Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
A inesperada morte do velho doutor Mendes fez-me volver os olhos um
bom par de anos atrás — a quando criancita gulosa lá ia ver passar as
procissões e beber a minha xícara de leite com sopas de biscoitos caseiros.
Essa morte
rastejou-me na alma uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito
esse velho nem que a sua falta seja desventura para alguém,— mas é que os
sinos, dobrando numa pardacenta tarde de fevereiro, são de uma tamanha
tristeza!...
Com uma
persistência dolorosa de choro, as badaladas sucediam-se atirando para o
espaço os seus pesados lamentos — únicos que acompanharam o doutor Mendes na
sua primeira noite d'além.
Morreu,
pobre velho inútil, despertando apenas a irônica piedade que inspiram aqueles
cuja alma subalternizada não soube criar uma família nem chegou à consciente
bondade dos fortes.
Ninguém o
estimava já. Outrora havia inspirado medo como mandão de aldeia; diziam-no
vingativo e cruel nos tempos áureos do seu poderio... Por fim, esse poder era
uma triste caricatura.
...Porque —
eu ainda lhes não disse? — fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para
mim mais comovente do que Jocelin.
Em novo fora
o doutor Mendes um feliz conquistador de criadas e caseiras, que olhavam agora
para os filhos grosseiros e brutais, encarquilhando os olhos cúpidos,
julgando-os possíveis herdeiros da bela fortuna do velho. Tudo podia ser; se
ele não tinha herdeiros forçados!
E lá ia
vivendo, certo em todas as festas, imaginando-se imponente à força de
tesura, o bigode branco cortado em escova, a calva luzidia, a face sanguínea.
Dava realce às festas — diziam rindo chocarreiramente aqueles que lhe tinham
tirado o bastão de comando, deixando-o, mono de palha, para a imposturice
da figura.
Estou a
vê-lo, o senhor doutor, com a sua casaca pré-histórica, lustrosa, de um feitio
único; o lenço de Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sair dos
bolsos; cumprimentando receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e
vermelhos; soprando contente a cada palavra...
Levava a
umbela em todas as procissões e na minha poderosa imaginativa infantil aquilo
engrandecia-o a tal ponto que o revia no céu acompanhando as almas purificadas
ante o trono de ouro do Padre Eterno.
Se caiu de
tão alto no meu conceito, não foi dele a culpa, que impassível continuou ele a
sua vida quase hierática entre o incenso dos turíbulos e o cheiro fresco do
rosmaninho — eu é que mudei, infelizmente!
Por que não
detemos nós a vida; por que não conservamos o nosso espírito na meia
alucinação doce da infância? Se vale a pena isto!... Andar a primeira parte da
vida a construir altares, a enramalhetá-los, a venerá-los com todo o nosso
entusiasmo; gastar outro tanto tempo a destruí-los; e o resto da vida passar a
chorá-los! Não, não acho que vá bem assim o mundo! Ou as crianças têm que
nascer com a sabedoria dos velhos ou os velhos ficarem com a ingenuidade das
crianças. Quanta tristeza se pouparia a certos espíritos por demais
vibráteis!... Assim, eu escusava de sofrer vendo a pobre cabeça do velho doutor
Mendes, que diziam inteligente, ser agora uma coisa estéril e oca.
O seu risito
infantil, em hi, hi, hi, como
dava uma prova dos frágeis juízos humanos! E tinha sido terrível em vinganças
do tempo dos Cabrais, ele que hoje fazia rir as crianças!
A rodear o
idoso doutor Mendes fazia-se uma atmosfera de coisas envelhecidas e desbotadas.
A sala de recepção — forrada a panos de Arrhas,
com ingênuas cenas da Bíblia, onde as cores já murchas se confundiam e empalideciam
suavemente a dar um tom uniforme à filha dos Faraós salvando um esperto
Moisés e ao seu terrível pai afogando-se nas justiceiras águas do Mar Vermelho
— abria-se lá pelas festas às raras visitas. Impunha respeito com os seus tetos
altos, o delgado friso doirado a dividir os panos, as suas doze cadeiras
formadas aos lados do sofá incomodo como um potro inquisitorial, o
indispensável tremó e espelho a encimá-lo.
Logo ao
entrar no pátio, à noite sempre iluminado esperando problemáticas visitas, uma
gélida impressão de silêncio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de
pedra, a abrir-se nobremente em dois lanços, como um velho amigo que nos recebe
de braços abertos. Essas belíssimas escadas das casas antigas, que dão bem a
nota carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia
naquele interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por
indiferentes.
Entrava-se a
medo na sombria casa e esperava-se, em silêncio, que os donos aparecessem.
Passado um tempo, que nos parecia infindável, vinham, as quatro manas —
miudinhas, desbotadas elas também, muito parecidas umas com as outras,
falando baixo, repetindo todas o que dizia a mais nova, sentenciosamente, a
modos de oráculo. Muito devotas, um grande respeito pelo mano doutor, elas lá
iam todos os domingos, em carreirinho de formigas, à missa pacata da freguesia.
Muito velhitas, com antigos enfeites na cabeça, vestidos de seda passados de
modas há tempos imemoriais, lencinhos de renda no pescoço, restos de antiga
garridice, cheirando a alfazema e a cânfora.
Como isto
vai longe, perdido no montão de saudades que me enchem a memória; e como eu
sinto ainda toda a impressão de poeirento, de velhez, que me tomava toda quando
as ia visitar cerimoniosamente!
Porque o
tempo já ia longe em que a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem
receio naquele túmulo. O tempo das procissões e do leite frio passara com a
minha primeira infância e com as passeatas à igreja para ver as mudanças
de toilettes que Nossa
Senhora sofria de cada vez que a passeavam procissional e dolorida.
E ainda hoje
elas coram e baixam os olhos admirando a imoralidade que vai por esse
mundo. — “Tudo perdido, tudo perdido,
manas...”— dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra. — “É verdade, é verdade, é verdade...”—
respondiam as três a um tempo. — “Ainda
bem que o mano não quis casar!... Nem nós também, que fomos bastante
pretendidas!...”— “É verdade, é
verdade, é verdade!”— fazia o coro. — “Que
modas, santo Deus! Os homens cruzam a perna diante das senhoras e apertam as
mãos!! Que gente, que imoralidade!...”— E as outras abanavam a cabeça
afirmativamente, enquanto o doutor Mendes, à janela, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um
sorriso velhaco.
E foi ele,
tão corado e gorducho, o primeiro a morrer.
A sua morte
dera brado. Murmurava-se: “Afinal não
fizera testamento? Pudera! Até na morte fazia partida. Fora sempre assim.”—
E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem nenhuma pena, maçados. Enterro de
indiferentes que nenhum respeito contêm no seu aborrecimento.
As pobres
irmãs, mirraditas, gemiam frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe deste
mundo — nem gritos já tinham para se lamentar. Era um correr de lágrimas, sem
soluços nem febre, um resignado sofrer de pálidos fantasmas.
Por suprema
ironia das coisas humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão de
aldeia, que inspirara medo e profundos ódios, apenas restava esse corpo inerte
deitado numa eça branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se ele fosse
vivo como a levaria imperturbável!...
Mas os sinos
lá ao longe tangiam mágoas, que se iam alastrando como nodoa de azeite na
pardacenta tarde de um fevereiro triste.
Como é
enervante pensar na vida assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande
afeto que nos chore bem alto, a fazer calar todos os risos!...
Nessa
paisagem, paralisada pelo inverno, só eu parecia viver— campos de vinha
estorcendo os braços esqueléticos, pinhais muito graves no seu eterno verde, o
riacho a correr ao fundo do vale, e como gigantesca parede as serras violeta,
escarpadas e selvagens... Ao fundo, vaporizando-se no poente, as torres alvas
das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso dobre: dão!... dão!... dão!...
Uma grande
amargura me afogava a alma, vinda dessa paisagem desolada, desse cair da tarde
sombria, da lembrança de morte que flutuava no ar — de qualquer coisa enfim que
me segredava desalentos e angústias...
A chuva
começou de cair miudinha, sem ruído, para o fim da tarde... Que desagradável
noite essa primeira que o velho doutor Mendes passou solitário no seu túmulo,
guardado pelas sentinelas esguias dos ciprestes!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...