345
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela
de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque
decididamente não te sabes governar!
— Exageras, nhanhã!
— Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes
passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é
cega: cego és tu!
— Já vês que a culpa não é minha...
— Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
— Mas também não me desarranjei...
— Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição,
foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.
— Fizeste mal.
— Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
— Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que
estás enganada, nhanhã.
— Deveras?
— Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui
agradecê-la ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora
se incomodasse: o decreto estava lavrado."
— Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse,
efetivamente, lavrado? à última hora seriam capazes de substituí-lo por outro!
Pois se és tão caipora!
— Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive
uma grande felicidade na vida!
— Qual foi, não me dirás?
— A de ter casado contigo...
Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e
naquele dia as suas impertinências habituais não foram mais longe.
***
O pobre Reginaldo — assim se chamava o marido — habituara-se de
muito àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e
paciência.
Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se
deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua
pobreza, — não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o
mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em
ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos,
marido e mulher.
***
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para
recolher-se à casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas
imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir
um bilhete de loteria, — uma grande loteria de cem contos de réis, cuja
extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao
garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a ideia de que
aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la
pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes
feijões quotidianos.
***
Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa
despesa extraorçamentária, não teria a sua aprovação; mas que querem, — o pobre
rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência
quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
— Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso!...
Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!...
E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam
ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e
entregou-lho.
— Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de
cinquenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa!
Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três
algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o
garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora
oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.
— 345! Pois isto é lá número que se compre!
— Agora não há remédio.
— Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo
do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o
dinheiro.
— Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto
desfazia a compra!
— Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos,
quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!
— Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes
de loteria não se trocam...
— Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e
eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao
Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia
ficar satisfeita.
Não ficou:
— Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três
vezes... — Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345...
***
Pois, senhores, no dia seguinte o nº 38788 saiu branco,
e o nº 345 foi premiado com a sorte grande.
***
Imagine-se o desespero de nhanhã:
— Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
— Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a
rainha...
— Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a
vontade! Ter-me-ias roncado grosso!
— Ora essa!
— Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
— Olha que eu pego na palavra...
— Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...
— Absurdo aconselhado por ti...
— Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
— Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas
as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...
A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o
teto: "Cem contos de réis"! nhanhã deixou-se cair sentada numa
cadeira, e desatou a chorar.
***
Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto
dela, e disse-lhe com muito carinho:
— Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! não ralhes comigo...
— Que foi?
— Não troquei o bilhete!
Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com
os olhos muito abertos.
— Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a
fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!
— Compraste então o outro bilhete?
— Comprei...
— Nesse caso... estamos ricos?
— Temos cem contos.
— Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
— Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
— Não digas isso!
— Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a
sorte imediata...
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