Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Este interessante episódio de uma das viagens
de D. Pedro II à Europa foi
narrado, tal qual aqui se acha, pelo ilustre almirante Joaquim Raimundo de
Lamare, visconde de Lamare, ao seu íntimo amigo, o preclaro escritor e
cientista Dr. Gama Rosa.
A tarde
descambava, fulva e resplendente ao vivo sol de verão, sobre as margens altas e
curvas do Mar Negro, destacando-se, numa angulosa barra recuada a oeste, a
ponta proeminente do Quersoneso, por detrás da qual se divisava ainda, esbatido
e quase sumido no horizonte, o recorte extenso e alvo do famoso baluarte de
Sebastopol.
Uma seca ventania de procela sublevava as águas — e o Livádia, o grande iate de guerra do
imperador da Rússia, cabriolava no cimo alto das ondas, não obstante a sua
poderosa marcha a vinte nós por hora.
No
tombadilho, onde se aglomerava, a numerosa comitiva imperial, rebrilhando na
profusão dos dourados das fardas e dos capacetes marciais, só logravam
manter-se de pé os veteranos do mar, em meio dos quais, gigantesco e de pernas
abertas, à maneira dos marujos em alto mar, equilibrava-se contra os grandes
balanços o tzar Alexandre III.
Era um verdadeiro colosso esse homem robustíssimo, espadaúdo, membrudo,
de amplo e possante tórax e volumosa cabeça, cujo rosto tinha uma elevada e
serena majestade, longas barbas bondadosas e esse expressivo olhar azul,
nostálgico, dos Romanoff. Achava-se na estação média da vida, com uma saúde
viva e plena, representando um perfeito e raro organismo e lembrando, pelo
conjunto do seu todo musculoso e potente, um esplêndido gladiador dos antigos
tempos da Grécia ou de Roma.
À sua direita um velho, adamastórico como ele e de longas barbas
brancas como o Tempo, firmava-se aos balaústres metálicos das amuradas,
meneando de momento a momento e desordenadamente o largo tronco às caturradas
bruscas do iate na vaga, mas sem interromper a conversação em que vinha com o
forte monarca europeu nesse tom de voz franzino, delgado e penetrante, que
tanto o caracterizava. Era D. Pedro II,
Imperador do Brasil.
Completava o grupo destacante e seleto, além dos grandes
dignitários da corte da Rússia, uma outra figura de porte gigante, um velho
magro, porém musculoso, de alentada cabeça e fisionomia a traços fidalgos,
austeros, tendo a barba em colar, tradicional nos embarcadiços britânicos e
lusitanos. Era o almirante de Lamare.
O vento de leste, sem chuva e com céu azul e límpido como sucede
às vezes no Mar Negro, continuava rijo, pela proa, aumentando, com o desmaiar
vesperal no dia, os escarcéus explosivos das ondas. O Livádia jogava formidavelmente, tendo-se passado cabos de vaivém de
vante à ré para a marinhagem manobrar no convés. O capitão de fragata Macaroff,
chefe da casa militar de Alexandre III e
já então afamado como um dos mais notáveis marinheiros de guerra russos, fora
para o passadiço dirigir em pessoa a navegação com a sua admirável e
inexcedível perícia. Na coberta, à vasta bateria corrida a todo o comprimento
da galeota, a artilharia grossa estava jungida às amuradas com travessões e
“peitos de morte”. Ao jardim da popa, todo em balaústres de metal reluzente,
tal qual as malaguetas, varões do toldo e gaiuta, erguia-se o pau-de-bandeira
onde se achavam conjuntamente arvorados os estandartes brasileiro e russo — um,
ostentando o seu campo verde, com losango amarelo ao centro, a destacar as
armas do grande império sul-americano, descoberto e constituído pelos arrojados
e gloriosos Portugueses do ano de 1500; o outro, branco como o gelo da Sibéria,
com faixas azuis cruzadas de ângulo a ângulo, a apregoar o predomínio e força
de uma das maiores nações ocidentais, fundada e unificada por Miguel Romanoff, insigne guerreiro e rei
de cossacos...
Mas os balanços de roulis
e tangage mantinham-se terríveis. De
instante a instante, os vagalhões que bracejavam ao largo vinham esbarrar e
desfazer-se em explosões, aguaceiros e torvelinhos de espuma às bochechas, às
amuradas, ao tombadilho, balouçante do Livádia.
O estado-maior russo que acompanhava o Tzar — uma constelação de
ricos uniformes em bordaduras de ouro — composto de generais e almirantes de
capacetes e chapéus-armados a grandes plumas, não se perturbava jamais,
recebendo galhardamente, a pé firme e sem procurar abrigo ou refúgio, as úmidas
e contínuas agressões do Oceano em fúria.
De repente D. PEDRO II emudecera, com os olhos tristemente
pousados na crista espumosa das vagas. Nesse instante Alexandre III, estendendo os longos braços musculosos para os
escarcéus do largo, disse em francês ao visconde de Lamare:
— Almirante, o mar em todo o Brasil, segundo consta geralmente, é
sempre calmo e bonançoso; as tempestades são ali muito raras, e isso faz desse
grande império da América do Sul um incomparável país de placidez e doçura...
Que pensais vós deste seco vento de tormenta e destas ondas revoltas que nos
cercam?... Entretanto, como sabeis, estamos numa das melhores monções do Mar
Negro...
O almirante de Lamare voltou-se respeitosamente para Alexandre III e respondeu também em
francês:
— Sim, Majestade. O Brasil é um país de placidez e doçura nas suas
costas do norte, mas nas do sul, particularmente nas províncias de Santa
Catarina e do Rio Grande, o mar está sempre inquieto e, no inverno, varrem-no
procelas desfeitas, suestadas, lestadas irresistíveis e até mesmo ciclones que
são causa de constantes naufrágios, afundando navios ao largo ou arrojando-os
às suas cestas e cabos... Lá, como aqui, as borrascas são das mais horríveis do
globo... No entanto, ainda não foi possível organizar-se ou montar-se, em nosso
vasto litoral, um só dos grandes Postos de Salvatagem tão comuns em todas as
costas perigosas da Europa, e sobretudo na Inglaterra...
D. PEDRO II, percebendo que falavam do Brasil, despertara da vaga rêverie em que se achava absorto diante
das ondas revoltas do Mar Negro e, recordando-se da viagem que fizera ao sul do
Império em 1868, por ocasião da guerra do Paraguai, comprovou plenamente as
informações do almirante de Lamare, acrescentando que, efetivamente, essa parte
do litoral brasileiro só tinha como rivais em todo o mundo, no tocante a
ventanias e tormentas, as costas continentais ou insulares do Mar das Antilhas,
do Oceano Índico, do Mar do Norte e da Biscaia...
O Tzar acudiu, a sorrir:
— Alteza, pode ajuntar também a essas quatro famosas regiões
geográficas este meu pequeno Mar Negro...
E lembrou, eruditamente, que já dos mais remotos tempos o Mar
Negro era universalmente assinalado pelas suas tremendas borrascas. Assim, os
Gregos haviam-no chamado mui caracteristicamente de Axenos, inóspito...
Houve uma pausa na conversação. Agora parecia sentir-se mais
nitidamente o ranger geral do navio, a zoeira da mastreação dançando ao vento e
o esfrolar atroador das vagas embatendo no casco.
Anoitecia. Já três faróis ardiam a pleno esplendor no Livádia — um, a meio mastro de proa, e
dois às enxárcias de bombordo e de estibordo, sendo um de luz vermelha, o outro
de clarão verde. E, ao mesmo tempo, a câmara e a tolda apareceram súbita e
profusamente iluminadas a grandes lâmpadas elétricas.
O iate, deixando a região do alto mar, aproava então para a costa,
em demanda do porto, a toda a possança das suas máquinas da força de dez mil
cavalos e a toda a velocidade das suas vinte milhas por hora.
A travessia que vinha de fazer no Mar Negro, longa de duzentos e
cinquenta quilômetros mais ou menos, desde Sebastopol à bela cidade da Livádia,
tocava agora ao fim. O imperador do Brasil regressava da visita que
empreendera, a convite do Tzar, à célebre praça de guerra da Crimeia.
Ambos os monarcas e suas comitivas tinham partido para ali na
véspera à noite e, durante todo aquele dia até à hora de deixar Sebastopol, D. Pedro II, na sua constante e
insaciável curiosidade, percorrera miudamente, com o soberano amigo, as invictas
baterias que, em mais de meio ano de cerco, sob as ordens do príncipe de
Gortschakoff, comandante em chefe do exército russo e sob a direção particular
do insigne general Todtleben, resistira admiravelmente às extraordinárias
forças de terra e mar da França e da Inglaterra. Assim estivera ele no local
onde existira a famosa torre de Malakoff — chave da medonha cidadela — por onde
começara a tomada da até então inexpugnável praça forte, bem como nos sítios
das terríveis baterias casamatadas de Alexandre, de Paulo, de Constantino e de
Nicolau. Conhecera, enfim, toda a Sebastopol que, agora reconstruída mas sem as
proporções e disposições passadas, mal relembrava o seu formidável poder bélico
de outrora...
O iate, não obstante a escuridão e a névoa que sobreviera com a
noite, singrava, ao momento, mais serenamente e já desafogado das ondas grossas
do largo.
Em pouco, o farol e as outras luzes menores do Castelo Imperial —
uma das residências de verão dos soberanos russos — fulguravam astralmente à
proa, meio veladas na bruma. E a galeota, como um leviatã, entrou ruidosamente
na ampla doca de cantaria e ferro do palácio.
Alexandre III e seu
hóspede, seguidos dos respectivos séquitos, saltaram então, por entre densas
filas de soldados da Guarda Imperial formada; e, ao triunfante estrugir dos
hinos russo e brasileiro, penetraram nos altos pórticos de mármore da suntuosa
habitação, sumindo-se nas amplas e ricas salas douradas, tapetadas e iluminadas
feericamente...
Ao jantar — um ótimo banquete imperial russo — os dois Soberanos,
como as suas luzidas comitivas, falaram ainda da viagem e, generalizadamente,
das viagens de Mar, cheias de perigo, sem dúvida, mas em geral de surpresas e
sensações inefáveis...
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