Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Atracado ao
trapiche, na ampla baía em calma, sobre espias dando volta em arganéus de ferro
fincados nas grossas pedras do cais, um enorme steamer carrega. Metido de popa, a linha d'água imerge já aí,
enquanto o vermelhão do fundo, pintado de fresco, se mostra ainda, no casco
preto, aberto em nesga, à proa. Em volta, na vasta planura líquida
resplandescendo em largos chamalotes de prato, outros navios, em grupos, eriçam
o ar de mastros. Pequenos botes, em manchas policromas, singram morosamente, a
remos, rente à água, à sombra das bordas altas dos barcos. E lanchinhas
fumegantes cruzam-se rápidas, atracando e desatracando, num movimento
constante, com os seus vivos apitos, metálicos.
Mas a bordo
do steamer vai um alvoroço de dia de
saída, uma grande faina, o fremir contínuo e áspero dos guinchos de carga. A
mastreação polida, ereta, alta, finca os topes vitoriosos no Azul, entre as
enxárcias, os brandais e os estais retezos, onde, em noites tempestuosas, os
ventos largos do oceano desferem sinfonias agrestes, plangentes, como numa
harpa eólia gigante. As chaminés enormes, por onde respiram as fornalhas
ciclópicas do monstro, lançam fortemente ao céu límpido, por entre as cruzes
finas das vergas, grossos penachos de fumo. E, à ré, no tombadilho baldeado,
asseado, fresco, pautado de negro pela longa costura das tábuas, sob a lona
protetora dos toldos brancos, por entre passageiros de vigorosa estatura,
hercúleos, de boné sobre os olhos — a
cabeça loura e sonhadora de uma estranha Inglesa, talvez alguma lady aventureira e nervosa, doentia e
romanesca, passeando uma paixão desventurosa pelos mares, de terra em terra.
Debruçada da tolda, em ricas vestes de veludo negro, um resplendor de sol nos
cabelos, o belo rosto rosado, de uma olímpica contornação à Stuart, apoiado
sobre as mãos alvíssimas, mãos augustas, mãos artísticas, e de longos dedos
finos, como para tangerem bandolins de ouro —
ela olha embevecida, numa estática contemplação, a alva frota de gaivotas,
flutuando popa a fora, nas vagas. Parece alheada de tudo, e nos seus olhos
azuis, que as espelhantes águas eteralmente refletem, brilha uma luz de
saudade, a dolorosa, infinita tristeza de um bem perdido — quem sabe? — no fundo glauco das ondas... À beira do cais,
sozinho, indiferente a tudo, num enlevo, numa fascinação mística de sonho,
contemplo incessantemente a loura e escultural cabeça da misteriosa viajante,
inclinada melancolicamente para as gaivotas aos balaústres do steamer.
Longas horas
assim, longas horas. Mas o vapor dá o primeiro sinal da partida.
Cai a tarde,
cor de ouro, para as bandas do oceano.
E logo as
poderosas rotações das hélices começam a abalar o steamer e as águas.
O meu olhar
ansioso não se despega, porém, um momento, do enorme transatlântico, em cuja
balaustrada branca, afastando-se pouco e pouco, a extraordinária criatura do
Norte, fixa ainda, enigmaticamente, a frota alva e graciosa das gaivotas
boiantes. E, daí a instantes, steamer
e ela, a estranha viajante loura, somem-se, como o sol, nos vagalhões
montanhosos do mar...
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