Tio Barreiros
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O tio Barreiros: — Ora os senhores vão imaginar talvez que eu tenho
para lhes contar a história de algum tio ilustre, muito respeitável na sua
gravidade de conselheiro... Ou ainda de algum general com o peito cheio de
condecorações, fartos bigodes brancos, respirando nobreza e altivez... Nada
disso. Era um simples e humilde criado de lavoura, de cara rapada, com uns
olhos de um azul luminoso, o tio Antônio
Barreiros.
Encantador o
costume patriarcal de viverem as crianças com antigos criados, quase da
família, que elas se acostumam a amar sem o respeito que enfastia, mas também
sem a desagradável autoridade sobre essas velhas cabeças embranquecidas, sempre
inclinadas para os mais pequeninos, os últimos...
Por isso, o
tio Barreiros é uma das figuras mais simpáticas que na minha memória sorri.
Para criado
de lavoura entrou ele em casa, já velho; pouco podia, o pobresito! Muito
corcovado, o fato de saragoça grosseira, o chapéu braguês um pau na mão — quase
nos pareceu um mendigo.
Mas não;
tinha seus brios o tio Antônio. Trabalhava como um rapaz; rejuvenescia,
coitado!
Um risonho
ar filosofal dava-lhe à face uma certa finura aristocrática. E contava-nos: —
“Que eu, meninos, dizem que sou filho do Deão de Decermilo. Mas que monta?... Fui pastor em rapazelho;
depois entrei para criado dos fidalgos de São Tiago e por lá estive até que me
casei. Bons tempos, bons tempos!...”
— “E depois,
tio Barreiros?”
Uma lágrima
diluía-se no azul dos seus olhos finos.
— “Depois,
depois... A mulher morreu para ali, negrinha das bexigas, que foi uma dor
d'alma!”
—...“A
rapariga, essa... Já depois de grande, um dia morreu também, que nem eu sei de
quê!... Agora, a minha família são os meninos, cá esta casa. Isto é como se
fosse meu, pela amizade que lhes criei...”
A nota
melancólica da conversa desaparecia por completo do nosso espírito para só
avultar aquela estranha palavra: — Deão!—
Que seria aquilo?... Talvez uma coisa escarlate franjada a ouro, como os guiões, que levavam uns pobres homens
derreados, na procissão do Corpo de
Deus!
E o velho Barreiros,
com tal probabilidade de pai, avultava aos nossos olhos prodigiosamente,
tornava-se quase divino, num hierático esplendor de festa religiosa.
Por fim, o
pobre velho já não se atrevia a sair às propriedades de fora — honestamente
pediu que lhe baixassem a soldada, que ele ficava só para tratar da horta. E às
tardes, naqueles poentes tristíssimos das regiões montanhosas, nós passeávamos
sob a parreira da horta: ele de sacho na mão, parando de quando em quando
a apanhar uma folha velha das enormes couves, que só ele fazia crescer
espantosamente. Nunca mais vi couves assim! Talvez por ser eu muito pequena,
tudo me parecesse grande; talvez porque o tio Barreiros tivesse receita
especial para as fazer crescer!... — “Que isto, meninos, as criadas não devem
pôr mão na horta. Uma desgraça, decepam tudo, uma estragação!”
Claro; nós
éramos sempre pelo velho contra elas.
— “Lá em
casa dos fidalgos, havia couves ainda mais altas do que estas!...”—
— “Mais
altas, tio Barreiros?!...”
Que grande
coisa ser fidalgo!— pensava. Até a horta se ressentia de tamanha altura
heráldica!
Ah tio
Barreiros, tio Barreiros, que loucuras risonhas nos metia na cabeça a vossa
bastardia fidalga! Que saudades, meu amigo!...
Uma vez— há
quanto tempo isso vai!— mal começava a aprender a ler, por prêmio assinaram-me
um jornal, que devia vir diretamente para mim.
Esperava
numa febre a chegada do carteiro; e nada do jornal aparecer, para o meu
nome, como eu sonhava noite e dia!... Desabafava com o tio Antônio, aquilo
parecia-nos história... — “Mas o papá pagou isso, menina?”
— “Pagou,
tio Antônio, para vir para o meu nome.”
— “Pois olhe
que foi no que ele andou mal. Nunca fiar!...”
E lá
esperávamos, consternados, mais vinte e quatro horas. Mas um dia soube-se: — o
jornal tinha vindo logo, mas, como eu tivesse numa terra próxima uma tia com o
mesmo nome, os empregados do correio vá de lho remeterem. Eu, muito queixosa,
fui ter com o Barreiros ao quintal. Ele indignou-se:
— “Vou já lá
de caminho. Não, que uma coisa assim!... Nem que a minha ama nova não soubesse
já ler, não fosse capaz de ter um jornal!” Era uma injúria para nós ambos. E eu
ficava consolada, vendo-o atravessar o pátio, seguido das galinhas, galos,
perus, marrecos, com o ganso pai à frente— o Caitano — como lhe chamávamos.
E ele lá ia
com toda a pressa que as suas velhas pernas lhe permitiam— um casaco que
lhe tinham dado, arrastando na frente e muito curto atrás, tão dobrado andava
ele, o pobresito, a pender para a terra!...
E o caso é
que fez um discurso no correio. Mas por fim discutimos: — “Menina, o melhor é
mudar de nome. Olhe que há de haver sempre enganos!”
E esta coisa
de haver enganos — tocou-me. Toda a vida a não receber os meus jornais...
— “Pois está
dito, tio Antônio! É o melhor.” E assim foi.
Mas o velho
começou a enfraquecer. De dia para dia o corpo se lhe dobrava mais para a cova.
Já pouco comia, sustentava-se de vinho e marmelada, nada mais.
E num
inverno muito rude, em que a neve caiu mais a miúdo e de manhã a água dos
tanques aparecia gelada — o tio Antônio Barreiros apanhou uma tossita;
levantava-se tarde, já não ia com o sacho para a horta...
Sentíamos
que o seu espírito, risonhamente infantil, já andava longe, num meio sonho,
quase desligado da terra...
Falava na
mulher, falava na filha, com uma grande serenidade e um redobramento de
afeto — como quem pensava em as encontrar breve. Depois olhava-nos com uma tal
saudade...
E numa fria
manhã de inverno, voltado para a parede, embrulhado na manta de riscas, ele
apareceu serenamente adormecido para sempre. A sua boca irônica eternamente
risonha; fechados os olhos azuis de uma graça aristocrática... O seu perfil
acentuado, desenhava-se muito nítido na brancura da parede. As glicínias,
despidas de folhas, metiam os braços hirtos pela abertura da janela, numa
última despedida ao velho amigo que as tinha plantado... E ele dormindo na
manhã brumosa, sem responder ao nosso chamamento!...
E que falta
ele fazia, à noite, na ceia dos criados, contando histórias, oh! lindas
histórias de feiticeiras e lobisomens — de que o velho se ria, um poucochinho
cético, vamos lá!... — Guerras que ele vira, dramas de família a que tinha
assistido, trovoadas no meio da serra a quando pastor... Ah! tudo isso nos
fazia muita falta, muita falta!... E nunca mais nós esqueceremos o tio
Barreiros, dormindo sossegadamente junto dos patrões, que primeiro nos tinham
deixado.
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