Sombras
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Para a minha rica mana Rosa!...
Por acaso,
numa caixa aromática de charão vinda de minha avó, encontrei um dia, entre
pequenas coisas de outro tempo e cartas de família, uma que decerto foi — há
muitos anos já — lida e relida por uns adoráveis olhos azuis que bastante devem
ter chorado as tristezas do exílio...
Velha carta
amarelecida, quebrada de antigas dobras, num antiquíssimo papel— como ela
evoca, ao meu espírito histórias quase fantásticas para nós, dessas existências
decorridas há tantos, tantos anos!...
“Minha querida mana Rosa do meu coração!...”
São
adoráveis essas cartas de antigamente, feitas com uma simpleza e uma
ingenuidade quase infantis — como não somos já capazes de fazer! E eles sentiam
tanto como nós sentimos; mais ainda talvez...
Não eram as
separações quase eternas? Quem poderia esperar, ao sair de Macau, numa
longuíssima viagem em navio à vela, que decorridos anos tornaria a ver essa
família muito querida, deixada por outra mais querida ainda?!
Quanta
amargura, quanta tristeza, nos dizem essas pequenas cartas criancilmente
simples, a quase nos fazer sorrir! É que a alma humana não tinha chegado ainda
à suprema tortura de se sentir pensar, de se saber despedaçar aos bocadinhos,
palavra por palavra, letra por letra, lágrima por lágrima!... Não tinha chegado
ainda ao espiritual impudor com que nós procuramos traduzir em frases bem
redondas, bem nítidas, bem palpitantes, a amargura que nos cava fundo no
coração.
***
Ao dar com
essa singela carta de há muitos anos, uma grande simpatia, envolta em uma
espécie de saudade, me veio por as encantadoras figurinhas do tempo passado,
sorridentes, frágeis, movendo-se musicalmente na graça antiga do minuete
passeado...
Vejo-as: com
os seus grandes chapéus à diretório, de cintas muito curtas e leques de plumas,
levantando gráceis os vestidos compridos,— mostrando, numa coquetterie quase infantil, a meia
de seda clara arrendada, com fitas a enlaçar, como era a moda.
Têm uma
doçura pálida, um encanto murcho de outros tempos, um perfume apagado,
imaterial,— essas histórias tão graciosas e tão puras.
É com meiga
tristeza que recordamos todas as que foram lindas e amadas há muitos anos e
hoje desaparecem no pó!... Finas silhouettes que
os nossos filhos nem já saberão distinguir no montão de saudades que lhe vamos
acumulando!
É um
delicado prazer do espírito relembrá-las assim, uma por uma, essas
empalidecidas figuras de mulheres formosas vestidas com antigos trajos — que eu
só posso imaginar bonitas e moças, e tão velhinhas seriam se ainda
pudessem existir!
E foram
belas e foram novas e foram amadas — essas que hoje não são mais do que
sombras!
***
Mas para
escrever uma história dessas — feita de ligeiríssimos esboços, de recordações
muito vagas, quase de tenuidades de sonho... — quanta concentração de bondade,
e delicadeza e amor é necessário?!...
Ao olhar, ao
tocar um pequenino retalho de seda que serviu outrora num vestido de noivado,—
toda a nossa alma há de estremecer numa saudade fugitiva, o nosso coração
vibrar palpitando, como próprias, as alegrias e as tristezas de todos aqueles
que no mundo passaram...
É como se os
víssemos diante de nós, sangrando ainda todo o amargo sofrimento da vida...
***
Minha querida mana Rosa...
Rosa — apesar de se chamar Ana, essa
linda irmãzinha, a que o rosado das faces dera esse nome
deliciosamente familiar e perfumadamente fresco — numa caligrafia larga,
antiga, num português estrangeirado, ela vai dizendo as saudades e as tristezas
que a vinda para Portugal da irmã mais amada lhe deixara na alma.
Nem um
grito, nenhuma revolta. Na retidão do seu espírito de inglesa essa partida era
um dever sagrado, que não se devia amargurar por inúteis lágrimas.
E nada
literária essa ingênua carta de uma doce e loira inglesinha nascida lá muito
longe, na velha terra de Macau. Conselhos para a viagem, de uma graça toda
maternal e muito prática: — “Não é bom tomar caldo de galinha enquanto está
enjoado. Há de fazer muito mal. Eu mando doce de laranja. Diz que é muito bom
comer quando está enjoada. E um pouco de gengibre salgado. Deixa ficar um
bocado na boca, sempre...”— E por fim, quase num soluço: “Adeus minha querida
mana, mande notícias suas
sempre, para sossegar este aflito coração.”— Saudades, beijos aos sobrinhos,—
assinado: Juliana Moor.
Ao ler este
nome eu recordei, quase involuntariamente, toda essa história, bem certa,
que minha avó contou aos filhos, que os filhos nos contaram a nós.
Sim, era
ela, foi ela, essa pobre e querida irmã deixada para sempre, que à despedida
lhe disse: — “ai minha rica mana que não nos tornamos a ver!... Mas eu irei
despedir-me de ti!...”
E veio. É
tão simpática ao meu espírito essa pequena história, ouvia-a tanta vez contada
por minha mãe — que eu também a posso contar como se a ela assistisse.
Primeiro, eu
as imagino, a essas cândidas figuras de inglesitas, vestidas de seda clara,
muito loiras, com a ingenuidade idealista da sua raça, apaixonadas aos quinze
anos por estrangeiros, que as levariam para longe — o pai bem o previa!... Mas
nessa idade quem presente as lágrimas que as alegrias trazem consigo?!
E também a
contemplo, à minha linda avozinha, com os seus deliciosos quinze anos, o cabelo
muito louro em bandós encaracolados, uma fita estreita a fazer a cinta debaixo
dos braços, os ombros quase infantis a destacarem muito brancos na seda rosa do
vestido império...
Muito linda,
muito linda! Tal qual me sorri na miniatura encantadora que tenho aqui diante
dos meus olhos.
E a outra
devia ser parecida — quase iguais, como duas pombas saídas do mesmo ninho.
Alegres e felizes ambas por bastantes anos ainda, na terra que as vira nascer,
crescer e amar. E os filhos da outra, tão amados por ambas que só na separação
distinguiram a verdadeira mãe...
Mas tinha de
ser. Uma vinha para Portugal na nova família que ela criara; tão
estremecidamente amada no dia em que morreu como no dia em que casou. A outra
lá seguiu com o marido para Goa, na lógica dos seus destinos e da sua raça.
***
Mas uma
noite...
Já muitos
anos tinham passado; aquela que fora uma gentil criança era então uma formosa
mulher, ao de leve empalidecida, de sorriso a murchar, conhecendo já o amargor
das lágrimas... Ela não esquecera ainda essa família querida, deixada tão
longe, deixada para sempre!... E a irmã, que amava mais que a todos, quando
a veria?... Pedia-lhe o coração que fosse bem tarde — porque era uma
certeza para o seu espírito que só à alma, desprendida do corpo para sempre,
seria dado esse infinito prazer...
Uma noite
ela dormia serena, junto do marido, quando uma voz a chamou de manso... Como
não acordasse de todo, julgando-se a sonhar,— três pancadas dadas muito de leve
na cama despertaram-na completamente.
Era ela, a
irmã muito querida, numa sombra suave, que não assustava ninguém.
Sentava-se-lhe à cabeceira, sorria, dizia-lhe numa carícia de voz ciciada: —
“Cumpro a minha promessa, venho despedir-me!...”— E muito baixo, com uma
infinita mágoa de mãe: — “Ah, custa-me muito deixar a minha Juliana! É a mais
nova... E não lha poder entregar!...”— Levantando-se, desvaneceu-se
silenciosamente num raio de luar que vinha pela janela mal fechada.
Ela olhava,
olhava ainda, procurando na solidão do quarto a imagem da irmã, que lhe
aparecia tal qual era e tão diferente do que fora! Só a voz era a mesma. De
resto — quase a não poderia reconhecer nessa ligeira sombra vestida à moda
do tempo, tão diferente daquela em que a deixara: a cinta muito comprida, a
saia de largo balão, o fechu de
rendas que aconchegava com a mão esguia, muito fina, ao pescoço nu!
Era ela, bem
certo que era ela!... A cor do vestido ficou-lhe bem nítida na memória — azul
pálido, quase prateado...
Os soluços
sufocavam-na, chorava sem consolação a amada morta que se viera despedir a
tantas léguas de distância!
Foi em vão
que o marido a quis convencer a esperar notícias. Ele
escreveu logo confiando em que a resposta à sua carta a tiraria daquela
tristíssima impressão... Para ela é que não havia dúvida possível!
E a fatal
notícia — que a morta viera trazer numa noite de luar tão branca como a santa
amizade que as ligara — só passados seis meses era confirmada por cartas vindas
de Goa. — “E na última hora, minha querida tia, a minha mãe falava em vossa
excelência...”
É bem
dolorosamente triste essa pequenina carta em letra miudinha, de míope, frágil
como o coração da pobre órfã abandonada tão longe dos seus! — Família
talvez em França, de onde era o pai, família em Macau, família em Portugal...
Em Goa, eles sós! Como é triste essa carta, triste a fazer mal! Pobre pequena
carta que eu guardarei eternamente — a relembrar as vagas, esparsas tristezas
de exilada que me andam na alma...
E mais tarde,
morta a minha avó rodeada de filhos e netos, feliz na serenidade do seu lar,
que ela soube sempre fazer tão querido,— a que longínquos países iria a sua
alma peregrinar em amorosa despedida a algum dos seus?!...
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