Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Havia já dois meses que a revolta da Armada contra o governo do marechal Floriano ia acesa e terrível, permanecendo ainda em estranha abstenção e inexplicável neutralidade um dos seus principais elementos de ação na capital da República — o possante e famoso forte de Villegagnon, tênue e quase desvanecida lembrança histórica da ilusória França Antártica de outrora e do grandioso sonho do célebre conde de mar huguenote Gaspar de Coligny e do seu lugar-tenente, o arrojado aventureiro, cavaleiro de Malta e vice-almirante da Bretanha, Nicolau Durand de Villagagnon, de quem o pitoresco ilhéu e grande praça de guerra perpetuam característica e geograficamente o nome e a memória.
Como os insurrectos dominavam inteiramente as águas de Guanabara,
não se sabia verdadeiramente a causa de semelhante abstenção e neutralidade.
Corria, entretanto, que era o almirante Saldanha da Gama, então diretor da
Escola de Marinha e o mais prestigioso e querido dos generais da Armada que,
declarando-se neutro entre os dois contendores, assim mantinha o grande
baluarte naval, não obstante os ímpetos mal contidos dos oficiais e marinheiros
para se unirem aos seus bravos irmãos de armas.
Em terra, a inquieta alma popular, sempre cheia de entusiasmo e
ilusão, picada pela tarântula da Aventura, de há muito curiosamente esperava,
em expectativa ansiosa, qualquer solução ou desfecho para aquela singular
atitude do velho forte insular. Por isso, diariamente aumentava, como uma
enorme preamar de equinócio, a vasta aglomeração de povo, sobre colinas e
montes, ao longo da extensa curva das praias e cais da cidade, fora dos
principais pontos de desembarque e assalto guarnecidos fortemente pela guarda
nacional e contingentes do exército às ordens do Marechal.
Mas, na antemanhã daquele dia, um frêmito geral de emoção
alvoroçara as almas, com a notícia extraordinária, instantaneamente levada aos
quatro ventos, de que Villegagnon aderira finalmente à revolta, devendo
hastear, ao sol das 6, conforme as Ordenanças Navais, a bandeira branca da
pugna civil, ao lado do glorioso pavilhão auriverde.
Com efeito, ao despontar radiante e triunfal do sol, lá tremulava,
à fresca brisa do mar, como numa alegria de gala, no tope da verga do alto
mastro de guerra do forte, o nevado filelle
do pendão revolucionário, acenando ironicamente para a Terra e para o Mar,
como um velho símbolo querido de Concórdia e de Paz.
O marechal Floriano, apenas soubera da grande ocorrência, aliás há
muito esperada e que só lhe causara estranheza em não ter sobrevindo
conjuntamente ou logo após ao levante naval, o que perspicazmente lançava à
conta de rivalidade entre os almirantes Custódio e Saldanha, que disputavam
agora a primazia do prestígio e domínio em sua classe, e mais ainda à astúcia e
sagacidade do segundo, cuja atitude neutral feria fundo a disciplina militar
mas que esse chefe marítimo queria acobertar à sombra da ideia — em outro caso
muito justa e louvável — de evitar que os jovens e futuros educandos da armada
(aspirantes ou alunos navais) logo aos primeiros passos de sua carreira se
envolvessem em pronunciamento ou insurreições, buscando assim tirar todo o
partido da situação a fim de, no momento oportuno, jogar-se francamente à
revolta, pois que disfarçadamente desde muito o estava; o marechal Floriano
que, soldado experimentado e veterano de uma grande campanha onde ganhara
celebridade, não vacilava nunca em pôr em execução a medida que lhe parecesse
acertada para chegar a um fim, embora avaliasse perfeitamente o peso de mais
este embaraço na luta já de si grave, e até arriscada, em que se achava
envolvido, luta ramificada já a três Estados do sul e fundida então ao
Federalismo gaúcho que vinha de longe e não fora ainda suplantado pela
legalidade; o marechal Floriano imediatamente ordenou às grandes fortificações
da barra respondessem, com renhido fogo, ao forte revolucionário, apenas este
começasse a alvejá-los com os primeiros disparos de grande artilharia, conforme
as notícias que circulavam em terra, vindas da esquadra e das ilhas por ela
dominadas.
Assim, à tarde, a primeira a romper, com efeito, foi Villegagnon
com os seus quatro ou cinco possantes canhões de 400 da bateria da barra.
Então, as duas grandes fortalezas, solidamente assentes sobre os pórticos
graníticos de Guanabara e que lhe guardam ciosa e intransigentemente a entrada
contra qualquer assalto inimigo, Santa Cruz e São João, e a pequenina Lage, que
fica mais para dentro, já em águas da baía — entraram a vomitar-lhe
incessantemente balas rasas e metralhas. E o fogo cerrara, medonho, espalhando
o terror e a morte sobre o coração da Pátria...
Na sua estrutura ancestral, dificilmente defensável e totalmente
exposta às poderosas baterias de suas irmãs da barra, descasamatada e rasa, de
um poder ofensivo inferior ao daquelas, com muralhas que vinham das primeiras
épocas coloniais — a velha fortificação da Armada a todos enchia de entusiasmo,
empenhada, como estava, numa luta desigual e singular. Mas a sua oficialidade e
marinhagem, acesas numa bravura e fúria legítimas e patrióticas, a nada
atendiam ou olhavam, transformadas em verdadeiros gigantes de força e
temeridade...
As balas cruzavam, incessantemente, sobre a ilhota invicta e
lendária. E por toda a parte, em torno, emergiam da larga planura das águas,
num belo horrível emocionante, altos repuxos de espuma, lembrando de repente os
jatos colossais de monstruosos mamíferos marinhos triássicos, ou atuais, ou
essas geyzers escaldantes dos Oceanos
Polares.
A princípio, por circunstâncias casuais, decerto, e quem sabe
também pela falta de segurança nas pontarias, apesar dos numerosos e seguidos
disparos, os projéteis da legalidade quase não atingiam o alvo...
Mas uma lancha a vapor largou a toda a velocidade do Aquidabã para Villegagnon. De terra, do
Arsenal de Guerra, apenas a avistaram, começaram as descargas de fuzis e
metralhadoras do exército, como costumava suceder em tais circunstâncias, desde
o primeiro dia da ação, a fim de, senão impedir, pelo menos dificultar ou fazer
pagar caro a atracação ao forte insurreto.
Os marinheiros de vigia e ronda, ao depararem com a lancha e ao
sentirem os primeiros tiros do Arsenal sobre o porto e a ponte de embarque da
sua ilhota, que eles mantinham meio defendidos daquele lado por chapas de ferro
e um grande batelão de carvão encalhado para esse fim, correram imediatamente a
respostar os tiros de terra com as suas coropachecks,
metralhadoras, canhões-revólveres e de tiro rápido.
Um desses marinheiros, o João Leandro, caboclo de vinte anos,
robusto e de grande intrepidez, quando acorria com os outros à ponte, olhando
casualmente para o principal reduto do forte, notou que o branco e querido
pendão da revolta fora de súbito arrancado à verga onde tremulava. Deixou logo
os companheiros e, sem dizer palavra, galgou, de um fôlego, a escada que levava
até lá, a ver o que tinha sido, a fim de tudo comunicar ao bravo comandante
Sílvio Péllico Belchior, então com alguns oficiais à bateria dos grossos
canhões de 400, atirando continuamente contra as fortalezas da barra. E
procurava por toda a parte a bandeira que certamente não poderia ter caído no
mar, quando a encontrou num recanto das muralhas, com a adriça partida e
inteiramente desgornida da verga, obra sem dúvida de alguma bala certeira de
metralhadora ou fuzil vinda de terra. Jubiloso e sorrindo, enveredou para o
alto mastro, que galgou com a destreza e rapidez de um símio, e metendo pé ao
estribo, foi até ao lais da verga, regornindo a adriça e fazendo de novo
tremular ao vento a branca bandeira revolucionária. Depois voltou para o
cruzamento do mastro e, de pé, junto ao calcês, sobre a verga, quedou-se a
olhar serenamente as águas...
O bombardeio à grossa artilharia, entre a fortaleza insurgida e as
legais, prosseguia ainda atroadoramente. A lancha que largara do Aquidabã atracara já à Villegagnon,
graças a valorosa defesa que, no porto e na ponte, os marinheiros opunham
denodadamente, embora já com algumas perdas, ao fogo cada vez mais intenso do
Arsenal do Guerra.
E o João Leandro continuava a contemplar placidamente da altura,
como da mastreação de um navio, o panorama geral da baía...
De terra, das trincheiras de sacos de areia do Arsenal, desde que
o viram subir ao mastro para rearvorar a bandeira branca da revolta, tão
execranda e odiosa à legalidade quanto simpática e querida aos insurretos que
se tinham espontaneamente congregado em volta dela para a conquista da
liberdade e de um governo civil que representasse a vontade geral da Nação e
dignamente a servisse, — de terra alvejavam-no continuamente, com fúria e
truculência brutais.
Mas o audaz marinheiro, com o espírito arrebatado pelo esplendor
da tarde, docemente tocado de saudosas recordações da sua vida íntima e
inteiramente esquecido do perigo, em meio à luta fratricida, nem sequer se
voltava para o lado de onde as infernais balas de fuzil incessantemente
passavam, cercando-o de uma zoeira sinistra, como estranhos e invisíveis
vampiros que lhe respeitassem ainda, acaso, o invejável e sereno heroísmo, mas
que só espreitavam o momento propício para sugar-lhe a vida. Nem ele, absorvido
como estava, ouvia talvez aquela música fúnebre e maldita dos projéteis. E a
passear lentamente os olhos sobre o inefável conjunto da imensa marinha,
demorava-os às vezes, nostalgicamente, sobre cada detalhe...
O sol fulvo da tarde, caindo em desmaio opalino para os longes
nebulosos e vagos, barrava a vastidão do poente, na linha do Corcovado, da
Tijuca e da Gávea, de um escarlate festivo, manchado, aqui e ali, de esparsos
flocos de arminhos. Para o fundo de Guanabara onde, conforme os planos e a
distância, relevos verdes ou azuis de montanhas e ilhas bordavam o horizonte ou
certos pontos da planura líquida, os cascos e a cordoalha emaranhada dos navios
de guerra insurretos silhuetavam-se vivamente no Azul, como nas grandes telas
modernas do Almirantado Inglês, em que o gênio feliz de De Martini reproduz, à
perfeição, os vastos cenários marítimos. Eram o Aquidabã, a Trajano, o Tamandaré, a Guanabara, o Javari e outros, já mudos e sem os jorros de fumo da
sua artilharia, portando pelas amarras e como adormecidos, agora, às últimas
claridades do ocaso. Depois era a infinda multidão dos navios das esquadras
estrangeiras e dos barcos mercantes, a vapor ou à vela, nacionais e
internacionais, confundindo-se numa água-forte monstruosa, coberta já de um
largo manto brumoso. Toda essa vasta e admirável aglomeração de cascos e
mastros trazia à lembrança essa descrição monumental do porto de Tiro,
cheirando a maresia e a cedro do Líbano, que nos deixou Fenelon nas páginas
encantadoras do pequeno livro em que nos conta as aventuras marítimas do meigo
filho de Ulisses. Do lado da barra, as fortalezas, envoltas em fumo alvadio,
não cessavam de troar, num ritmo espaçado e tremendo, desolando com os seus
grossos disparos a placidez etereal das ave-marias...
O valente marinheiro, embora as infernais balas de fuzil
continuassem a zumbir pressagamente em torno dele, permanecia de pé sobre a
verga, agarrado ao mastro, embevecido ainda com o maravilhoso espetáculo do
crepúsculo e das águas, tão largamente sugestivo. Cismava agora, talvez, no seu
Estado longínquo, no arraial em que nascera, branquejando alegremente ao sol,
entre cômoros e sebes verdes, junto à vaga azul do Mar. E que de imagens
risonhas e felizes lhe não bailavam ali, ao momento, na visionada retina! Eram
decerto as dessas criaturas amadas — Mãe, Irmãs e Noiva — cujos seres, quase
ideais para nós, se acham presos indelevelmente, por íntimos filões
indestrutíveis de afeto, ao nosso coração e ao nosso espírito, e que, embora
ausentes e afastados, nos afagam e osculam sempre, carinhosamente, através de
todo o espaço e de todo o tempo, iluminando o dia do nosso destino, e a noite
da nossa saudade, como incomparáveis e benditos astros...
O João Leandro enlevava-se nos encantos da Natureza e nas
evocações luminosas da vida afetiva, totalmente deslembrado das agruras e
perigos daquela luta terrível, quando, de repente, um sopro de morte passou,
tocou-o, paralisou-lhe os sentidos...
Fora uma das balas de fuzil, vindas de terra, que lhe varara o
peito.
E seu corpo agonizante tentava ainda agarrar-se aos cabos e ao
mastro, num último impulso para a Vida; mas as mãos e os braços
afrouxavam-se-lhe já frios. O sangue escorria-lhe, em pastas, pela boca e pela
ferida. E ele rolou, por fim, ao chão, como uma massa hirta...
Cerrara a noite. Os planos afastados da paisagem sumiam-se, numa
vasta amontoação de cinza. O céu, no alto, enlutava-se em sombra. Todo o mar
refulgente, como um metal que se oxida, ia perdendo o seu brilho. E pelo ar,
enoitado ao desaparecimento da luz fugindo para o Azul de outros países,
viam-se os relâmpagos sangrentos de um ou outro disparo dos fortes, troando
agora dantescamente na treva, que aumentava e envolvia tudo...
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