tão distinto das preocupações sombrias que além, na
Europa, azedam a existência!... Mas não sei quê da alma asiática, sutilmente
motejador e sarcástico, sutilmente intolerante, paira aqui, emana da coloração
e da forma das coisas, do grito dos animais, do gesto e voz da gente; não se
define, mas existe, hostilizando em tudo o pobre intruso. É como que uma
exortação contínua e impertinente do Buda e dos deuses tutelares, murmurada a
todos os instantes: — “Vai-te, volta à terra dos louros; contempla os teus
deuses, visita os teus templos, recreia-te nos teus salões, bebe o teu whisky e
soda; mas deixa em paz este solo, que não é teu, que te detesta; e onde, para
assimilares a harmonia da criação e o sentimento nacional, precisas de uma
fluidez de espírito e de uma serenidade de consciência, que te faltam!...”
Cedo ou tarde, amanhã, em dois meses, em dois anos, o
homem louro enfastia-se, compenetra-se da fatalidade dos destinos, que criaram
o Japão para os japoneses. Uns desertam, e fazem nisso muito bem; outros ficam.
Nos que ficam, o desgosto pela terra do exílio enraíza, alastra como uma lepra
corrosiva.
O desgosto, nas mulheres, cristaliza brevemente em
ódio, um ódio desesperado, sem tréguas; explicável pela maior vibratilidade dos
nervos no sexo, pela vida ociosa, e também, e principalmente, pelo penoso
confronto com a mulher indígena, cujo fresco perfil e requintado tato feminil
são uma provocação terrível aos seus méritos. A mascarada eterna japonesa, a
despreocupação, o riso crônico, os traços caricaturais de todos e de tudo, os
dichotes zombeteiros dos gaiatos, — “ijin, ijin!” estrangeiro, estrangeiro! —
tudo irrita, belisca redunda por fim num suplício insuportável, que nem
respeita o lar, entrando mesmo pelas janelas dentro como um exame de mosquitos.
Triste lar, tantas vezes!... Junto da família do sr. Fulano, seja qual for a
sua nacionalidade e situação, contai como provável um hóspede permanente, — o
aborrecimento. — A embriaguez, a dissipação, a quebra fraudulenta, o roubo, o
suicídio, o adultério, o assassínio, todos os desmandos de uma sociedade
incongruente, sucedem-se nas pequenas colônias europeias do Japão com uma
triste frequência, eloquentíssima!...
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