11/02/2017

A cabra-cega (Conto), de Virgílio Várzea


A cabra-cega
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O rosado vivo do crepúsculo esmaiava já numa palidez fria que um azul ferrete invadia, quando o André, depois de arrumado o gado, de porrete em punho e chapéu à banda, encaminhou-se cantando para a Várzea de Baixo, onde o engenho do tio Luiz Dutra, de fornalha acesa, bulhando de alegria, farinhava para todo o ano.

Ia lentamente escurecendo. Um gelado sopro do norte deslocava-se, rijo e sibilante, do pendor alcantilado da serra; e, de vez em quando, fortes rajadas, cortantes como lâminas afiadas, passavam, rastejantes e furiosas, arrepiando as árvores e enchendo de uma zoeira lúgubre a planície. No alto, do amplo azul curvo e esgazeado do Espaço, pendia e cintilava uma prateada e deslumbradora florescência de estrelas, que a Via Láctea brandamente nevava e atravessava em faixa.

Ainda em caminho, já quase ao chegar à encruzilhada que ia dar ao engenho, o André ouviu bem clara no ar a voz melancólica e sonora do forneador, cantando a Bela menina, e as frescas e tilintantes risadas das moças, dentre as quais sobressaía, límpida, simpática e doce, a da Francisca, a filha mais nova do tio Luiz. E, estugando o passo, ansioso por chegar de uma vez, avistou, logo adiante, o clarão avermelhado do forno do engenho, que se projetava através da porta, largo e suavíssimo, iluminando transversalmente o terreiro arenoso e branco, onde dava grandes latidos roucos, ao sentir barulho de gente, o Fila, o velho cão de guarda da casa.

Explodiram de novo as castas risadas das raparigas, que atravessavam aos pulos, com as saias ao vento, a claridade viva da porta.

Brincava-se a cabra-cega.

O André, ao chegar, mal pôs o pé no portal e deu boa-noite a todos, fazendo um gesto de longe com a mão direita aos lábios para pedir a bênção aos tios que peneiravam num cocho massa para beijus, raspou-se logo a ter com as raparigas que se divertiam escondidas pelas ervagens, pelos cafezeiros e laranjeiras próximos, enquanto uma outra, baixota e de grandes ancas carnudas, vendada nos olhos com um lenço arroxeado em volta da cabeça, as procurava por toda a parte, com um tato incerto e desajeitado de cego, estonteada, às apalpadelas.

Então o André gritou que também queria entrar na brincadeira e, disparando em seguida, foi acocorar-se numa das empenas do engenho, dando o sinal de “ticar”, fazendo — uh-uh! E por um descuido e uma facilitação de rapaz adestrado e manhoso, foi-se deixando ficar parado, até que a rapariga, casualmente, o pegou pelas costas, vocalizando sonoramente:

— Está tico; tiquei!

Todos correram então para a canzola, num grande alarido de satisfação; e a Francisca Dutra, a mais galante e desembaraçada da roda, a bela namorada do André, saiu à frente, e desatando o lenço do rosto da Joana o foi atar nos olhos dele, com segurança, a grandes nós rijos atrás da cabeça. Depois, batendo-lhe de mão espalmada nas costas, na atitude inquieta e livre de quem quer fugir, com um aspecto de gazela arisca, deitou a correr com as companheiras para trás do engenho, após ter pronunciado violentamente à grossa nuca do rapaz, com o seu bom hálito quente e perfumoso, as velhas e tradicionais palavras cabalísticas, que a gente sabe tão bem de cor na infância:

— Cabra-cega, de onde é que vens? — Venho do Moinho. — O que é que trazes? — Um saquinho de farinha. — Dá-me um bocadinho. — Não te dou, não!

E ditas estas palavras, muito entrecortadas de riso, sob a pressão suave da derradeira palmada do jogo que manda partir imediatamente os que se vão esconder, o rapaz botou-se, a toda, na direção ruidosa das saias esvoaçantes. Atravessou-lhe então o espírito, como uma lava, uma ideia deliciosa de amor: perseguir a Francisca, a adorada amada e agarrá-la, abraçá-la e beijá-la ali, sofregamente, sob as ramagens...

E, seguindo o fru-fru guiador do seu rastro, com o coração aos saltos sob aquela lembrança inefável, atravessou a correr pelos fundos do engenho, onde estacou subitamente ante a presença embaraçadora de umas sebes altas, que floresciam vigorosamente aí impedindo a passagem por aquele lado. Desesperado, tentou arrancar o lenço, mas não o conseguindo pela segurança com que lho tinham amarrado, começou nervosamente a tatear as ramagens, respirando a longos haustos: e dando de repente com uma aberta na verdura, onde lhe pareceu que um rumor se aninhava, avançou logo precipitadamente, num grande alvoroço...

As bananeiras, perto, farfalhavam melancolicamente, com as franjas tremulando à rajada do vento.

O André, de um ímpeto, rompeu a rebuscar as moitas entrelaçadas, quando esbarrou com um corpo de mulher agachado; e julgando que fosse a Francisca, todo trêmulo e emocionado, as mãos escaldando, numa arrebatação, o foi apalpando e enlaçando carinhosamente — a alma em febre, ofegante, numa saciação frenética de beijos, pela nuca, pelo seio e pela cara.

A mulher, então, desandou a berrar como uma louca, esganiçadamente, e ele, estranhando lhe a voz sibilante e desafinada de velha, soltou-a logo, assustado, nervoso, numa “entaladela”, arrancando o laço dos olhos atrapalhadamente, num pânico, numa perturbação, arranhando a pele do rosto trigueiro com as suas grossas mãos, duras e calosas de lavrador. E ao reconhecer que era a mulher do Domingos Téa, o Cara Feia, como o chamava o povo, pelo acentuado feroz das suas feições, sempre afiveladas numa seriedade carrancuda e hostil de assassino — um bruto que só de um murro matava-o! — abandonou tudo e deitou a correr para a estrada como um cão perseguido.

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