Vinhos e águas-ardentes
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando entrei no cemitério, lobriguei, ao fundo, por entre a rama
de alguns ciprestes, que orlavam as ruas transversais, o coveiro a levantar as
últimas pazadas de terra de uma vala.
O homem
cantarolava assim:
Menina, que está à janela,
A lançar goivos à rua…
Menina, que está à janela,
A lançar goivos à rua…
E, depois, agachado no cairel, media com o cabo da enxada a profundidade
da cova, prosseguindo alegremente:
Se o coveiro aqui passa,
Vai pôr-lhos na sepultura.
Meteu a pá da enxada na leiva de terra, que lhe ficava ao lado, transpôs o cômoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife pobre, de pau, sem forro, com os símbolos da morte pintados de amarelo.
Arrastou-o com esforço para a boca da vala, escancarou as tampas;
e, ao dar com o rosto do cadáver, exclamou de si para si:
— Ora espera! Eu conheço esta rapariga!
Entreabriu os lábios com a unha do dedo polegar, concentrou-se um
instante a meditar com os olhos fechados; e, por fim, continuou compadecido:
— Ah! És a Rosita do tecelão!
À medida que retirava com jeitosa piedade o cadáver do esquife,
lamentava:
— Pobre rapariga! Eu logo vi que te não delatavas atrás da filha!
Depois, o resto foi rápido e breve.
Baldeou o cadáver ao fundo da cova, lançou-lhe por cima a terra
que tinha levantado, recalcou bem com os pés juntos os últimos torrões, e
retirou-se para casa, com a enxada ao ombro!
***
Aí vai ler-se a história dessa mulher. A sua vida é a vida trivial
de muitas desgraçadas.
Quando tinha apenas dezoito anos, Rosa chorou as primeiras
lágrimas do coração retalhado sobre o cadáver da mãe, que lhe expirou nos
braços.
Ficava sozinha no mundo, a viver pobremente do seu trabalho
honesto e incessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas
as adversidades, que a sorte lhe havia de deparar.
O grande perigo estava-lhe na peregrina formosura do rosto e na
inocência do coração, que é a formosura da alma.
Um dia o Benjamim tecelão, um rapaz alegre e bem parecido, que de
há muito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a sua
declaração, propôs-lhe com voz trêmula a sua mão de esposo. Mentiu-lhe.
Ao cabo de onze meses, durante os quais o tecelão ia inventando
embargos à realização da sua promessa, a pobre rapariga deu à luz uma filha. As
primeiras alegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração ludibriado. A
filha chamava-se Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.
Depois, quando as lágrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a
criancinha nos braços, e um sorriso dela era-lhe um grato refrigério para as
amarguras da vida.
O operário entendeu que a filha era um vinculo mais apertado do
que a estola de um sacerdote. Propôs a vida em comum. Rosa acedeu de pronto,
fiada em que o amor de pai talvez despertasse na consciência de Benjamim a
ideia do casamento, que a reabilitasse.
O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava às despesas da
casa, deixou-se ficar uma semana sem ir à fábrica. Quando a ociosidade lhe era
tediosa, ia procurar distração na taberna mais próxima. Voltou de novo ao
trabalho; mas o seu produto despendia-o consigo e com os amigos, às mesas das
tabernas e às bancas do jogo, esquecendo-se de Rosa e da filha. Aconteceu Rosa
adoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a Benjamim. Não teve ele
coragem de lho negar; mas entregou-lho de um modo tão áspero, que ofendeu o
coração da desventurada mãe.
Foi aí que principiou o calvário de Rosa!
Benjamim entrava em casa, por altas horas da noite, cambaleante e
obsceno. Atirava quantos insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga. Rosa
amparava-o com brandura, sofria-lhe os escárnios com a mais santa resignação,
auxiliava-o a deitar-se; e, depois, quando Benjamim, com os cabelos em
desalinho, o rosto descorado, ressonava, prostrado com o peso da embriaguez,
ela quedava-se a contemplá-lo, com as faces cobertas de lágrimas.
O viço da sua formosura ia pouco a pouco desaparecendo. Já não
tinha o mesmo brilho nos olhos, o mesmo cetim na cútis, a mesma ondulação nos
contornos do rosto. As lágrimas deixavam um vestígio indelével da sua passagem,
e Rosa envelhecia e esfeiava.
Benjamim, ao acordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-se
enfastiado da presença daquela velha,
e saía de casa sem lhe dirigir uma palavra de gratidão e carinho!
De uma vez — tinha Isabel sete anos — o tecelão chegou a casa num
estado lastimoso. Dois amigos e consócios de taberna levaram-no nos braços, até
à porta. Benjamim subiu a custo os degraus íngremes da escada; abriu de repelão
a porta da sala, e apareceu hediondo, a tremer, com os olhos injetados, os
lábios convulsos, os cabelos empastados de um suor viscoso. Fez um esforço para
se aproximar de Rosa. Estendeu os braços para se arrimar à parede; abriu as
pernas para conservar o equilíbrio; e, ao arriscar vacilante o primeiro passo,
caiu de bruços, com todo o peso do corpo, sobre o pavimento!
Isabel, que já dormia, acordou sobressaltada com o estrondo da
queda, e principiou a gritar de medo! Benjamim ergueu-se de golpe, dirigiu-se à
enxerga, em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre criança, que
emudeceu de terror aos primeiros tratos. Acudiu Rosa, implorando com altos
brados a Benjamim que perdoasse à filha; mas o bêbado respondia às súplicas da
mãe com pancadas e empuxões.
Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se
podia remover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a
em umas saias de baeta, e, logo que o tecelão saiu de casa, foi com a filha ao
hospital da Misericórdia. O facultativo, que observou a criança, viu, através
das lágrimas da mãe, a causa daquelas contusões. A pequenita estava muito
doente.
Ao terceiro dia, a filhinha chamou com voz débil pela mãe,
pediu-lhe que se sentasse na enxerga, bem junto dela, encostou-lhe a sua loira
cabecinha no regaço, e disse-lhe:
— O pai é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer, hei de
pedir a
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?
Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito,
lhe embargavam a voz.
A Isabelinha então, já com a vista turva, e a boca entreaberta,
lançou os braços ao pescoço da mãe, para a achegar mais de si, estremeceu da
derradeira convulsão e… expirou!
Ao cabo de um mês, durante o qual o padecimento de Rosa fora horrível,
o mesmo coveiro que enterrou a filha, abriu ao lado outra cova para receber a
mãe.
***
O rosto daquela mulher, magro, lívido, macerado, tinha a impressão
indelével das torturas por que passara. Não havia nele as contusões da agonia
dos delinquentes, que morrem convulsionados pelo terror de um castigo eterno. O
derradeiro alento entreabriu-lhe nos lábios um sorriso de bem-aventurança!
É como ficam as criaturas, santificadas pelo martírio, e que
esperam na morte a hora do seu resgate!
E quem diria — pobre criança! — que tinhas apenas vinte e cinco
anos, e que foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que pousaste pela
vez primeira os lábios convulsos de alegria na face cor de rosa de tua filha!?
E saber-se que o martiriológio é com certeza o único elogio
fúnebre de tantas desgraçadas como Rosa!
E Benjamim?
Benjamim, aquele homem que seduziu impunemente uma mulher e que
matou impunemente a filha, prossegue inflexível na vida crapulosa, dominado
pelo vício da embriaguez, em que tem perdido, pouco a pouco, o vigor e a vida
de todas as faculdades, a saúde, a honra e a própria dignidade de um ser
humano!
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