11/28/2017

A caricatura no Japão (Conto), de Wenceslau de Moraes


A caricatura no Japão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Grande coisa, meus senhores, é ter engenho!.. Eu não me gabo muito desta prenda, confesso-o francamente; mas tive há pouco azo de julgar pela própria consciência — mercê dum rasgo excepcional do meu bestunto — quanto vale uma boa ideia; e concluí que a felicidade humana seria coisa fácil, se uma impulsão sagaz do espírito fosse guiando sempre os nossos passos neste mundo. E assim fica satisfatoriamente justificada, penso eu, a exclamação com que enceto estas divagações, escritas por uma noite fria de Janeiro, no meu gabinete silencioso, na cidade de Kobe, no Japão.
Vamos ao fato. Ah, pobre espírito enferrujado pelos azedumes da existência, gasto pela longa fricção das coisas e dos homens, sofrendo pela dor do passado, pela insipidez do presente e pelas tristes promessas do futuro! como tu, meu pobre espírito, caíras na quase insânia, consciente, e por isso mesmo mais penosa, daqueles para quem, por mal dos seus pecados, a vida se vai tornando toda um imenso enfado... Morbidez de temperamento? incompetência ingênita para a luta? fadiga, após os mil baldões da sorte? pouco importa; não vale a pena agora desenredar esta meada. Passava, e passo ainda, longas horas do dia junto da minha secretária; é este o meu ofício. Alguém, que entrasse, via-me grave, correto, rodeado de livros e papéis, e até, presumo, — perdoem-me a vaidade — talvez me atribuísse uns certos ares de sábio, em cuja mente magnos problemas se iam sublimando. Só, bem só, entre quatro paredes discretas, desfalecia; o olhar vago fixava-se no nada, todo o meu ser se inutilizava, perdia-se em abstrações, desinteressado da realidade, de mim mesmo, morto, — porque há para alguns uma morte percussora daquela que rói na tumba a febra e põe a nu os ossos brancos do esqueleto. — E vai então, um belo dia, achando-me casualmente num bazar de Osaka, compro uma figurinha de barro da deusa O Fuku-san, que coloquei sobre a mesma secretária referida.
Ora aqui está, no fim de contas, em que consiste o meu rasgo genial; e vou dizer porquê. O barro é trabalhado por dedos tão amorosos de artista, — um obscuríssimo artista certamente; — a pasta impregnou-se com tanta obediência da feição predominante da alma japonesa, — naturalismo humorístico, caricatural; — que a deusazinha patusca que aqui tenho a meu lado, uma bugiganga de três polegadas de altura, quanto muito, é toda ela uma gargalhada viva, supina, radiosa!... Acontece que a tristeza, borboleta negra das trevas, foge espavorida da minha convivência; pouso os olhos na deusa, e desato a rir perdidamente; e assim me tornei o homem mais divertido deste mundo.
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Antes de ir mais longe na palestra, justo é que me detenha e diga em poucas frases quem é O Fuku-san. Divindade popular, patrona da boa fortuna e da alegria, representa na gênesis japônica um papel de subida importância incontestável. Izagani e Izanami, os deuses iniciais e criadores, formaram o Japão e tiveram por filha, Amaterasu, a deusa do Sol, e outros filhos, todos com maravilhosos atributos. Amaterasu residia no céu, alumiando a terra; delicioso ofício; mas tamanhas afrontas sofreu de um seu irmão, o deus da Lua por sinal, que se amuou e decidiu esconder-se, escolhendo para retiro uma caverna, aonde se meteu, vedando a entrada com uma enorme pedra; a terra, é obvio, achou-se às escuras de repente. Os deuses, apavorados, — o caso não era para menos, — recolheram-se em conselho, e resolveram o seguinte, depois de larga discussão: foram postar-se todos bem junto da caverna; Takadjira, o deus de enormes braços, ficou junto da entrada, fazendo sentinela; O Fuku-san, a mais divertida das patuscas, pôs-se a cantar modinhas; ou, quando não cantava, tocava numa gaita de bambu; ou, quando não tocava, bailava minuetes, acompanhando a dança de mil trejeitos faceciosos. Tanta pilhéria teve a figurona, que a deusa Amaterasu, no seu antro, começou a interessar-se na galhofa, a rir às furtadelas, — ou não fosse ela japonesa! — e arredou um pouco, para o lado, o pedregulho, alongou um nada a cabecita para fora, e assim se pôs a gozar melhor da brincadeira. Então Takadjira, num relance — zás! — caiu-lhe em cima, lançou-lhe os longos braços ao pescoço, puxou-a para si, foi à força pousá-la no seu trono... e a terra de novo continuou a ser alumiada pelo sol!
A arte popular veste a deusa O Fuku-san em belos trajos da corte, dos velhos tempos, cetins rojantes, brancos e escarlates, e molda-a nos ultracômicos contornos duma japonesita enormemente obesa, toda ela refolhos de gordura, banhas de pescoço, de colo, de seios, de barriga, redondezes pasmosas de quadris, e mãos e pés papudos. A cara, a imensa caraça, de lua cheia, é um poema completo de monstruosidade triunfal e hilariante: faces prodigiosamente bochechudas, caiadas de cosméticos; um narizito que mal se vê, rombo, abatatado, como que calcado para dentro, a golpes de martelo; à fronte curta e estreita, de imbecil, colam-se dois bandós de cabelos de azeviche; foram rapadas à navalha as sobrancelhas, segundo o uso clássico; os olhinhos piscos, matreiros e gaiatos, reluzem pelas fendas estreitas das pálpebras carnudas; e a boca, a boquinha, em forma de cereja, acarminada, sorri em curvas, em pregas, em covinhas impagáveis... Mas não há palavras que descrevam, nem de longe, a expressão de toda a figurinha — porque vai além da nossa compreensão de ocidentais, — no que dela irradia de jocosidade perene, de beatífico comprazimento, de vagos tiques de inconsciência infantil, de imbecilidade, de malícia, de perversão; um indefinível conjunto de não sei quê de iminentemente pueril, satânico e grotesco, todavia gracioso, que é no fim de contas uma das feições mais características e mais emocionantes da arte inteira japonesa.
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Ensina-se nos livros que por meados do nosso século XII, o pintor Kakuyu, que era bonzo budista, iniciou no Japão a pintura caricatural. Pois seja assim; concedo ao frade o mérito de ter traduzido pelo pincel, por vez primeira, o humorismo desta gente. Mas tal humorismo, como feição moral, nasceu com o mesmo povo, é-lhe um vetor do sentimento; e cada japonês é, e foi, e será, um caricaturista. Quando se estuda a lenda indígena japonesa, no vasto repertório das suas fábulas, que eu penso representarem sempre o mais remoto documento do feitio estético, da individualidade psíquica, duma qualquer grande família humana, depara-se na cena com a mais curiosa fauna falante — macacos, caranguejos, raposas, alforrecas, ratazanas e outros vários bichos; — no apólogo grego, por exemplo, os brutos são doutores, discursam como filósofos e como moralistas; no apólogo japonês, menos profundo, mas talvez mais incisivo, a bicharia contenta-se em mascarar-se vestindo kimonos e enfiando as patas nas sandálias, faz caretas, galhofa, dança e ri, em desenvolturas caricaturais da mais desopilante troça a todos os ridículos.
Quando as artes se desenvolvem e nacionalizam, e atingem uma feição independente, inconfundível, a caricatura, como que traduzindo uma recordação da lenda, vem desempenhar um papel importantíssimo, não só na pintura, mas nas multíplices afirmações do engenho — escultura, ornamentação da porcelana, da faiança, dos charões, dos bronzes, em tudo. — Graças ao pincel e graças ao buril, as rãs decidem-se a vir tocar guitarra para a rua; os pardais oferecem banquetes aos seus íntimos, servidos em porcelanas primorosas; desfila um cortejo de raposas, levando a noiva, a rapozinha, ao noivo feliz, que a espera no seu lar; pelo dorso de Hotei, deus da bondade, vão trepando os garotos, e um mais atrevido vai pousar-se-lhe em cima da careca; os guerreiros cobrem os rostos com máscaras de um cômico façanhudo indescritível. Hokusai, o grande mestre da escola vulgar em pintura, delicia-se em desenhar cegonhas dum só traço repentino, maravilhosos gatafunhos, palpitantes de observação e de verdade; no seu álbum dedicado ao Fuji-yama, a montanha sagrada, contorna-a vista através de uma rede, que um pescador tira do mar; e através de uma teia de aranha; e entre o A das pernas nuas dum operário tanoeiro, que do alto de uma dorna ajusta à força de malho as aduelas; e refletida no chá da taça que um esfarrapado mendigo leva à boca. Hokusai, em 1804, durante certa festividade num templo, manda estender no solo uma folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza; vem mais um barril com água, outro barril com tinta preta, uns oitenta litros dela, e mais duas enormes vassouras e três vassouras mais pequenas; entra o mestre, empunha uma vassoura embebida na tinta, traça sobre o papel curvas gigantes; no fim de alguns minutos termina a sua obra, que só é compreendida quando alguns dos milhares dos assistentes se lembram de galgar ao telhado do templo: à distância e do alto, o imenso quadro representa um admirável busto de Daruma, o grande apóstolo budista. Por aquela mesma época, Hokusai pintava sobre um bago de arroz um grupo de aves, encantador, mas só distinto com a ajuda de uma lupa.
É esta caricatura, melhor será talvez dizer — este humorismo, que o japonês exerce com habilidade única, magistralmente, prodigiosamente; é por ela, é por ele, pelo segredo dos exageros, pelo arrojo da execução, que alcança intenções flagrantes no traço, uma alma quase na paisagem, um conceito na árvore, no ramo em flor, no simples contorno de um rochedo... Na pintura japonesa, por exemplo, um pargo, um caranguejo, uma lagosta, o figurão zoológico mais lorpa que possa imaginar-se, vivem na tela, isto é, acusam uma vontade, uma intenção, um sentimento, como a fome, como o medo, como o cio. Não se diga que é a fiel reprodução do modelo que dá isto, — a fotografia dum caranguejo não palpitaria de vida; — é pelo contrário o exagero propositado de certas linhas, o exercício de uma arte misteriosa, que naturalmente se inspira no perfeito conhecimento estrutural e sentimental do bicho, animalizando de certo modo o artista e humanizando o bruto, e permitindo caprichos descomunais que o observador não descrimina, que o levam a exclamar, não sei por que remotas reminiscências ancestrais de súbito recordadas: — “aquele linguado acha-se triste... aquele camarão arde em ciúmes... aquela lombriga está-se a rir... —”
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O humorismo japonês não se limita às artes; divulga-se nos costumes do povo, nos seus hábitos; quando nos intrometemos na intimidade indígena, ainda o espetáculo de inesperados disparates, de requintadas extravagâncias, vem ferir a nossa pupila e prolongar-nos o espanto. Eu não pretendo escrever aqui um tratado dos exotismos desta gente, aponto ao acaso alguns dos que me ocorrem.
Pois não são disparatadas, caricaturais, estas mangas prodigiosamente amplas dos vestidos, e na própria fazenda a estupenda policromia dos matizes? E estas peanhas de madeira, à laia de calçado, onde se pousam os pés nus dos japoneses? E estes penteados enormes das mulheres, transformando-lhes as cabeças em estupendos monumentos ambulantes? E o obi, a cinta de seda que cinge as ancas da musumé em voltas sobrepostas e rematadas num laço colossal? E o costume das casadas, quando em sinal de desapego às vaidades deste mundo, se desfeiam rapando as sobrancelhas à navalha, e envernizando de preto a fila dos dentinhos? A casa de papel, o jardim de Liliput, a vida passada de joelhos sobre a esteira, a refeição servida em taçazinhas e apreendida nas pontas dos pauzinhos, a arte doméstica da preparação do chá e dos ramos de flores, a dança, a música, a cama improvisada a um canto com duas colchas de seda e uma boceta de charão por travesseiro, as mil saudações trocadas entre duas pessoas que se encontram, todos os aspetos da vida indígena enfim, íntimos, sociais, brincadeira, como se o japonês tivesse vindo ao mundo para se rir de tudo em que se ocupa, e para se rir de si primeiro do que de tudo... Chega-se sem muita dificuldade a compreender porque, nas relações de convívio de um para outro, de preferência à palavra, de preferência ao gesto, uma maneira há mais eloquente de traduzir o pensamento: — a gargalhada!...
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O próprio japonês é uma caricatura. Não se espantem da asserção os que tiverem a pachorra de me ir lendo; eu hei de ainda provar que o próprio deus dos japoneses, o sublime criador do Dai-Nippon, formou num estado de alma galhofeiro esta terra, sem sistema, sem programa estudado e sem pressas; sem pressas certamente, recriando-se nos cômicos caprichos que a fantasia lhe ditava e a mão omnipotente ia executando, ferramenta do ofício em ação, escopo ou broxa, afeiçoando, retocando, caricaturando, o que do caos ia surdindo à flor das águas. Depois, concluída a obra, devia ter soltado uma gargalhada retumbante!...
Ora desde remotas eras até hoje, pratica-se no Japão um exercício de luta, um sport (como se diz agora) muito em voga, e do especial agrado desta gente; é o espetáculo favorito durante determinadas épocas do ano. Limita-se no campo um espaço com esteiras e bambus, e ao centro dispõe-se uma pequena elevação em forma circular; içam-se galhardetes e bandeiras, rufa o tambor, e o povo aflui por centenas de curiosos, compra o seu bilhete e toma pouso; dois homens, quase nus, combatem corpo a corpo, como na arena grega, até que um deles derruba o companheiro e é proclamado vencedor. Estes lutadores de profissão são escolhidos dentre os gigantes, dentre os atletas, e é na província de Tosa que especialmente se recrutam. Não são homens, são caricaturas de homens, são monstros, enormes, valendo cada um em peso e em dimensões por seis japonezitos ordinários. Não se imagina, nem podem descrever-se, as caras, os carões de tais sujeitos; são máscaras disformes, caraças imberbes, olhinhos ferinos repuxados para a testa, queixada vigorosa e dentuça arreganhada, orelha polpuda e ampla, trunfa hirta e espessa, e um risinho estranho, sarcástico, mistura de riso de criança e de riso de demônio; nem há palavras que expliquem a amplidão dos vultos, a obesidade das carnes, o braço roliço quase feminino, os seios eretos, o enorme ventre impando, lenta a marcha e ondulante, de urso da Sibéria em liberdade. Asseguram estudiosos que estes monstros de Tosa são os últimos restos, preciosos modelos vivos, da raça pré-histórica japonesa... Pode assim ser; no japonezito de hoje, embora geralmente franzino, miudinho, delicado, não repugna acreditar que alguma coisa haja de comum com os lutadores de Tosa: como que laivos de família, a vaga semelhança com um avô... a não querermos mais longe ainda ir procurar-lhe afinidades, num remoto parentesco com a deusa O-Fuku-san, que continua a rir-se para mim, e eu a rir-me para ela...
Relanceemos a chusma, nos teatros, nas feiras, nas romarias, nos bazares? Pode dizer-se, em geral, que o tipo do japonês, da sua fêmea, e mais acentuadamente ainda nos obesos, ou nos magros, ou nos anões, ou nos albinos, ou nos coxos, ou nos corcundas, ou nos leprosos, ou nos que têm um lobinho, ou nos que têm o nariz roído, em todos aqueles enfim em que um defeito, uma tara, sobressai, é caricatural supinamente, cômico a ponto de nos fazer morrer de rir às gargalhadas!... Ah, maganões! vocês, quando nos deram as imagens dos seus deuses, dos seus gênios do lar: uns pançudos, como odres; outros esqueléticos, macabros; uns pachorrentamente joviais, outros terríveis, despedindo raios sobre a terra; vocês retrataram-se a si mesmos, segurando com uma das mãos o pincel e com a outra o espelhinho onde se viam, maganões!... Especializando, da multidão das ruas, essa figurinha em miniatura que tão irresistivelmente cativa as atenções do estrangeiro, toda ela matizes, perfumes, frescura, gentileza, a figurinha da musumé, da rapariga, podemos ainda defini-la como uma caricatura, a caricatura mais travessa, a quimera humana mais deliciosa, em que jamais olhos de viajante se pousaram!...
Profundar o enigma do feitio moral da tribo é impossível. Apenas conhecemos vagamente que a vida íntima desliza serena e pueril, sem ralhos, sem exasperos, em culturas de arbustos, em contemplações dos astros, em banhos quentes, em esmeros junto do espelho, em brinquedos com as crianças, em debandadas pelos campos, em libações de chá, em jantarinhos de arroz e fatias de nabos em salmoira, em sonecas tranquilas debaixo do verde mosquiteiro protetor... Mas desta mesma gente explodem também por vezes os grandes dramas: crudelíssimos assassínios, por cegueira de ciúmes; suicídios duplos, por desespero de amor, — ele e ela cingidos num derradeiro abraço; — e essa horrível sede de sangue, o homem transformado em fera, trucidando tudo vivo que encontra, estado de loucura conhecido entre os estrangeiros do Oriente pela denominação de amock, palavra malaia ou javanesa.
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A tribo parece ter sido feita de encomenda para o país exótico que lhe foi dado em patrimônio. Percorrendo-o, estudando-o nos aspetos, melhor se compreende a índole estética do povo, a alma nacional, com as suas delicadezes, com as suas graciosidades, com os seus caprichos, com os seus disparates; manifestações multíplices de um caráter particularíssimo de origem, mas no qual a influência muito especial do meio laborou também intensamente.
Comparando os aspetos normais, comezinhos, que se desdobram por este mundo fora, com outros aspetos excepcionais, em contraste flagrante com a disposição comum das coisas, pergunto eu se o termo — disparate, — se o termo — caricatura, — são permitidos, julgando a obra da onipotente criação? Haverá, por exemplo, um ilhéu disparatado, um pinheiro caricatural? Se permitidos são, se há tal ilhéu, se há tal pinheiro, então não se pode imaginar coisa mais disparatada, mais caricatural, do que este arquipélago, já disparatado de nascença, emergindo a pique e como por encanto, do seio das águas mais profundas do oceano, tênue, rendilhado como uma joia em filigrana, convulsionado a todos os momentos por misteriosas comoções vulcânicas, zurzido por tremendos ciclones, invadido por vezes pelas ondas enormes do Pacífico, caprichosa quimera geológica enfim, que pode amanhã desaparecer no abismo, sem que por tal se espantem muito os sábios!... Tal é o império do Japão.
A paisagem extravagante, inverossímil, inacreditável, das porcelanas e charões, hoje divulgada em toda a parte, é com efeito a paisagem real deste Japão. Colinas, penedias, verdes planícies, lagos, cascatas, torrentes espumantes, ribeiras dormentes, vales profundos, mares interiores salpicados de ilhas e rochedos, tudo reduzido a miniaturas graciosíssimas, reunido em grupos incongruentes e projetado em fundos de céu estupendamente coloridos, eis o que os olhos abrangem num relance.
Demoremo-nos nos detalhes. As coníferas (algumas espécies enormes) vestem as encostas, trepam pelas ribanceiras acima, até irem coroar os últimos píncaros das serras. Aqui, um bosque de bambus gigantes, cuja sombra eterna e cuja paz soturna dão alucinações àquele que se aventura em devassar o seu mistério. Ali, outro bosque, de bordos, de momiji; em Novembro, a sua tênue folhagem digitada passa do verde-claro ao escarlate; o cenário adquire assim deliciosos exotismos ultraterrestres, como se a gente se achasse de repente pisando o solo de Marte ou de Saturno. A semente do acaso caiu sobre uma pedra à flor das águas; germinou o pinheiro, a rede das raízes abraça-se ao granito, e ergue-se desamparado o tronco, torcido, contorcido pelos anos e pelas intempéries, refletindo no espelho glauco a sua eterna cabeleira de verdura; há árvores, enobrecidas ou pela vetustez ou pela forma estranha, célebres como heróis, que são visitadas por uma multidão de peregrinos. As ameixieiras, as cerejeiras, abundam; pela Primavera, cobrem-se de florescências pasmosas, luxuriantes, como nunca se viu em parte alguma; mas não dão fruto, as trapaceiras.
Nos jardins, continua a flora exótica, desconhecida. Trepa, por onde pode, a asagao; e abre à alvorada, por curtas horas, as suas frescas campânulas, de qualquer cor, porque as variedades não se contam, são milhares. Desabrocha a peônia, enorme, paradoxal. E enfileiram as crisântemos, a flor nacional, sob tendas que as abrigam do sol, podendo lembrar cortesãs em exposição nos bairros de prazer, pela extravagância das cores e dos feitios, que recordam a confusão policroma dos vestidos e dos penteados das mulheres; mas que realmente se assemelham a enormes actínias, monstros dos mares, multiplicando-se em mil tentáculos contorcidos, brancos, amarelos, rosados ou sanguíneos.
Agora a fauna. Pelo espaço, negrejam bandos de corvos, os karasu, escarninhos, voando e rindo às gargalhadas. Enormes borboletas pretas, nunca vistas, sugam as corolas. De dia, de noite, é incessante o ruído das cigarras, dos grilos, de outros bichos. Noites há, pelo Estio, junto às ribeiras, em que uma chuva de fogo, de pirilampos aos miríades, motiva festas ruidosas. Nos lagos dos jardins vagueiam peixes de ouro, com os olhos a estourarem, com as caudas esfarrapadas e rojantes, como se fossem longos capotes de mendigos. Junto da casa de papel toma o sol, cantarola o galo anão, do tamanho duma pomba; e à porta assoma o gato indígena, esquelético, rabugento, sem rabo... porque todos os gatos no Japão nascem sem rabo; ou é o cão que ladra, o chin, verdadeira caricatura de cão, com os olhos esbugalhados a saltarem-lhe das órbitas, sem nariz, a cauda em pluma, parente degenerado de qualquer monstro de épocas remotas, hoje extinto.
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De sorte que todo este Nippon, — arte, povo, paisagem, planta e bicho, — é uma deliciosa mascarada. Como fazer sentir isto a quem o não conhece, depois de ter escrito o que escrevi, e de concluir que nada escrevi do que me vai no pensamento? Olhem: fixem um espelho esférico, ou cilíndrico; o aspeto das formas refletidas é uma interminável surpresa hilariante, de caretas supinas, de linhas torturadas; pois tal é o aspeto do Japão...
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Todos sabem como a caricatura, pelo desenho e pela escrita, exerce nas sociedades uma influência decisiva. A pintura e o livro humorísticos subjugam a atenção e imperam no espírito com intensidades únicas, alheias às outras formas de arte. Porquê? Fora difícil explicá-lo aqui. É certo que a ironia, na obra criada, faz mais do que criar: estigmatiza um defeito, aponta um ridículo, sublinha uma virtude. As coisas triviais, tais como as conhecemos, passam desapercebidas ou esquecem brevemente; o exagero, pelo contrário, fica, grava-se a estilete na memória. Viu-se hoje um bom retrato dum sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quisermos; amanhã nada restará no pensamento; mas, se foi relanceada a caricatura, fica a súmula cá dentro, uma reminiscência pertinaz do traço fisionômico (e mais do que isso) do indivíduo. Seja como for e por que for, é hoje indiscutível que a caricatura representa um meio altamente poderoso de impressionar os homens; estude-se-lhe os efeitos, por exemplo, na polêmica dos princípios, onde ela vale pela mais possante picareta demolidora das instituições, dos tronos e das crenças, rasgando a estrada nova por onde investem os partidos avançados.
Estando isto assente, imaginem agora um paquete, despejando em qualquer cais japonês um bando de louros estrangeiros. Eles todos, os lorpas, têm nos rostos essa feição anódina das cabeças, que é uma das formas de beleza mais frequentes nas raças europeias; e a julgar pelo olho azul, de porcelana, sem expressão, sem alma, pode admitir-se que lá dentro da casca não há senão pevides em guisa de miolos.
Mãos rudes, vermelhas, cabeludas, pés enormes; — estigmas de um temperamento avesso a coisas de arte e a todas as delicadezes do sentir. — Emparelham pelas manifestações do gosto: vestidos todos de alvadio, coco no cocuruto da cabeça, sapatos amarelos e ramozinho na carcela. Como entidades prestantes, embora talvez não prestem para nada, uns são sábios, outros são navegadores, outros são diplomatas, outros possuem manhas maravilhosas de balcão; mas — coitados! — em todos se acoberta o micróbio devastador, oriundo dos grandes centros, nascidos da podridão da descrença, do egoísmo, da inveja, da cobiça e da misantropia; e na face e nos gestos alguma coisa já assoma do mal de que enfermaram. Alguns dão o braço a outros sujeitos sem bigode, com grandes mãos vermelhas igualmente, e enormes pés calçando sapatos amarelos; usam bengala, colarinho alto de bretanha, gravata, túnicas em forma de campânula, uma alcofa à cabeça, cheia de ervas, de aves e de fitas: — são as damas —.
Os pobres forasteiros veem-se assim de improviso e de surpresa no meio exótico entre todos, requintadamente artístico, caricatural e sorridente, que é todo este Japão. Dominados pelos aspetos, alucinados pela iniciação imposta, riem também, e julgam também sentir a graciosidade indígena e a gentileza dos cenários. Ei-los que cruzam as estradas e os trilhos das montanhas, seguem em caravanas numerosas a visitar os lugares célebres, incorporam-se nas romarias, entram nos templos e entram nos teatros, bebem chá japonês, e até, burlescamente ajoelhados, engolem o arroz cozido e deliciam-se no peixe cru que as criadinhas vão servindo.
Oh, a paisagem japonesa! Como ela é encantadora e fresca, estranha, paradisíaca!... e como aqui o pensamento se dilata, num longo divagar sereno e amoroso, tão distinto das preocupações sombrias que além, na Europa, azedam a existência!... Mas não sei quê da alma asiática, sutilmente motejador e sarcástico, sutilmente intolerante, paira aqui, emana da coloração e da forma das coisas, do grito dos animais, do gesto e voz da gente; não se define, mas existe, hostilizando em tudo o pobre intruso. É como que uma exortação contínua e impertinente do Buda e dos deuses tutelares, murmurada a todos os instantes: — “Vai-te, volta à terra dos louros; contempla os teus deuses, visita os teus templos, recreia-te nos teus salões, bebe o teu whisky e soda; mas deixa em paz este solo, que não é teu, que te detesta; e onde, para assimilares a harmonia da criação e o sentimento nacional, precisas de uma fluidez de espírito e de uma serenidade de consciência, que te faltam!...”
Cedo ou tarde, amanhã, em dois meses, em dois anos, o homem louro enfastia-se, compenetra-se da fatalidade dos destinos, que criaram o Japão para os japoneses. Uns desertam, e fazem nisso muito bem; outros ficam. Nos que ficam, o desgosto pela terra do exílio enraíza, alastra como uma lepra corrosiva.
O desgosto, nas mulheres, cristaliza brevemente em ódio, um ódio desesperado, sem tréguas; explicável pela maior vibratilidade dos nervos no sexo, pela vida ociosa, e também, e principalmente, pelo penoso confronto com a mulher indígena, cujo fresco perfil e requintado tato feminil são uma provocação terrível aos seus méritos. A mascarada eterna japonesa, a despreocupação, o riso crônico, os traços caricaturais de todos e de tudo, os dichotes zombeteiros dos gaiatos, — “ijin, ijin!” estrangeiro, estrangeiro! — tudo irrita, belisca redunda por fim num suplício insuportável, que nem respeita o lar, entrando mesmo pelas janelas dentro como um exame de mosquitos. Triste lar, tantas vezes!... Junto da família do sr. Fulano, seja qual for a sua nacionalidade e situação, contai como provável um hóspede permanente, — o aborrecimento. — A embriaguez, a dissipação, a quebra fraudulenta, o roubo, o suicídio, o adultério, o assassínio, todos os desmandos de uma sociedade incongruente, sucedem-se nas pequenas colônias europeias do Japão com uma triste frequência, eloquentíssima!...

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