10/26/2017

Rapto original (Conto), de Visconde de Taunay


Rapto original

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I

Namoravam-se a valer, de uns meses atrás; a vizinhança sabia de tudo, acompanhava curiosa, acesa, as peripécias do derriço e tomava bons rega-bofes.

Ela, muito nevrótica, atirada a romantismos, exaltada, amiga de leituras violentas, fin de siécle, tocando piano de modo quase notável e gostando de despertar, alta noite, o bairro com a valentia dos acordes que deferia, nem bonita, nem feia, com esse viço da primeira mocidade que os italianos espirituosamente apelidam la beltá del’ásino, vivendo uma atmosfera de perfumes entontecedores, exóticos, acre, a sofrer, quase todos os dias, de enxaquecas, que a levavam a abusar da antipirina e lhe davam desejos ardentes de se morfinizar, para cair em longos torpores e fruir sonhos paradisíacos.

Filha única de antigo negociante, retirado rico do comércio, o Comendador Jacinto Candelária fazia as suas quatro mil vontades, criada, como fora, sem mãe, e no meio de numerosas mucamas, que beliscava forte, nos dias de mau humor e mais nervosismo. Num só ponto, contudo, e ponto capital, desenvolvia o pai todas as energias de português teimoso e embezerrado. Significara à filha, desde em menina, e incessantemente lho repetia, que só ele é que havia de casá-la. Tivesse Paciência e sobretudo confiança, pois lhe daria para noivo, não nenhum velho ou qualquer figura estapafúrdia, porém sim rapaz novo, sacudido, de boa presença, latagão de peso e medida, mas que oferecesse, depois de cuidadosas provas, garantias seguras para torná-la feliz no correr da existência.

Também soubera o zelo paterno arredar já não poucos pintalegretes – uma súcia de bilontras! Berrava possesso o Comendador, — alguns patrícios até, que lhe rondavam a casa, ou melhor, palacete das Laranjeiras, atraídos pelos dotes da rapariga, entre os quais sobressaía, mais que os seus olhos e apimentado donaire ou o talento do piano, o dote antenupcial, de que diziam maravilhas.

— De duzentos contos para cima, era voz geral, e logo de pancada, antes de se agadanhar, por morte do velho, cobre muito grosso.

 Estava, pois, a moça, entre dores de cabeça, noturnos ao piano, bocejos e manifestações histéricas, cada vez mais acentuadas, esperando o pretendente patent, garantido pelo governo paternal, quando ferrou nesse namoro muito cerrado e sério – pois os pequenos à janela não contavam – com o Arnaldo Gracias.

Gracias ou Garcia? Não, senhores, Gracias, no plural – disso fazia questão – ele, proprietário único do nome. Zangava-se deveras, ou fingia zangar-se, ao lhe não transporem, principalmente, o tal r característico, que a todos causava tamanha estranheza.

Boêmio aliás, até a medula dos ossos.

Dotado de muito chiste natural, talentoso, com estupendo poder de assimilação, sabendo tudo, e no fundo ignorante chapado, verboso, e mais que isso eloquente, com uma frase viva, faiscante, imaginosa, colorida, entressachada de tropos, verdadeiro fogo de artifício, em que, se havia muita fumaceira, fuzilavam, por vezes, alguns clarões.

Tinha a mania de inventar palavras, locuções; e algumas entravam logo em circulação. Fora quem pusera em giro o estrambótico de quando em vez, tão em moda por algum tempo no Rio de Janeiro.

— Não me banalizem o nome, costumava gritar nos cafés, batendo com a bengalinha de junco no mármore das mesas, Gracias... Gracias; com mil milhões de diabos! Não sou qualquer Garcia da venda ou da botica. Descendo de guerreiros espanhóis que costearam de rijo os mouros, os infiéis. Atendam bem, tenho que zelar tradições, coisas até de religião.

E nas rodas de estudantes, que aplaudiam e chasqueavam, lá vinham vibrantes narrações das batalhas com a mourama, em que se haviam ilustrado os primitivos Gracias.

E tanto era o fogo que a tudo punha, como se assistira às tremendas pelejas, pelo que, não raro, palmas rompiam, sinceras, espontâneas.

A todo o instante, contava histórias do arco da velha, sua vida em Paris, seus triunfos no Quartier latin. Fora até amigo de Théophile Gautier, a eterna criança, o poeta genial, o estilista impecável, e, com efeito, parecia haver tomado ao mestre e companheiro de troças algumas centelhas do maravilhoso poder descritivo.

Carioca da gema, e votando certa ojeriza à gente nortista – “são trêfegos, invejosos, proclamava sem apelação possível – tinha como obrigatório o ódio ao burguês em geral.

— Miseráveis! Exclamava com indignação repassada de desprezo; corriqueiraram-me o sublime Shakespeare! Babujaram-me de ignóbil baba o imenso Dante! Canalhas! Entrego-lhes o Inferno e o Purgatório, já que não há, aos defesa possível; mas, com mil bombardas e pelas cinzas dos meus avós, o Paraíso é meu. Hei de zelar-lhe a alvinitente pureza, custe o que custar, até a morte. Não consinto que nele toquem!...

E olhava para todos com ares de quem acabara de receber a sagrada herança por testamento do imenso Dante, com recomendações expressas acerca dessa parte da Divina Comédia.

Lera ele jamais esse Paraíso, por que quebrava tantas lanças, o Purgatório ou simplesmente o Inferno? Nunca se soube.

Buscando abrigo, em refúgios extremos do gosto e da originalidade, ainda não conspurcados pelo torpe vulgo, entranhara-se, como um perseguido pelas literaturas do Norte e citava com pasmosa profusão os nomes mais arrevesados, apregoando, dos primeiros nos círculos da rua do Ouvidor, Dostoievski, Pissenski, Arne Garborg, Ibsen, Bjoenstierne, Bjoernson, Ostrowski, Hastzembusch, Ocienxdloeger e outros de igual calibre.

Alto, magro, muito claro, com o olhar meio empanado sobre pálpebras empapuçadas, cabelos em contínuo desalinho, barba espetada perpendicularmente ao queixo, distinguia-se, mais que tudo, por pés e mãos enormes. Calçava Clark 43 e luvas, letra... não; luvas era superfluidade de que nunca usara. Em compensação, movia essas mãos em gestos contínuos, ora largos, calmos e generosos, ora frenéticos, raivosos, ameaçadores, de quem ia derrear meio mundo, com pancada de moer ossos.

Vivia ao Deus dará, sempre em vésperas de estrondosa colocação, já em alguma das secretarias de Estado, onde distribuiria o santo e a senha, introduzindo reformas estupendas de mais apurado cunho literário na feitura das peças oficiais, já a frente de uma publicação periódica que havia impreterivelmente de desbancar a

Revista dos Dois Mundos – nada menos.

— Vocês verão, anunciava exaltado, convicto, como ponho de pernas para o ar o tal Buloz e toda a sua igrejinha carrança, pedantesca e jesuítica. Será o protesto do mundo pensante contra aquela ridícula camarinha, que pretende avassalar o intelecto universal. Preparem-se para estourar de tanta gargalhada!

Por enquanto, porém, nem emprego de secretaria, nem revista. Passava os dias a pedir emprestadas a amigos e conhecidos umas miseráveis quantias, que considerava favor ir embolsando; hóspede dias, semanas ou meses seguidos, aqui, acolá; excelente rapaz no fundo, divertido, serviçal e meigo, em meio de todas as bravatas e objurgações.

Sempre pronto para a pandega. Lá isso, contassem com ele; era dos fiéis, dos inabaláveis. Com a breca, até em patuscadas há deveres a cumprir. Demais, a vida foi feita para desobrigar-se com honra e pontualidade dos compromissos tomados; curta e boa – a sua divisa.

E desfiava umas 8 a 10 horas inteirinhas do dia na rua do Ouvidor que, percorria do largo de São Francisco à ria Primeiro de Março quinze ou vinte vezes, ora às carreiras como homem atarefadíssimo e que não podia perder um minuto. Ora parando em cada botequim e nele chuchurreando café, licores, cognac, leite, sorvetes, sem absintosinho não raro, e quantos líquido, inocentes ou não, todos de bom grado lhe ofereciam. Pagava tudo com o seu verbo inflamado, multiforme, incansável, já contando anedotas picarescas, engraçadíssimas, já vociferando, sempre em oposição violenta contra os homens do poder; hoje niilista, comunista, anarquista, amanhã autocrático, déspota feroz na desapiedada repressão e no ilimitado rigorismo, tudo com inabalável convicção e grandes luzes de argumentos.

À noite, teatros, onde achava sempre meios de encaixar-se, sem jamais se entender com o bilheteiro. E, nos entreatos, eram intermináveis catilinárias à propósito da decadência da arte dramática e dos costumes públicos, adubada a preleção com olhares de indignação menosprezo às petulantes francesas e raparigas que por ali se exibiam espevitadas, provocadoras. Ocasiões, porém, havia em que com elas confabulava graciosamente.

— Boas criaturas em suma, estas michelas e marafonas, dizia com um sorriso buenacho, o que não impedia de declarar-se discípulo intransigente de Shopenhauer e de pregar inflexível cruzada contra o eterno feminino, a perdição do homem, o seu instrumento de degradação e insanável vilania.

— Tirem-me a mulher do mundo, urrava já muito escaldado com os bocks de cerveja e copinhos de cognac fine champagne, e faço de todos os homens deuses, estes supernaturais!

Davam-se épocas, entretanto, em que, de viseira alçada, com muita nobreza, relembrando o cavalheirismo castelhano, se batia em prol do sexo fraco, vítima e mártir da prepotência do forte, secularmente tirânico e maldoso, brutal e egoísta. Nessa quadra de reinvidicação, exigia. Em nome da justiça ultrajada, que a natureza repartisse com igualdade os gravames da reprodução da espécie.

Bradava então imperioso:

— Uma vez a esposa, outra o marido. Os tais senhores que experimentem o que é bom. Quero vê-los grávidos!

E com toda a seriedade chegava a afirmar e prometer, que ele, Arnaldo Gracias, à fé de gardingo e descendente de fidalgos visigodos, de uma só palavra, de antes quebrar que torcer, havia afinal de pôr cobro a tamanha iniquidade.

Boas surriadas e espirituosos dichotes ia promovendo com tudo isso.

Morava não se sabia bem onde, alcandorado em qualquer pouso mais à mão, quase sempre repúblicas abarrotadas de estudantes, onde discutia ciências, artes, literatura, e lá se deixava ficar mais ou menos tempo, conforme o capricho, não se lhe dando absolutamente com a amabilidade ou os maus modos daqueles a quem dispensava a honra da sua convivência.

É que estabelecia logo incomodativo comunismo, e a aplicação desse sistema deveras modificava o prosear de intermináveis e acaloradas palestras, em que gastava tanto fluido vital. Com toda e sem cerimônia, tomava a roupa dos outros, vestindo camisas alheias, quer já servidas, e enfiando-se sem o menor escrúpulo nas calças e nos paletós, que encontrasse mais de jeito.

E por cima, se o apertavam mais seriamente apuros de dinheiro, não punha dúvida alguma em passar a mão nos livros dos que o hospedavam, levando velhas gramáticas, compêndios de matemáticas elementares, seletas latinas, ou até obras de preço, que truncava sem o mais leve embaraço de consciência, e ia vender a esses modestos belchiores, crismados com a alcunha bem feia de... cagacebos.

Costumava, entretanto, que incoerência! Esbravejar com sincero furor contra essa tímida classe, tão útil aos seus hábitos, e propunha uma Saint Bartelemi implacável, que extinguisse de vez a abominada raça.

— Há de chegar o dia, olé, se há de! Anunciava ameaçador. Tenho de olho uns cinco ou seis... Já os avisei... Esses ficam por minha conta... galegos todos – uma bela bainha de toucinho para a adaga dos meus avós!

No fundo, incapaz de matar um caçapo.


II

Tal era Arnaldo Gracias, por enquanto todo entregue à sua paixão pela nevrótica Júlia Candelária.

Entabulara-se o caso, estando ele de pousada na casa em comum de vários empregados de comércio, seus amigos íntimos dessa temporada, como era de meio mundo em certas quadras, segundo a veneta, pois não raro tinha também acessos de misantropia, e desaparecia, sem que ninguém pudesse atinar onde ia encafuar-se.

Metidos a aristocratas e moços de boa roda, habitavam os tais empregados do comércio nas Laranjeiras, perto do palacete Candelária.

Pano para mangas forneceu o público namoro de Gracias, estampando-lhe as gazetas quase que diários sonetos coruscantes, embora monótonos e impregnados de sentimento todo factício. O autor porém e alguns adeptos fervorosos os tinham em conta de indiscutíveis obras primas.

— É o Petrarca sul-americano, decidia um dos discípulos na arte boemia; assombroso, um abismo!

Não cabia pois Júlia em si de contente, dava escândalo, servindo-se das mucamas e dos molecotes da casa para, a cada momento, enviar cartas e fitinhas, pontas de cabelo e flores alegóricas, ou docezinhos e mais isto e mais aquilo, ao incansável trovador.

Teria, por cento, preferido mais elegância e plástica no seu porte, barba menos hirsuta, cabelos mais disciplinados e principalmente menos surrado um célebre sobretudo, de verão e inverno; mas enfim, com um bocadinho de exaltação muito senão pode transformar-se em qualidade estética.

— Que alma! Exclamava com entusiástico fervor, e que talento, quanta imaginação!

Num belo dia, lembrou-se de autorizar o nosso Gracias a ir pedir ao Comendador a sua mão — uma tentativa.

“Perigosa cartada, a que jogamos, dizia ela em carta, mas procurarei por todos os meios e com o maior jeito preparar o terreno. Terei coragem; conto com a sua resolução. Apresente-se afoitamente.”

E por aí ia, numas quatro longas páginas.

Gracias, que não guardava segredos com ninguém, e menos ainda com os amigos íntimos de ocasião, mostrou logo a carta aos companheiros de estadia.

Foi um só brado.

— Olhem o felizardo! Então vai meter-se em cobreira grossa, tornar-se do pá para a mão capitalista graúdo. Que proteção escancarada da sorte! Duzentos contos de pancada!

Quedou-se o nosso herói não pouco conturbado. Deveras a fortuna repentinamente lhe batia à porta, quando menos pensava em dinheiro? Então iam ter fim todas as misérias que curtira, ainda que o não preocupassem lá muito, mesmo nada?! Duzentos contos? Que faria de tanto dinheiro, de tantas notas de Tesouro Nacional?

Chegou a declarar muito seriamente que, mal entrasse no dote da menina, mandaria construir vasto hospício para cavalos e animais vagabundos, abandonados por doentes e imprestáveis.

— Palavra de honra, gritava, fustigando os móveis com muita força. A humanidade lhes deve isto. Depois, cuidarei de montar a minha grande revista. Preciso, desde logo, dignificar o dinheiro do galego.

E falava já com o entono de um milionário.

Em casa, porém, do Comendador, reinava muita agitação. A peito descoberto e com ares de irrevogável resolução, denunciara Júlia a paixão que a dominava, batera o pé, tivera uma série de fanicos, mas nada conseguia senão frequentes: “Ora bolas! Contenha-se menina!” “Tenha Paciência, estou já com noivo quase arranjado!” “Que maluca!” “Não seja tola”, “vá bugiar” e outras frases de invencível resistência, além de muitas descomposturas ao tal pelintra, que viera interpor-se entre pai e filha: “Um valdevinos; conheço-o muito: chupador de cerveja da rua do Ouvidor, batedor de carteira”, e mil outros deprimentes qualificativos, entre os quais voltava a cada passo o de “poeta d’água doce”.

De tudo foi logo informado Gracias, mas lá vinha a recomendação: “Não se importe; apresente-se em casa e peça a minha mão. Precisamos ter do nosso lado a razão. Papai gosta muito de mim mas lá a seu modo.

E tal a insistência que, numa tarde, ao escurecer, subiu o descendente dos guerreiros espanhóis, um tanto comovido, força é confessar, as escadas do Comendador Candelária, enfiado numa casaca emprestada que, por sinal, não lhe assentava nada. Logo se denunciava roupa de empréstimo. Casaca só? Qual, camisa, deste feita bem limpa, colete, gravata branca, calças, claque e luvas que segurava da mão despretensiosa elegância – jamais as poderia calçar. Fizera vir da loja botinas de verniz para essa entrevista decisiva.

— É o meu Covadonga, anunciara ele, vou entestar frente a frente com o sanguinário alarabe Alkamah. Pelas barbas dos Gracias, que não me mete medo o bronco Almoravide.

Recebeu-se o Candelária de cara muito amarrada, todo vermelho, quase apoplético. Como, porém, se prezava de muito bem educado – uma das suas manias — fê-lo sentar, empertigado, casmurro, deixou-o falar, expor ao que vinha.

Após breve hesitação, falou, falou o rapaz quase a perder o fôlego, legítima conferência, como se estivesse de posse da tribuna da Glória. Não poupou os excelentíssimos.

Afinal o velho o interrompeu, todo inchado de ira:

— Tudo isto é muito bom, declarou com solenidade de pessoa de finíssimo trato; mas o senhor, consinta-me a franqueza, não tem nem eira e está perdendo o seu tempo. A minha filha não é para os seus beiços.

— Tenho diante de mim o futuro, exclamou liricamente Gracias.

— Bom, bom, não admito conversas fiadas.

E levantou-se para não arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas intumescidas veias.

Quis o pretendente replicar.

— Basta, basta, meu rico senhor. Isto aqui não é ponto de bilontras. Queira retirar-se, quanto antes. Pão, pão, queijo, queijo! Por ali é o caminho da rua.

Portou-se Gracias com incontestável dignidade e calma.

— Pois bem, exclamou um tanto melodramático, retiro-me, Sr. Comendador, mas lavro solene protesto. Hei de vingar-me, espera pela pancada.

E descida a escada, ao chegar a soleira da porta, voltou-se, fez das mãos em côncavo sonoro porta-voz e atirou aos ares o mais formal desafio a todos os pais despóticos e da velha escola.

— Ó sujo! Ó pé de chumbo.

Em vibrante epístola, sem mesmo despir a casaca, contou logo à Júlia o resultado da desastrada conferência. “Fiquei, narrou ele, ofendido nos meus brios mais sensíveis e melindrosos. Tudo suportei por seu esse brutamente seu progenitor. Fora outro homem, e a esta hora estaria estrangulado, morto. Imagina quanto não sofri. Houve momentos em que supus perder a razão com o esforço que fiz por me conter e reprimir os marulhosos borbotões do meu sangue espanhol. Ainda estou pasmo de ter tido tamanha poder sobre tantos avós, que, do fundo das minhas entranhas, bradavam ululantes: “Vinga-te, mancebo; lembra-te de nós, não deixes que esse desalmado e vil português zombe de Aragão e Castela!”

E, mais por leviandade, do que de tenção feita, terminava propondo à amada imediata evasão daquela sinistra Bastilha: “Fujamos, dizia arrebatado, é preciso pores termo a tão intenso padecer. Tudo tem limites, a resignação, a Paciência, a cordura, é doce palomba, estrela do meu amor, vida da minha vida, etc., etc.”

“Fujamos”, foi a resposta, sem a menor vacilação.

E os dois trataram da pronta realização do temerário projeto.


III

Muniu-se, desde logo, Arnaldo Gracias de desabado sombrero e vasto manto espanhol, que misteriosamente arvorou, fizesse sol ou chuva, como símbolo de graves complicações e perigosas incidências, em sua vida, o que a não poucos comunicou, exigindo, porém, rigorosíssimo sigilo – questão de muito comprometimento.

Cuidou, em seguida, de lançar um empréstimo na praça do Rio de Janeiro, coisa, aliás, bem modesta, uns 200$, que, entretanto, não lhe foi fácil reunir, embora oferecesse aos emprestadores de profissão juros positivamente fabulosos. Enfim, já como favor pessoal, já como adiantamento para um livro a sair dos prelos e destinado a estrondosa aceitação – intitulado, ora Novos aspetos de crítica – ora A metempsicose é luz da ciência, ou então O eureka nas letras e nas artes – aos 5, 10 e 20$ pode arranjar a soma precisa para ajustar e aluguel de um carro de cocheira com cavalos pretos – velozes como o pampeiro, recomendara ele – ter um quarto melhor no Hotel dos Quatro Cantos – e outras despesas indispensáveis. Aos, criados, largas gorjetas prévias — era de obrigação no melindroso trecho.

Em poucos dias, tudo ficou minuciosamente combinado.

Com as liberdade de vida que tinha Júlia Candelária, nenhuma empresa difícil, aliás, e menos ainda de assombrar, o sair de casa pelo portão do jardim, das 9 ½ às 10 horas da noite, meter-se num carro à espera ali perto e... fouete cocher! Nas vésperas do grande dia, ou antes da noite fatídica, sentiu-se Gracias agitadíssimo. Não é graça, de certo, proceder-se ao rapto de uma menor, apatacada ou não. E esta ideia de dinheiro pungia até o nosso boêmio de modo especial. Havia momentos em que preferiras saber a amada paupérrima, filha de necessitados operários, a fim de tirar à ventura em que ia meter-se qualquer caráter de vil interesse, como, infalivelmente, não deixaria a malevolência de assoalhar, pérfida, viperina.

Além disto, por mais leviano e despreocupado que se seja, por menos que se pense, representavam esse feito e as imediatas consequências tem modificação de hábitos na sua existência livre e descuidosa, que, de vez em quando, lhe girava a cabeça como se fora a perder os sentidos.

Mal podia dormir e passava as noites a fumar cigarrinhos de palha, uns após outros, e a beber xícaras de café, concentrado, apesar das reclamações dos donos da casa.

— Você põe-se doido varrido com esta história de rapto, gritavam eles.

No dia então aprazado, não teve um momento de descanso o alvoroçado Gracias. Duas, três, dez, vinte vezes foi ao tatersal, repetiu as instruções, descreveu ao cocheiro aprazado os lugares, todas as particularidades do ponto de espera, fez dele seu confidente, gratificando-o com toda a antecedência. Do mesmo modo no Hotel dos Quatro Cantos.

A rua do Ouvidor percorreu-a febrilmente o dia todo. Aqui, ali, nas inúmeras e vertiginosas passadas, a consultar todos os relógios como se receasse perder a hora solene, foi ingerindo cálices e mais cálices de cognac, kisch e rum e xerez e mais isto e mais aquilo, em número de todo o ponto incalculável, capaz de encher de alto a baixo todo um obelisco egípcio, consagrado a dados estatísticos sobre consumo de líquidos.

E, entretanto, não dava sinal de ebriedade; a superexcitação nervosa o aguentava com valentia.

Não pôde jantar. Mal lambiscou umas guloseimas.

Também, à hora em que, encafuado no carro, se quedou à espreita da presa, à maneira de ardilosa aranha no centro da teia, não podia mais de cansaço, os membros todos alquebrados, numa lassidão inexprimível. Cochilava como um perdido e, embora quisesse impedir a conversa do cocheiro com um caixeirinho da venda próxima à casa do Comendador, não se mexia, a cabecear, tolhido, inerte, estatelado, ouvindo, contudo, palavras que deviam tê-lo sobressaltado: espera, rapto, moça de bairro...

Só despertou com a chegada de Júlia Candelária, toda de preto e envolvida em mantilha negra, mas muito senhora de si, alegre, satisfeitíssima da sua proeza. Não encontrara estorvo algum; não suscitara nenhuma desconfiança.

Soavam então 10 horas.

— Cocheiro, bradou Gracias saindo do seu torpor; toque para o ponto que já sabe... Um relâmpago!

E lá se foi em disparada o veículo pelas ruas já silenciosas, com ares de mistério muito chic, baixas as cortinas, fustigados valentemente os cavalos negros, encarregados de representar de pampeiro naquele dramático episódio.

Enfim... enfim... exclamou Gracias buscando chamar a si todo o entusiasmo das traições castelhanas, chegou a nossa hora... chegou... chegou...

Qual! sono invencível lhe prendeu a língua, fechou-lhe a boca com mão de ferro. Grande também o espanto de Júlia, que a pouco e pouco se mostrou amuada, ofendida, e afinal se encolheu mal humorada a um canto do carro.

Ao rápido balancear da tipoia sonhava o mísero com uma cama larga, macia, perfumada, irresistível, em que afinal tomava desforra completa das passadas insônias! Como era bom dormir, dormir a farta, refazer as forças perdidas, estender e desentesar os nervos e músculos, tantos e tantos dias contraídos, repuxados, hipertenisados! Não, deveras, nada vale um bom conchego, quando a gente tem sonos atrasados, nada se lhe compara!

De repente acordou.

Era o carro que parava, alcançado o Hotel dos Quatro Cantos.

E o criado à porta, gravibundo, ainda que revestido de certo ar de condescendência, esperava os dois pombinhos e os foi guiando com toda a discrição ao quarto preparado.

Fecheram-se.

Gracias, acabada a momentânea sacudidela da chegada, não compreendia mais onde estava, o que fazia. Tudo entrava no domínio do sonho. E não era que o via realizado? Como que lhe estirava amorosos braços uma cama, a puxá-lo com desapoderada atração na sua brancura, deslumbrante a olhos fáceis, bem duvidosa, entretanto, mau grado todas as recomendações mil vezes feitas. “Um ninho de cisnes!” pedira instante ao hoteleiro, gostando, mais que tudo, da frase.

Como, pois, não se deitar logo e logo a fio comprido? Como recusar-se a tão convidativos e suaves encantos? Impossível, superior a forças humanas... naquela emergência!

— Ao tálamo nupcial, balbuciou ele, Júlia... minha celeste Júlia!

E, dando o exemplo, tirou depressa as célebres botinas de verniz e, vestido como estava, embrulhado no manto espanhol, deixou-se ir, sem resistência, a um sono de chumbo, acabrunhador, inelutável. Dali a nada ressonava como um bem-aventurado.

Estava a imprudente Júlia positivamente atônita, terrificada. Que significava tudo aquilo?

Lembrou-se de gritar, de pedir socorro, bater nas paredes, mas não pode, sentia-se paralisada ao menor movimento, sem voz, sem ação.

Deixou-se cair, envolvida em sua mantilha negra, apatizada, longo tempo, talvez horas, sem saber o que seria dela. Olhava sem ver para o singular raptor, cujo corpo, à luz da mortiça stearina, se lhe afigurava simplesmente o de algum bicho monstruoso, repugnante; e lágrimas compridas desfiavam-lhe amargas pela faces afogueadas.

Nem de propósito, numa sala próxima, entre grandes berreiros, terminava-se uma ceia com proporções orgiáticas, e os gritos descompassados de homens e mulheres, o espocar estrepitoso do champagne, as saúdes, os hips e hurrhas, lhe imprimiam ao sistema nervoso contrachoques elétricos, que a punham quase louca.

A pouco e pouco, porém, se iam acalmando e esbatendo todos os barulhos da rua, e múltiplos ruídos do hotel, quando a desventurada verificou, transida de horror, que a vela breve se extinguiria. Como, às escuras, em tão pavorosas circunstâncias? Se aquele homem passasse do sono à morte?

E esta ideia tanto a aterrou, que, fazendo heroico esforço sobre si mesma, procurou na maior ansiedade e por toda a parte meios de prolongar a claridade, prestes a sumir-se.

Foi-lhe de grata impressão encontrar na gaveta do lavatório um pacote de falsificado Clichi.

— Enfim! Não pode deixar de exclamar.

Recuperando algum alento, depois de reformar a vela, achegou-se a Gracias e chamou-o a princípio com meiguice e bem baixinho, depois com força, impaciência e raiva.

— Arnaldo... Arnaldo, estou com medo... acorda! Sr. Arnaldo... acorde!...

Mal se mexeu o desastrado. Ergueu, num gesto inconsciente, as mãos imensas, que puseram temerosas sombras na parede, e murmurou:

— Conversaremos amanhã... temos... muito tempo.

Desanimou Júlia de vez, instintivamente ofendida.

Enfim, não ficaria às escuras, não era pouco; acendeu até duas velas mais, e, de volta à sua cadeira de braços, com a maior intensidade de luz, contemplou espaçadamente aquele novo Endimion, presa de inquebrável dormir, o ideal do seu romance, o pomo de discórdia com o seu velho pai, tão bom, pronto sempre a lhe fazer todas as vontades, o causador da sua vergonha e irremediável desgraça.

Pois deveras era aquilo?! Que nariz ridiculamente arrebitado, que barbas de piaçava, que cabelos e que tez esverdeadas, baça! E a grotesca saliência dos olhos por baixo das pálpebras inchadas? E as sobrancelhas em matagal, unidas como sombria e fatídica linha? Santo Deus, que pés colossais, metidos em meias de branquidão negativa!

Que seria dela, perdida para todo sempre, depois de tamanho escândalo, travados a sua existência inteira, o seu futuro, com o desse sedutor impossível?!

E de novo chorou copiosamente quando a madrugada já vinha colorindo de rosicler uns pontos do espaço, anunciada pelo estridulo grito dos galhos matutinos.

Sorria-se todo feliz Gracias na sua beatitude de largo repouso afinal conquistado; mas nem por isto se mostrava menos feio e repulsivo, pelo contrário. Ah! quanto arrependimento, que intenso vexame, no peito de Júlia! Que acerbas reflexões! Que horas ainda! Que anelo, para que aquela noite acabasse e ao mesmo tempo nunca pudesse ter fim, nunca, durasse eternamente.

Afinal, vencida por mortal fadiga e indizível angústia, pegou também no sono, na tal cadeira de balanço.


IV 

Foi a triste e mesquinha heroína acordada em sobressalto por enorme barulho. De todos os lados inundava o quarto sol alegre, triunfante; deviam ser 8 horas da manhã.

Batiam à porta com desabalada violência, iam arrombá-la.

Gracias nem se mexeu.

Júlia Candelária fez um esforço e, arrastando-se deu volta à chave.

Atiraram-se sôfregos para dentro em bolo o Comendador, o delegado de polícia, soldados e curiosos. Frutificara a palestra de véspera do indiscreto automedonte, pondo a autoridade na pista imediata e certa dos fugidinhos.

Dominando a imensa conturbação, viu a moça afinal a salvação. Agarrou-se ao pai que, em vão, buscou repeli-la.

— Juro, exclamou ela bem alto e com acento de irrecusável verdade, que passei a noite toda naquela cadeira de braços. Não me acabrunhe mais com a sua justa cólera, meu pai... meu bom pai... minha proteção única nesta terra de misérias. Tenha pena de mim, da sua filha tão infeliz! Fui... muito, muito culpada... mas salvei-me...

E com tudo isso Gracias nem se mexia.

Afinal sacudiu-o umas três ou quatro vezes o delegado com energia por um braço, e o homem... despertou.

— Bom, disse ele com relativa calma, esbugalhando quanto pode os estremunhados olhos, temos agora histórias com a senhora polícia... era infalível!

E, sentando-se na cama, pegou com as mãos os pés em atitude de quem estava disposto a encetar conversa familiar e entrar em acordo amigável.

Fossem razoáveis, era só o que pedia.

Não mostrava maior abalo.

— Aliás, continuou já um tanto altivo, acatei esta donzela como se fora minha irmã. Ela que o diga... Sei portar-me como cavalheiro. Raptei-a, para que o Comendador, aqui presente e que me merece estima e consideração, consentisse na eterna união de dois corações leais, que se estremecem loucamente e anseiam um pelo outro!...

Júlia soluçava como uma perdida.

— Que vergonha! Que vergonha!... Como é que se não morre nestes casos?

Candelária mostrava-se muito abatido.

— Deveras, minha... filha? pode ele a custo perguntar.

Teve a moça uma arrancada de desespero e indignação.

— Casar-me com esse homem bradou estancando de súbito o angustioso chorar, antes a morte, mil vezes antes, na forca, diante do mundo inteiro!

E, numa explosão de bem sincera dor, implorou humilde e meiga:

— Tenha dó, meu pai, da sua desgraçada filha... Leve-me daqui já e já... Sofro como jamais pude imaginar sofrer!... Nada lhe ocultarei!... Nunca mais lhe hei de desobedecer, mas vamo-nos embora... perdão, perdão.

Quinze dias depois, e muito à capucha, efetuou-se o casamento de Júlia Candelária, com o desempenado rapagão que o Comendador tinha desde muito de olho, conforme avisara a filha.

Partiram os ditosos noivos sem demora para a Europa, e, de certo, não acharam motivo algum de estranheza e queixa um em relação ao outro. Fora, ainda mais, o dote duplicado, acima de toda a expectação...

Quanto a Arnaldo Gracias, continuou na sua existência desorientada e solta, cada vez mais boemia e mais satisfeito consigo mesmo.

Toda uma epopeia aquele momento psíquico da turbulenta vida!

Pudera, qual outro arcanjo São Rafael conculcando aos pés o truculento Belzebu, subjugar vitorioso a animalidade feroz e bramante, amordaçar a turgidez da desencadeada luxúria, agrilhoar pela inacreditável possança do idealismo as tremendas e leoninas investidas da matéria, e arcar, braço a braço, peito contra peito, em esforço titânico, com os ímpetos vorazes da volúpia, tudo para quedar-se imóvel de joelhos, em êxtase de mística homenagem, puro, continente, sem pecha, na mais adorável e santa vigília de amor e de respeito, ante o símbolo da paixão etérea, seráfica, lírio virginal, a flor sublime, que saíra de tão extraordinária prova imaculada, impoluta, intemerata, adamantina, realçado o brilho ofuscador da incomparável confiança, candidez e castidade!

E com todos esses elementos da mais inspiradora subjetividade, em menos de meia hora e entre dois cálices de cognac, compôs, sublimando a virtude própria e o seu heroísmo, esplêndido soneto nuns sonoros alexandrinos, muito citados depois, e que, nos grêmios literários da mocidade, provocavam sempre aplausos de fremente entusiasmo e enternecida admiração.

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