A alforreca
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Fala a lenda japonesa.
Antigamente — e quem sabe se ainda hoje! — no seio do oceano era o reino
faustuoso dos dragões. Por longos anos, o senhor deste reino, o dragão real,
viveu celibatário, numa existência descuidosa; e sabem só os deuses, e não nós,
quantas noites de dissipação, em companhia de tartarugas e lagostas ligeiras de
costumes, que lhe cantavam trovas ao som do shamicen
e lhe iam servindo saké em ricas
taças, quantas noites ele passou em travessas intimidades amorosas!...
Verdores, que passam breve. Um belo dia, resolveu casar-se, o bom
soberano. A noiva escolhida foi uma jovem dragoazita, dezesseis anos apenas,
adorável, digna pelos seus mil encantos de ser a consorte feliz de tal senhor.
Esplêndidas foram as bodas por essa ocasião, segundo consta: sem já falar na corte
íntima, toda a bicharia aquática, peixes, mariscos, moluscos, todos vieram
processionalmente, em cardumes, em belos kimonos
de sedas encarnadas, oferecer seus respeitos e presentes; e foram, durante
longos dias, estupendos rega-bofes, em danças, em músicas, em banquetes...
Mas nem os dragões escapam às duras provações da existência! Ainda bem
um mês se não passara, quando a augusta soberana caiu doente; e tais cuidados
inspirou desde logo o seu estado, que era uma lástima observar as trombas
compungidas dos fidalgos, comentando baixinho, em lamentações do seu ofício, o
triste caso. Reuniram-se os doutores em conferência; falaram muito, discutiram
muito, sem chegarem a acordo, como sempre sucede; consultaram-se abalizados
alfarrábios de terapêutica; as barbatanas incansáveis rabiscaram um milhão de
receitas milagrosas, e todas as tisanas se serviram. Baldado intento; a
soberana extinguia-se; e afinal os focinhos dos sábios, num trejeito de piedade
e desengano, tiveram de ser francos, de declarar que a ciência — já naquela
época se enchia a boca com a ciência
— que a ciência nada mais podia fazer, e que um angustioso desfecho era de
esperar-se.
Do seu leito de enferma, de entre os futon,
as fofas colchas de cetim, agita as trêmulas patinhas a rainha; chama junto de
si o esposo, e diz-lhe estas palavras ao ouvido: — “Uma só coisa me salvará:
arranquem o fígado a um macaco vivo, e consintam que o devore; recuperarei a
saúde...” — O rei não pode reprimir um gesto de surpresa, quase de enfado, e
todo se lhe eriçou o bigode façanhudo: — “Um fígado de macaco! estás louca,
minha querida!...” — Ela prontamente retrucou: — “Louca, porquê? Vossa
majestade esquece porventura, que nós, o grande povo dos dragões, no mar
vivemos sempre; enquanto que os macacos, muito longe daqui, vivem na terra, nos
bosques, entre as árvores, nutrindo-se de frutos... No fígado do mono alguma
coisa virá que participe desse mundo, tão diverso, tão outro; e essa partícula
estranha, senhor, me salvaria!...” — E a rainha, a quem as lágrimas acodem,
prossegue num tom repreensivo e lastimoso: — “Uma insignificância, um nada,
pedi, e esse nada vossa majestade me recusa. Julgava merecer-lhe mais afetos.
Dispa-me destas pompas de soberana, não as quero; dê a coroa a outra esposa,
mais digna, mais formosa; consinta que volva ao ninho carinhoso de meus
pais...” — A voz sufoca-se em soluços, não pode mais proferir uma só queixa...
O rei dos dragões não queria passar, entre damas, por um dragão cruel;
por demais conhecia ele os caprichos pueris do sexo frágil, mas perdoava-os
complacentemente, por sistema; e sobretudo adorava a esposa, cujas lágrimas
desejaria poupar a todo o transe. Satisfaça-se pois o capricho da rainha.
Mandou chamar a sua escrava mais fiel e dedicada, a alforreca, e disse-lhe o
seguinte: — “Vou dar-te uma espinhosa tarefa, minha velha, mas confio na tua
dedicação nunca mentida; preciso que empreendas uma longa viagem, que nades até
junto da terra, e ali convenças um macaco a vir contigo a estes meus reinos;
fala-lhe, para o resolveres, da mágica beleza destes sítios, tão diferentes dos
seus, e da gentileza destes meus súbditos felizes; mas o que eu realmente quero
neste caso, é que se arranque o fígado das entranhas de tal mono, e se sirva
como medicamento à tua jovem ama, que, como decerto sabes, se acha em perigo de
vida, a desditosa.”
Lá vai, oceano fora, vento em popa, a alforreca, emissária obediente e
ufanosa do encargo. Por aqueles tempos, a alforreca, como qualquer bicho das
águas, era um animal gracioso, de contornos esbeltos, com cabecinha, com
olhinhos, com mãozinhas, e com a competente cauda titilante; e ficava-lhe tão
bem o fato de marujo!... Lá vai, oceano fora, olhar sereno e cogitador,
rompendo a vigorosas braçadas a onda fria. Não tarda muito a abeirar-se do país
onde vivem os macacos; por felicidade, um além está, um lindo mono, saltando de
ramo em ramo, dependurando-se das árvores que enraízam nos penedos e se
debruçam sobre o mar. — “Bons dias, senhor macaco. Eu venho aqui expressamente
para falar-lhe dum país longínquo, muito mais belo do que o seu; é ele situado
além das ondas e conhecido pelo reino dos dragões; ali, não há estações, é
eterna a amenidade do clima; ali, nas copas das árvores repolhudas,
constantemente amanhecem aveludados frutos saborosos, é colhê-los, não há outra
tarefa; para cúmulo do conforto, essas criaturas malfazejas, homens chamados,
não pisam tais paragens. Se lhe agrada vir comigo, eu serei o seu guia; não tem
mais que fazer do que saltar desse tronco para cima do meu lombo...” O macaco
achou gracioso isso de ir ver novos países. Vá lá mais esta extravagância à
conta da boêmia simiesca. — “Ao largo,
amiga!” — E lá foram os dois; porém, a meia travessia, pensou tardiamente o
mono na temeridade do seu feito, expondo-se assim ao arbítrio dum estrangeiro,
e abandonando a sua pátria. Decidiu-se enfim a perguntar: — “Que pensa você que
vão fazer de mim na sua terra?” — A alforreca deveria agora ser discreta,
encapotar as respostas em evasivas; mas ouçam lá o que ela deu em troco: — “Eu
lhe digo: meu amo, rei dos dragões, ordena ao senhor macaco que arranque o
próprio fígado, o qual vai ser servido à nossa soberana, hoje enferma, e
salvá-la da morte.” — Então o mono, guardando para si os comentários que o caso
sugeria, disse cortesmente, que era para ele uma alta honra e um inesperado
prazer, o assim tornar-se útil a sua majestade; acrescentou, porém, que agora
se lembrava de ter deixado o fígado dependurado num tronco de árvore, aquele
mesmo castanheiro donde saltara para as costas da alforreca. Continuou
discursando em linguagem fluente, de orador emérito, descendo a explanações
minuciosas; e explicou como o fígado era uma coisa bastante pesada, embaraçosa,
um quase alforje de peregrino, um empecilho que ele costumava pôr de parte,
durante o dia, para se entregar mais à vontade aos seus exercícios de acrobata;
hábitos de família, já seu avô fazia o mesmo; e concluiu, que o melhor que
tinham a fazer neste momento, era voltarem para trás, e na árvore encontrariam
o fígado em questão.
Não pôs objeções a nadadora. Voltando à terra, o macaco saltou ao
castanheiro com uma ligeireza nunca vista, nem mesmo entre macacos,
acompanhando o pulo duma alegre careta e dum gesto que traduzia o júbilo do
bestunto, coisa que passou estranha à alforreca. Procurou entre as folhas o seu
fígado. Não o encontrou. Explicou então do alto, à alforreca, que provavelmente
algum companheiro o levara para longe, o que o obrigava a mais demoradas
pesquisas pelo bosque; no entretanto que fosse ela contar o caso ao seu senhor,
que devia estar ansioso por vê-la chegar antes da noite.
Assim procedeu o bicho.
El-rei, que a esperava, e que a escutou, enraivecido por tamanha ingenuidade
— para não lhe chamar coisa mais feia, — mandou logo vir da maladia um bando
dos seus mais soberbos samurais, e
ordenou-lhes que malhassem no bicho à pancada, até cansarem. O castigo foi
cumprido, e com esse vigor de braços de vilões, que miram aos aplausos do
monarca. É esta a razão porque a alforreca, hoje em dia, não tem pernas, nem
cabeça, nem cauda, nem barbatanas: tanta pancada levou, que ficou reduzida a
esta miséria, massa informe, um farrapo, um pedaço de gelatina, boiando
desprezivelmente à mercê do turbilhão das vagas.
Com respeito à soberana, reconsiderando no disparate do seu capricho,
concluiu que o melhor que tinha a fazer era erguer-se da cama e pôr-se boa; e
assim fez, com grande pasmo dos doutores.
A história da alforreca está contada, na sua simplicidade comovente. É
verídica esta história, como tudo que o povo relata de memória; creia nela quem
crê. Fica-se já sabendo entretanto, — e é isto dum proveitoso ensinamento, —
que os japoneses tão prodigamente propensos ao perdão para tantos pecadilhos de
alma e de costumes, castigam os patetas.
Diga-se francamente: esta desgraça da alforreca, no país do Sol
Nascente, era inevitável; e o caso presta-se a interessantes comentários, que
eu vou resumir em poucas linhas. Os japoneses — povo de artistas — são os
grandes amorosos da criação, da forma, da vida; ninguém como eles conhece os
segredos da ave, do inseto, do réptil, do peixe, dos moluscos, do verme, de
todos os seres da terra; a animalidade graciosa desses seres, estudada com
percepções especiais, que nos escapam, constitui o tema mil e mil vezes
variado, dos seus primores de arte. Mas esse monstro, essa disformidade, essa
alforreca que se apresenta como única exceção da lei geral da gentileza da
vida, e parece resumir em si o enfado inteiro dum dia de mau humor do
Omnipotente, devia ter deixado impressões tristes nos primeiros japoneses que a
avistaram; e foi preciso arranjar logo uma explicação condigna do fenômeno, e é
a que ficou descrita nestas linhas.
É ainda interessante recordar de passagem a aproximação, pela desdita,
da alforreca japonesa com a medusa mitológica da Grécia, não merecendo esta
melhor tratamento dos deuses olímpicos. Curiosa coincidência!
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