10/22/2017

Tio Barreiros (Conto), de Ana de Castro Osório


Tio Barreiros
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O tio Barreiros: — Ora os senhores vão imaginar talvez que eu tenho para lhes contar a história de algum tio ilustre, muito respeitável na sua gravidade de conselheiro... Ou ainda de algum general com o peito cheio de condecorações, fartos bigodes brancos, respirando nobreza e altivez... Nada disso. Era um simples e humilde criado de lavoura, de cara rapada, com uns olhos de um azul luminoso, o tio Antônio Barreiros.
Encantador o costume patriarcal de viverem as crianças com antigos criados, quase da família, que elas se acostumam a amar sem o respeito que enfastia, mas também sem a desagradável autoridade sobre essas velhas cabeças embranquecidas, sempre inclinadas para os mais pequeninos, os últimos...
Por isso, o tio Barreiros é uma das figuras mais simpáticas que na minha memória sorri.
Para criado de lavoura entrou ele em casa, já velho; pouco podia, o pobresito! Muito corcovado, o fato de saragoça grosseira, o chapéu braguês um pau na mão — quase nos pareceu um mendigo.
Mas não; tinha seus brios o tio Antônio. Trabalhava como um rapaz; rejuvenescia, coitado!
Um risonho ar filosofal dava-lhe à face uma certa finura aristocrática. E contava-nos: — “Que eu, meninos, dizem que sou filho do Deão de Decermilo. Mas que monta?... Fui pastor em rapazelho; depois entrei para criado dos fidalgos de São Tiago e por lá estive até que me casei. Bons tempos, bons tempos!...”
— “E depois, tio Barreiros?”
Uma lágrima diluía-se no azul dos seus olhos finos.
— “Depois, depois... A mulher morreu para ali, negrinha das bexigas, que foi uma dor d'alma!”
—...“A rapariga, essa... Já depois de grande, um dia morreu também, que nem eu sei de quê!... Agora, a minha família são os meninos, cá esta casa. Isto é como se fosse meu, pela amizade que lhes criei...”
A nota melancólica da conversa desaparecia por completo do nosso espírito para só avultar aquela estranha palavra: — Deão!— Que seria aquilo?... Talvez uma coisa escarlate franjada a ouro, como os guiões, que levavam uns pobres homens derreados, na procissão do Corpo de Deus!
E o velho Barreiros, com tal probabilidade de pai, avultava aos nossos olhos prodigiosamente, tornava-se quase divino, num hierático esplendor de festa religiosa.
Por fim, o pobre velho já não se atrevia a sair às propriedades de fora — honestamente pediu que lhe baixassem a soldada, que ele ficava só para tratar da horta. E às tardes, naqueles poentes tristíssimos das regiões montanhosas, nós passeávamos sob a parreira da horta: ele de sacho na mão, parando de quando em quando a apanhar uma folha velha das enormes couves, que só ele fazia crescer espantosamente. Nunca mais vi couves assim! Talvez por ser eu muito pequena, tudo me parecesse grande; talvez porque o tio Barreiros tivesse receita especial para as fazer crescer!... — “Que isto, meninos, as criadas não devem pôr mão na horta. Uma desgraça, decepam tudo, uma estragação!”
Claro; nós éramos sempre pelo velho contra elas.
— “Lá em casa dos fidalgos, havia couves ainda mais altas do que estas!...”—
— “Mais altas, tio Barreiros?!...”
Que grande coisa ser fidalgo!— pensava. Até a horta se ressentia de tamanha altura heráldica!
Ah tio Barreiros, tio Barreiros, que loucuras risonhas nos metia na cabeça a vossa bastardia fidalga! Que saudades, meu amigo!...
Uma vez— há quanto tempo isso vai!— mal começava a aprender a ler, por prêmio assinaram-me um jornal, que devia vir diretamente para mim.
Esperava numa febre a chegada do carteiro; e nada do jornal aparecer, para o meu nome, como eu sonhava noite e dia!... Desabafava com o tio Antônio, aquilo parecia-nos história... — “Mas o papá pagou isso, menina?”
— “Pagou, tio Antônio, para vir para o meu nome.”
— “Pois olhe que foi no que ele andou mal. Nunca fiar!...”
E lá esperávamos, consternados, mais vinte e quatro horas. Mas um dia soube-se: — o jornal tinha vindo logo, mas, como eu tivesse numa terra próxima uma tia com o mesmo nome, os empregados do correio vá de lho remeterem. Eu, muito queixosa, fui ter com o Barreiros ao quintal. Ele indignou-se:
— “Vou já lá de caminho. Não, que uma coisa assim!... Nem que a minha ama nova não soubesse já ler, não fosse capaz de ter um jornal!” Era uma injúria para nós ambos. E eu ficava consolada, vendo-o atravessar o pátio, seguido das galinhas, galos, perus, marrecos, com o ganso pai à frente— o Caitano — como lhe chamávamos.
E ele lá ia com toda a pressa que as suas velhas pernas lhe permitiam— um casaco que lhe tinham dado, arrastando na frente e muito curto atrás, tão dobrado andava ele, o pobresito, a pender para a terra!...
E o caso é que fez um discurso no correio. Mas por fim discutimos: — “Menina, o melhor é mudar de nome. Olhe que há de haver sempre enganos!”
E esta coisa de haver enganos — tocou-me. Toda a vida a não receber os meus jornais...
— “Pois está dito, tio Antônio! É o melhor.” E assim foi.
Mas o velho começou a enfraquecer. De dia para dia o corpo se lhe dobrava mais para a cova. Já pouco comia, sustentava-se de vinho e marmelada, nada mais.
E num inverno muito rude, em que a neve caiu mais a miúdo e de manhã a água dos tanques aparecia gelada — o tio Antônio Barreiros apanhou uma tossita; levantava-se tarde, já não ia com o sacho para a horta...
Sentíamos que o seu espírito, risonhamente infantil, já andava longe, num meio sonho, quase desligado da terra...
Falava na mulher, falava na filha, com uma grande serenidade e um redobramento de afeto — como quem pensava em as encontrar breve. Depois olhava-nos com uma tal saudade...
E numa fria manhã de inverno, voltado para a parede, embrulhado na manta de riscas, ele apareceu serenamente adormecido para sempre. A sua boca irônica eternamente risonha; fechados os olhos azuis de uma graça aristocrática... O seu perfil acentuado, desenhava-se muito nítido na brancura da parede. As glicínias, despidas de folhas, metiam os braços hirtos pela abertura da janela, numa última despedida ao velho amigo que as tinha plantado... E ele dormindo na manhã brumosa, sem responder ao nosso chamamento!...
E que falta ele fazia, à noite, na ceia dos criados, contando histórias, oh! lindas histórias de feiticeiras e lobisomens — de que o velho se ria, um poucochinho cético, vamos lá!... — Guerras que ele vira, dramas de família a que tinha assistido, trovoadas no meio da serra a quando pastor... Ah! tudo isso nos fazia muita falta, muita falta!... E nunca mais nós esqueceremos o tio Barreiros, dormindo sossegadamente junto dos patrões, que primeiro nos tinham deixado.

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