Voluptuosas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No rés-do-chão de um palacete, coadas as luzes do sol por arrendados stores pálidos, Helena fazia sono à hora da sesta, quando Maria Angélica a surpreendeu adormecida.
A recém-vinda impregnou o ambiente de essência de íris, enquanto uma voluptuosidade enervante empurpurava a linda cabeça desmaiada de Helena...
Um beijo sobre os lábios da desacordada mulher, fê-la despertar com um frêmito de prazer...
— De onde vens tu, Angélica?
— De encomendar flores...
— Flores?!
— Não te recordas de que Sofia se casará amanhã, à noitinha?
— Sou uma esquecida.
— E ela é credora de nossas gentilezas...
— Das minhas, especialmente.
— Encomendei orquídeas e crisântemos.
— Que gosto! De minha parte vou mandar-lhe duas magnólias.
— Belas flores, realmente. Mas, a natureza esmerou-se no chiquismo das orquídeas. Uma catleia é um pedaço de lábios excitados por dois beijos.
— Não lhes acho graça.
— Ó exigente!
— Flores do mato. E já notaste que quase todas elas são lilases e roxas? ou que se enfeitam com estrias e matizes dessas duas cores melancólicas?
— Descobres coisas...
— Mas, não é?
— Realmente.
— E como vais presentear uma noiva com flores lilases?
— É a moda, é o chic, é o dernier-cri...
— Olha! Nas minhas bodas manda-me flores alvas, muito alvas, crisântemos rosa, cravos, magnólias... Compreendeste-me?
— Se não! Agora, coisa notável: eu te vejo com as faces pálidas e os olhos muito brilhantes...
— De verdade?
— Sim. Sonhavas?
— Nem me lembro! Parece-me que sim. E tu estás intensamente corada...
— Apanhei muito sol.
— Os teus olhos estão pisados e lânguidos...
— É da fadiga do caminho... Desde cedo na rua, exposta, Helena, ao calor que abrasa e ao sopro canicular que afeia os penteados...
— Já tinha reparado: os teus cabelos estão desmanchando-se...
— E eu os concertei no espelho de Ester.
— Andaste lá, hein? Já havia desconfiado... Quando te vejo amolentada, assim, tenho razões para me enciumar... É muito descuidada a Ester. Cuida mal das vestimentas das amigas. Olha o teu cinto, Angélica... Está mal posto, a fita está retorcida...
— Nem reparei...
— Disto não és culpada, por certo... Eu não te deixaria sair daqui tão mal-amanhada. É de causar vergonha.
— Foi a pressa, Helena.
— E no teu ombro a seda está nodoada...
— Nodoada?!...
— Sim! Veem-se duas curvas vincadas como os bordos de uma... Nem sei mesmo que diga... Parece-me que te morderam o ombro?!...
— Quem o poderia fazer?
— Ester.
— És ciumenta! Fica sabendo: foi no jardim quando eu encomendava as flores. Deve ter sido água das rosas, Helena, que aqui caiu... Estás satisfeita?
— Muito pouco. Quando muito, iludida, minha flor, mas não convencida...
— Tu me censuras, e eu que te surpreendo com um esquisito fogo no olhar úmido?... Terá sido algum sonho delicioso... A tua voz mesmo é arrastada como a de quem se fatigou num excesso de venturas...
— Que venturas posso ter?
— Em sonhos podemos ser venturosas como jamais seremos na vida real... Morfeu capricha em povoar-nos a mente com espetáculo espantosos. Há vezes em que, se eu pudesse, esganaria quem me desperta... E outras ocasiões, quando volto a mim sem provocação, sou pronta a espantar-me porque me acordei e não morri no meio do prazer sonhado...
— Há sonhos, efetivamente, que se não deveriam acabar... E não sentes calor, Maria Angélica?
— Algum.
— Neste caso...
— Que fazes?
— Dispo-me. Não me imitas?
— Pode ser. Passarei a tarde contigo...
— Despe-te, pois... Tira o casaco... Desafoga o colo desta gola assoberbante... Não tens jeito?... Chega, que te libertarei...
— Tira os alfinetes.
— Usas um bom pó de arroz, Angélica.
— Ui! Helena!
— Que foi assim, ardilosa?
— Espetaste-me as carnes...
— Também é uma ruma de alfinetões...
— É para segurar bem.
— Tens uma pelugem de arminho...
— Ai!... Assim não... não...
— Que tens, rapariga?
— Beijas-me, Helena, com uns lábios quentes e gulosos... Só me deste vontade de...
— Ui!... ui!... ui!... Fazes-me um frisson de arrepiar-me os pelos...
— É para vingar o teu beijo...
— Por que me olhas assim, Angélica?
— És de uma alvura surpreendente, minha amiga. De teu corpo rescende um perfume originalíssimo que me entontece...
— Aprendi a perfumar-me com as gregas. Li num livro que uma beldade se cobria de perfumes para agradar aos amantes. Eu o faço para atrair as amigas como tu... Uma grega banhava as pernas numa bacia de prata em que se confundiam os aromas do nardo de Tarsos e do metôpyon do Aigypte. Nas axilas atritava mento e sobre as pestanas e nas pálpebras manjerona de kôs. Ao depois, a escrava defumava-lhe os cabelos desenastrados com espirais de incenso, que combinava admiravelmente não só com a essência de rosas de phaseolis que lhe embalsamava a nuca e as faces, como também a baccharis que se lhe derramava sobre os rins. E, por fim, entre os seios, corria o célebre oenanthe das montanhas de Chipre... Sei perfumar-me, Maria Angélica...
— Bem se lhe pareciam as gregas, tuas mestras...
— Entre os meus seios, inda há pouco, deixei correr um fio lânguido do irresistível Royal-Begonia, e nas axilas pus algodões embebidos na essência de rosas... Nos meus cabelos derramei óleos de sândalo, para contrastar com as evolações das essências de jasmins que perfumam as minhas vestias...
— E na posse de tudo isto praticas uma má ação, Helena!
— Qual?
— Essa de referires tantos perfumes e não me dares nenhum a provar... És avarenta, como ninguém, e eu cobiçosa de gozar...
— Vai ao meu toucador e gasta do que quiseres...
— Teria graça!
— Por que assim?
— Gosto das flores nos vegetais, das essências nos corpos das mulheres. Quero experimentar com o olfato o odor único que se desprende das tuas carnes...
— Tens desejos masculinos, minha queridinha!
— E é o que me faz lamentar-me: junto de uma graça não ser um Adônis, junto de uma Helena não ser cupido... Se eu pudesse embriagar-me com os teus perfumes e desmaiar de prazer entre os teus prazeres, seria mais feliz do que Syrinx, louca de paixão, Byblis, única na insaciabilidade, ou Mnasidika, macia como um veludo... Helena, tu és uma perfeição...
— Mofadora!
— Mofar eu de ti?!...
— Não te abrasa o calor?...
— Sim... Intoleravelmente...
— Safa o colete... Assim... Que lindo corpo, Maria, e quantas seduções na tua plástica vista através da transparência das gazes... Bem dizem os homens, sábios no sensualismo pagão, que o nu de véus é mais provocante do que o nu sem disfarces... Há qualquer coisa de místico, de irreal, na mulher encoberta pela semifluidez de um tecido fino... Se eu te não conhecesse os segredos todos de tuas lindas curvas, te rasgaria agora, impiedosamente, o véu de tua nudez...
— Já sentiste, Helena, um prazer maior do que esse das carnes livres do arrocho de um colete ditatorial?
— Quantas vezes?!
— Tu brincas, mulher divertida...
— Provo-te com a citação: despirei o meu colete e não me sentirei mais provocada do que contemplando as tuas formas seminuas...
— És bárbara, Helena! Como encarceras um tão lindo quadril dentro dos opressivos liames de um colete... Ah! Como eu daria a vida por ser morena! O ventre alvo é uma desilusão, mas o trigueiro, como o teu, é um incentivo. Parece o tegumento de um fruto e provoca o instinto mais calmo...
— Não te agrada a minha nueza?
— Inteiramente. Agora, vê lá se te não impressiona mal a brancura do meu ventre...
— Ao contrário, Maria Angélica: é uma grande corola de pétalas alvas desenvolvida de um peluginoso cálice de ouro... É maravilhoso o teu contorno... Dignas formas para a perpetuidade de uma tela ou de um retrato...
— Deixarias tu que fosse apanhada a tua nudez?
— E por que não?... Sei que fascinaria... Queres fotografar-me?
— Que egoísmo leviano!
— Acha-o?
— Sim... Fotografemo-nos...
— Adorável!... Como não irradiará no clichê o contraste de nossas peles, o macio sombreado de um trópico sobre a tentadora alvura nevosa de um polo...
Os olhos das duas mulheres vestiu-se com uma luz líquida como uma solução de perolas e opalas.
Os seus lábios permutaram cariciosos beijos.
E, horas depois, Maria Angélica e Helena, retratadas por uma aia, desvendavam as suas abrasadoras nuezas à inveja de Ester...
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