Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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E o "turco", desde
muito cedo, andava pelos subúrbios a mercar aqueles coloridos registros de
santos. Havia um são João Batista, com a sua tanga, o seu bordão de pastor e o
seu inocente carneiro que olhava doce tudo o que via fora da estampa; havia um
Cristo com o coração muito rubro à mostra, coroado de espinhos, e os olhos
revirados para o Céu que naquele dia estava lindo, de um profundo azul-cobalto;
havia uma Ceia em que Jesus presidia, mansueto e resignado, apesar de se saber
traído, e havia muitos outros santos e santas que o "turco” levava, alguns
enrolados, mas outros diante do seu peito arquejante das suas caminhadas de
humilde bufarinheiro, daquelas modestas paragens da cidade.
E ele ia:
— Cumpra, sinhora! Muita bonita!
Das casas, às vezes, lá saía uma
mulher ou outra, de cores as mais variadas, e indagava com desprezo:
— Olá! O que é que você leva aí?
Miguel José parava, aproximava-se
da porteira e respondia:
— Santa, senhora! Muita bonita!
— Que santos tem?
— Muitas, senhora. Tuda bonita.
Desentolava os registros e a
rapariga começava a examinar. De repente, à vista de uma daquelas oleogravuras,
ela gritava:
— Leocádia! Leocádia!
Lá do interior da casa
respondiam:
— Que é?
A outra acudia:
— Vem cá. Vem ver uma coisa.
Vinha uma outra rapariga e a que
estava, recomendava, mostrando um dos quadros do "turco":
— Vê só como é lindo este Menino
Jesus.
A outra examinava e concordava. O
"turco" se animava e perguntava:
— Não quer compra ele?
Uma delas ia ao encontro da
pergunta do bufarinheiro:
— Quanto é?
— Barata, sinhora.
— Quanto?
— Dois mil-réis.
— Chi, meu Deus! É caro, muito
mesmo.
O pobre ambulante não fazia
negócio algum; e continuava com a sua carga sagrada a palmilhar aquelas ruas
que são mais propriamente veredas.
Ainda se houvesse árvores, sombra
que amaciasse aquela manhã quente, embora linda e cristalina, o seu ofício
seria suportável; mas não as havia. Tudo era descampado e as ruas eram batidas
pelo sol em chapa. Lá ia ele. As calças ficavam-lhe pelos tornozelos; o chapéu
era de feltro, mas não se sabia se era preto, azul, cinzento.
Tinha todas as cores próprias a
chapéus dessa espécie. Em um pé calçava uma botina amarela; em outro, um sapato
preto.
— Cumpra, sinhor! Coisa bonita de
Deus! Cumpra.
Foi dizendo isto a um petulante
crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande,
gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela; foi dizendo
isto a ele que lhe ia acontecendo uma grande desgraça naquela manhã. O negro,
ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao "turco" e indagou com um ar
autoritário:
— Que é que você está dizendo?
O humilde armênio pensou logo que
tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, na terra em
que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armemos.
Com essa convicção, Miguel José
respondeu cheio de respeito e acatamento:
— Dizia, senhor: cumpra santo
muita bonita.
O negro perfilou-se todo, tomou
uns ares judiciais ou policiais, chegou o chapéu de palha para a testa e disse:
— Você parece que não é
civilizado.
— Cuma, senhor?
— Sim, você é herege, inimigo de
Nosso Senhor.
— Não, senhor.
O preto desarmou-se um pouco de
seus ares judiciais ou policiais, tomou-se mais suave, quis fazer de penetrante
e sagaz. Perguntou:
— Você come carne de porco?
E Miguel José olhou as montanhas
pedregosas que ele via lá, longe, esbatidas no azul profundo da manhã,
ressaltando quase inteiramente na ambiência translúcida do dia, e lembrou-se da
sua aldeia armênia, das suas cabras, das suas ovelhas, dos seus porcos.
A sua fisionomia dura contraiu-se
um pouco e os seus olhos de carneiro quiseram chorar de recordação, de
sofrimento, de mágoa. Ele se encheu todo de uma pesada tristeza; mas pôde
responder:
— Sim, senhora, eu coma.
— Então você é cristão? insistiu
o preto.
— Sim, senhor; diga a senhor sou
cristão.
— Admira.
— Por quê, senhor?
— Porque você diz
"vender" "comprar" santos.
— Cuma se diz então?
— Troca-se. Aprenda — está
ouvindo! É falta de respeito, é sacrilégio dizer comprar ou vender santos.
Aprendeu?
— Sim, senhor. Obrigada, senhor.
E o crioulo se foi, deixando o
pobre armênio arrasado por mais aquele déspota que passava sobre a sua pobre
raça; mas mesmo assim, continuou na sua mercancia.
Lá se foi ele por aquelas ruas de
tão caprichoso nivelamento que permite as carroças que por lá se arriscam
andarem no ar com burros e tudo. Lá ia ele:
— Cumpra, senhor! Muita bonita.
Subia, descia ladeiras; parava
nas portas; mas não fazia negócio algum. Num pequeno campo, encontrou uma
porção de crianças a empinar papagaios. Parou um pouco para ver aquele
divertimento interessante que as crianças da sua terra não conheciam. Veio um
pequenote:
— Ó Zé! O que é que você leva aí?
— Santo, menina. Pede mamãe
compra uma.
— Ora, esta! Lá em casa tem tanto
santo — para que mais um? Vende ali, aos "bíblias".
Miguel José percebeu bem a
malícia da criança, pois de uma feita caíra na tolice de oferecer um registro a
essa espécie de religiosos e se vira atrapalhado. Não que o tivessem
maltratado, mas um deles, baixinho, com um pince-nez muito puro de vidros
cristalinos, o levara para o interior da casa, lera-lhe uma porção de coisas de
um livro e depois quisera que ele se ajoelhasse e abandonasse os registros.
Noutra não cairia ele...
Continuou o caminho, mas estava
cansado. Ansiava por uma sombra, onde repousasse um pouco. Havia muitas
árvores, mas todas no interior das casas, nas chácaras, nos quintais ou nos
jardins. Uma assim pública, na margem da rua, em terreno abandonado que o
abrigasse aí, por uns dez minutos, ele não encontrava.
E seria tão bom descansar assim
fazendo o seu minguado almoço, para continuar até à tarde a sua faina, vendo se
ganhava pelo menos uns dez ou cinco tostões de comissão com a venda daquelas
coisas sagradas.
E continuou o seu caminho, tendo
sempre exposta diante do peito a imagem de Cristo, coroado de espinhos, a
mostrar o coração muito rubro, com os seus misericordiosos olhos a procurar o
Céu, naquela manhã muito linda, de um profundo azul-cobalto...
Afinal, achou uma mangueira,
maltratada, cheia de ervas parasitas, a crescer na borda do cominho, num
terreno desocupado. Sentou-se, tirou da algibeira um naco de pão dormido, uma
cebola e pôs-se a comer, olhando as montanhas pedroucentas que assomavam ao
longe e lhe faziam lembrar a terra natal. Ele não tinha nenhum nítido pensamento
sobre a vida, a natureza e a sociedade...
Não tardou que se lhe viesse
juntar um companheiro. Era também um"volante" como ele; mas a sua
mercancia era outra, menos espiritual. Vendia sardinhas, de que trazia um cesto
cheio. Era um português, cheio de saúde, de força, de audácia. Vinha suado,
mais do que o armênio; entretanto, não dava mostras de ter ressentimentos nem
do sol nem da dureza do seu ofício. O armênio olhou-o com inveja e pensou de si
para si:
— Como é que esse homem pode ser
alegre, pode ter esperanças?
O português, sem auxílio, arriou
o grande cesto na sombra e sentou-se também cheio de confiança e desembaraço.
Foi logo dizendo:
— Bons dias, patrício.
Miguel José fez uma voz sumida:
— Bom dia, senhor.
O português, sem mais aquela,
observou:
— Qual senhora! Qual nada! Cá
entre nós, é você pra baixo. Isto de senhora é lá pros doutores, não é para nós
que andamos aqui aos tombos.
E emendou comunicativo:
— Que diabo — ó patrício! — que
tu comes pra aí?
O "turco" disse-lhe e o
Manuel da Silva considerou:
— Lá na minha terra, há quem
goste disto; mas eu nunca me acostumei. Cebola pra mim, só na comida. Numa
bacalhoada, ah!...
Miguel José continuava a mastigar
sua cebola com pão, enquanto Manuel da Silva contava a féria. Contada que ela
foi, disse bem alto:
— Pela hora que é, as coisas não
vão mal. Até o meio-dia vendo tudo...
Guardou o dinheiro na bolsa que
tinha a tiracolo e perguntou subitamente ao companheiro de acaso:
— Você já vendeu muito hoje,
patrício?
— Nada, senhor.
— Está você a dar com o tal de
senhora! Pergunto se você já vendeu alguma coisa hoje, homem!
— Nada.
— O que é que você vende?
— Santo, senhor.
— Santo?
— Sim; santo.
— Deixa ver isto, como é? fez o
português curioso.
O armênio passou-lhe os registros
coloridos e o vendedor de sardinhas pôs-se a olhá-los com espanto e
deslumbramento artístico de aldeão simplório. Achou tudo aquilo bonito: aquele
Jesus, mostrando o coração; são João, com o carneirinho; o Menino Jesus — tudo
muito lindo aos seus olhos maravilhados de camponês cândido e enfeitiçado pelas
coisas do senhora vigário.
Refletiu de si para si:
"Coisas tão bonitas, se não as vendeu, é porque este “turco” é mesmo
burro. Comigo, já as tinha vendido, ganhado dinheiro e ficado com algumas, pra
pôr lá no quarto".
Veio-lhe uma ideia.
— Patrício! Você quer fazer um
negócio?
Os olhos de carneiro do armênio
luziram mais forte e com mais esperança.
— Qual é? perguntou ele.
— Tenho ali na cesta cerca de
vinte mil-réis de sardinhas, vendidas a duas por um vintém. Se você vendê-las a
vinte, ganha o dobro. Quer você trocar estes santos pelo cesto de sardinhas?
Miguel José rapidamente pesou os
prós e contras da operação comercial. Sabia bem, por experiência própria, que a
população, até as crianças, se mostrava refratária à mercadoria espiritual de
que ele era portador; e, pelo que lhe vira ainda agora nas mãos, a do seu
companheiro não se portava da mesma forma.
Em se tratando de sardinhas, as
coisas não corriam da mesma maneira como no tocante a santos. Considerou bem e
logo respondeu:
— Tá feita, senhor.
Os dois se despediram e trocaram
de carga. Miguel José voltou a passar pelos mesmos lugares em que oferecera os
registros, sem nenhum resultado; mas, quando apregoou as sardinhas, não teve
mãos a medir. Vendeu-as a vintém, então fez escambos de compensação e, de tal
forma correram-lhe as coisas que, dentro de três horas, tinha vendido tudo,
podia pagar os registros à loja e lucrava cinco mil e tanto.
Manuel da Silva, o alegre
português das sardinhas, saiu muito ancho com os seus registros; mas não foi
logo vendê-los.
A frugalidade do
"turco" tinha-lhe dado uma fome extraordinária. Procurou uma casa de
pasto e comeu a fartar, acompanhado de um bom martelo de verdasco.
Bem alimentado, satisfeito,
dispôs-se a "trocar" o são João Batista, Menino Jesus, correndo a sua
freguesia de peixes e crustáceos.
Batia as portas:
— Mamãe, dizia uma criança, está
aí o seu Manuel.
A mãe perguntava lá de dentro:
— Ele traz camarão?
— Não, mamãe; quer vender santos.
— Para que deu agora, seu Manuel!
Ora, vejam só! Vender santos. Diga a ele que não quero.
Dessa e de outra maneira, ele foi
percorrendo em vão sua freguesia das sardinhas, sem mercar uma única estampa
religiosa.
A sua alegria matinal se ia e
todo o seu desgosto se voltava terrível contra ele mesmo. Não fora o
"turco" que o embrulhara; fora ele mesmo que propusera aquele
negócio. Era castigo. Ia tão bem com as sardinhas, para que fizera aquela
barganha?
Andou até quase a noitinha e nada
vendeu. Ao recolher-se, ainda quis ver as oleogravuras que o haviam
deslumbrado.
Mirou uma, mirou outra e, olhando-as
firmemente, refletiu:
— Se não fosse por faltar o
respeito devido a Nosso Senhora Jesus Cristo, que aí está, eu havia de dizer
que tudo isso são coisas do diabo que aquele “turco” me impingiu. Nunca mais!
Tarrenego!
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