Rapto original
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Namoravam-se a valer, de uns meses atrás; a vizinhança sabia de
tudo, acompanhava curiosa, acesa, as peripécias do derriço e tomava bons
rega-bofes.
Ela, muito nevrótica, atirada a romantismos, exaltada, amiga de
leituras violentas, fin de siécle,
tocando piano de modo quase notável e gostando de despertar, alta noite, o
bairro com a valentia dos acordes que deferia, nem bonita, nem feia, com esse
viço da primeira mocidade que os italianos espirituosamente apelidam la beltá del’ásino, vivendo uma atmosfera
de perfumes entontecedores, exóticos, acre, a sofrer, quase todos os dias, de
enxaquecas, que a levavam a abusar da antipirina e lhe davam desejos ardentes
de se morfinizar, para cair em longos torpores e fruir sonhos paradisíacos.
Filha única de antigo negociante, retirado rico do comércio, o
Comendador Jacinto Candelária fazia as suas quatro mil vontades, criada, como
fora, sem mãe, e no meio de numerosas mucamas, que beliscava forte, nos dias de
mau humor e mais nervosismo. Num só ponto, contudo, e ponto capital,
desenvolvia o pai todas as energias de português teimoso e embezerrado.
Significara à filha, desde em menina, e incessantemente lho repetia, que só ele
é que havia de casá-la. Tivesse Paciência e sobretudo confiança, pois lhe daria
para noivo, não nenhum velho ou qualquer figura estapafúrdia, porém sim rapaz
novo, sacudido, de boa presença, latagão de peso e medida, mas que oferecesse,
depois de cuidadosas provas, garantias seguras para torná-la feliz no correr da
existência.
Também soubera o zelo paterno arredar já não poucos pintalegretes
– uma súcia de bilontras! Berrava possesso o Comendador, — alguns patrícios
até, que lhe rondavam a casa, ou melhor, palacete das Laranjeiras, atraídos
pelos dotes da rapariga, entre os quais sobressaía, mais que os seus olhos e
apimentado donaire ou o talento do piano, o dote antenupcial, de que diziam
maravilhas.
— De duzentos contos para cima, era voz geral, e logo de pancada,
antes de se agadanhar, por morte do velho, cobre muito grosso.
Estava, pois, a moça, entre dores de cabeça, noturnos ao
piano, bocejos e manifestações histéricas, cada vez mais acentuadas, esperando
o pretendente patent, garantido pelo
governo paternal, quando ferrou nesse namoro muito cerrado e sério – pois os
pequenos à janela não contavam – com o Arnaldo Gracias.
Gracias ou Garcia? Não, senhores, Gracias, no plural – disso fazia questão – ele, proprietário único
do nome. Zangava-se deveras, ou fingia zangar-se, ao lhe não transporem,
principalmente, o tal r característico,
que a todos causava tamanha estranheza.
Boêmio aliás, até a medula dos ossos.
Dotado de muito chiste natural, talentoso, com estupendo poder de
assimilação, sabendo tudo, e no fundo ignorante chapado, verboso, e mais que
isso eloquente, com uma frase viva, faiscante, imaginosa, colorida,
entressachada de tropos, verdadeiro fogo de artifício, em que, se havia muita
fumaceira, fuzilavam, por vezes, alguns clarões.
Tinha a mania de inventar palavras, locuções; e algumas entravam
logo em circulação. Fora quem pusera em giro o estrambótico de quando em vez, tão em moda por algum
tempo no Rio de Janeiro.
— Não me banalizem o
nome, costumava gritar nos cafés, batendo com a bengalinha de junco no mármore
das mesas, Gracias... Gracias; com
mil milhões de diabos! Não sou qualquer Garcia da venda ou da botica. Descendo
de guerreiros espanhóis que costearam de rijo os mouros, os infiéis. Atendam
bem, tenho que zelar tradições, coisas até de religião.
E nas rodas de estudantes, que aplaudiam e chasqueavam, lá vinham
vibrantes narrações das batalhas com a mourama, em que se haviam ilustrado os
primitivos Gracias.
E tanto era o fogo que a tudo punha, como se assistira às
tremendas pelejas, pelo que, não raro, palmas rompiam, sinceras, espontâneas.
A todo o instante, contava histórias do arco da velha, sua vida em
Paris, seus triunfos no Quartier latin.
Fora até amigo de Théophile Gautier, a eterna criança, o poeta genial, o
estilista impecável, e, com efeito, parecia haver tomado ao mestre e
companheiro de troças algumas centelhas do maravilhoso poder descritivo.
Carioca da gema, e votando certa ojeriza à gente nortista – “são
trêfegos, invejosos, proclamava sem apelação possível – tinha como obrigatório
o ódio ao burguês em geral.
— Miseráveis! Exclamava com indignação repassada de desprezo; corriqueiraram-me o sublime Shakespeare!
Babujaram-me de ignóbil baba o imenso Dante! Canalhas! Entrego-lhes o Inferno e o Purgatório, já que não há,
aos defesa possível; mas, com mil bombardas e pelas cinzas dos meus avós, o Paraíso é meu. Hei de zelar-lhe a
alvinitente pureza, custe o que custar, até a morte. Não consinto que nele
toquem!...
E olhava para todos com ares de quem acabara de receber a sagrada
herança por testamento do imenso Dante, com recomendações expressas acerca dessa
parte da Divina Comédia.
Lera ele jamais esse Paraíso,
por que quebrava tantas lanças, o Purgatório
ou simplesmente o Inferno? Nunca se
soube.
Buscando abrigo, em refúgios extremos do gosto e da originalidade,
ainda não conspurcados pelo torpe vulgo, entranhara-se, como um perseguido
pelas literaturas do Norte e citava com pasmosa profusão os nomes mais
arrevesados, apregoando, dos primeiros nos círculos da rua do Ouvidor,
Dostoievski, Pissenski, Arne Garborg, Ibsen, Bjoenstierne, Bjoernson, Ostrowski,
Hastzembusch, Ocienxdloeger e outros de igual calibre.
Alto, magro, muito claro, com o olhar meio empanado sobre
pálpebras empapuçadas, cabelos em contínuo desalinho, barba espetada
perpendicularmente ao queixo, distinguia-se, mais que tudo, por pés e mãos
enormes. Calçava Clark 43 e luvas, letra... não; luvas era superfluidade de que
nunca usara. Em compensação, movia essas mãos em gestos contínuos, ora largos,
calmos e generosos, ora frenéticos, raivosos, ameaçadores, de quem ia derrear
meio mundo, com pancada de moer ossos.
Vivia ao Deus dará, sempre em vésperas de estrondosa colocação, já
em alguma das secretarias de Estado, onde distribuiria o santo e a senha,
introduzindo reformas estupendas de mais apurado cunho literário na feitura das
peças oficiais, já a frente de uma publicação periódica que havia
impreterivelmente de desbancar a
Revista dos
Dois Mundos – nada menos.
— Vocês verão, anunciava exaltado, convicto, como ponho de pernas
para o ar o tal Buloz e toda a sua igrejinha carrança, pedantesca e jesuítica.
Será o protesto do mundo pensante contra aquela ridícula camarinha, que
pretende avassalar o intelecto universal. Preparem-se para estourar de tanta
gargalhada!
Por enquanto, porém, nem
emprego de secretaria, nem revista. Passava os dias a pedir emprestadas a amigos e conhecidos umas
miseráveis quantias, que considerava favor ir embolsando; hóspede dias, semanas
ou meses seguidos, aqui, acolá; excelente rapaz no fundo, divertido, serviçal e
meigo, em meio de todas as bravatas e objurgações.
Sempre pronto para a pandega. Lá isso, contassem com ele; era dos
fiéis, dos inabaláveis. Com a breca, até em patuscadas há deveres a cumprir.
Demais, a vida foi feita para desobrigar-se com honra e pontualidade dos
compromissos tomados; curta e boa – a sua divisa.
E desfiava umas 8 a
10 horas inteirinhas do dia na rua do Ouvidor que, percorria do largo de São
Francisco à ria Primeiro de Março quinze ou vinte vezes, ora às carreiras como
homem atarefadíssimo e que não podia perder um minuto. Ora parando em cada
botequim e nele chuchurreando café, licores, cognac, leite, sorvetes, sem absintosinho não raro, e quantos
líquido, inocentes ou não, todos de bom grado lhe ofereciam. Pagava tudo com o
seu verbo inflamado, multiforme, incansável, já contando anedotas picarescas,
engraçadíssimas, já vociferando, sempre em oposição violenta contra os homens
do poder; hoje niilista, comunista, anarquista, amanhã autocrático, déspota
feroz na desapiedada repressão e no ilimitado rigorismo, tudo com inabalável
convicção e grandes luzes de argumentos.
À noite, teatros, onde achava sempre meios de encaixar-se, sem
jamais se entender com o bilheteiro. E, nos entreatos, eram intermináveis
catilinárias à propósito da decadência da arte dramática e dos costumes
públicos, adubada a preleção com olhares de indignação menosprezo às petulantes
francesas e raparigas que por ali se exibiam espevitadas, provocadoras.
Ocasiões, porém, havia em que com elas confabulava graciosamente.
— Boas criaturas em suma, estas michelas e marafonas, dizia com um
sorriso buenacho, o que não impedia de declarar-se discípulo intransigente de
Shopenhauer e de pregar inflexível cruzada contra o eterno feminino, a perdição do homem, o seu instrumento de
degradação e insanável vilania.
— Tirem-me a mulher do mundo, urrava já muito escaldado com os bocks de cerveja e copinhos de cognac fine champagne, e faço de todos os homens deuses, estes
supernaturais!
Davam-se épocas, entretanto, em que, de viseira alçada, com muita
nobreza, relembrando o cavalheirismo castelhano, se batia em prol do sexo
fraco, vítima e mártir da prepotência do forte, secularmente tirânico e
maldoso, brutal e egoísta. Nessa quadra de reinvidicação, exigia. Em nome da
justiça ultrajada, que a natureza repartisse com igualdade os gravames da
reprodução da espécie.
Bradava então imperioso:
— Uma vez a esposa, outra o marido. Os tais senhores que
experimentem o que é bom. Quero vê-los grávidos!
E com toda a seriedade chegava a afirmar e prometer, que ele,
Arnaldo Gracias, à fé de gardingo e descendente de fidalgos visigodos, de uma
só palavra, de antes quebrar que torcer, havia afinal de pôr cobro a tamanha
iniquidade.
Boas surriadas e espirituosos dichotes ia promovendo com tudo
isso.
Morava não se sabia bem onde, alcandorado em qualquer pouso mais à
mão, quase sempre repúblicas
abarrotadas de estudantes, onde discutia ciências, artes, literatura, e lá se
deixava ficar mais ou menos tempo, conforme o capricho, não se lhe dando
absolutamente com a amabilidade ou os maus modos daqueles a quem dispensava a
honra da sua convivência.
É que estabelecia logo incomodativo comunismo, e a aplicação desse
sistema deveras modificava o prosear de intermináveis e acaloradas palestras,
em que gastava tanto fluido vital. Com toda e sem cerimônia, tomava a roupa dos
outros, vestindo camisas alheias, quer já servidas, e enfiando-se sem o menor
escrúpulo nas calças e nos paletós, que encontrasse mais de jeito.
E por cima, se o apertavam mais seriamente apuros de dinheiro, não
punha dúvida alguma em passar a mão nos livros dos que o hospedavam, levando
velhas gramáticas, compêndios de matemáticas elementares, seletas latinas, ou
até obras de preço, que truncava sem o mais leve embaraço de consciência, e ia
vender a esses modestos belchiores, crismados com a alcunha bem feia de... cagacebos.
Costumava, entretanto, que incoerência! Esbravejar com sincero
furor contra essa tímida classe, tão útil aos seus hábitos, e propunha uma
Saint Bartelemi implacável, que extinguisse de vez a abominada raça.
— Há de chegar o dia, olé, se há de! Anunciava ameaçador. Tenho de
olho uns cinco ou seis... Já os avisei... Esses ficam por minha conta...
galegos todos – uma bela bainha de toucinho para a adaga dos meus avós!
No fundo, incapaz de matar um caçapo.
II
Tal era Arnaldo Gracias, por enquanto todo entregue à sua paixão
pela nevrótica Júlia Candelária.
Entabulara-se o caso, estando ele de pousada na casa em comum de
vários empregados de comércio, seus amigos íntimos dessa temporada, como era de
meio mundo em certas quadras, segundo a veneta, pois não raro tinha também
acessos de misantropia, e desaparecia, sem que ninguém pudesse atinar onde ia
encafuar-se.
Metidos a aristocratas e moços de boa roda, habitavam os tais
empregados do comércio nas Laranjeiras, perto do palacete Candelária.
Pano para mangas forneceu o público
namoro de Gracias, estampando-lhe as gazetas quase que diários sonetos
coruscantes, embora monótonos e impregnados de sentimento todo factício. O
autor porém e alguns adeptos fervorosos os tinham em conta de indiscutíveis
obras primas.
— É o Petrarca sul-americano, decidia um dos discípulos na arte
boemia; assombroso, um abismo!
Não cabia pois Júlia em si de contente, dava escândalo,
servindo-se das mucamas e dos molecotes da casa para, a cada momento, enviar
cartas e fitinhas, pontas de cabelo e flores alegóricas, ou docezinhos e mais
isto e mais aquilo, ao incansável trovador.
Teria, por cento, preferido mais elegância e plástica no seu
porte, barba menos hirsuta, cabelos mais disciplinados e principalmente menos
surrado um célebre sobretudo, de verão e inverno; mas enfim, com um bocadinho
de exaltação muito senão pode transformar-se em qualidade estética.
— Que alma! Exclamava com entusiástico fervor, e que talento,
quanta imaginação!
Num belo dia, lembrou-se de autorizar o nosso Gracias a ir pedir
ao Comendador a sua mão — uma tentativa.
“Perigosa cartada, a que jogamos, dizia ela em carta, mas
procurarei por todos os meios e com o maior jeito preparar o terreno. Terei
coragem; conto com a sua resolução. Apresente-se afoitamente.”
E por aí ia, numas quatro longas páginas.
Gracias, que não guardava segredos com ninguém, e menos ainda com
os amigos íntimos de ocasião, mostrou logo a carta aos companheiros de estadia.
Foi um só brado.
— Olhem o felizardo! Então vai meter-se em cobreira grossa,
tornar-se do pá para a mão capitalista graúdo. Que proteção escancarada da
sorte! Duzentos contos de pancada!
Quedou-se o nosso herói não pouco conturbado. Deveras a fortuna
repentinamente lhe batia à porta, quando menos pensava em dinheiro? Então iam
ter fim todas as misérias que curtira, ainda que o não preocupassem lá muito,
mesmo nada?! Duzentos contos? Que faria de tanto dinheiro, de tantas notas de
Tesouro Nacional?
Chegou a declarar muito seriamente que, mal entrasse no dote da
menina, mandaria construir vasto hospício para cavalos e animais vagabundos,
abandonados por doentes e imprestáveis.
— Palavra de honra, gritava, fustigando os móveis com muita força.
A humanidade lhes deve isto. Depois, cuidarei de montar a minha grande revista.
Preciso, desde logo, dignificar o dinheiro do galego.
E falava já com o entono de um milionário.
Em casa, porém, do Comendador, reinava muita agitação. A peito
descoberto e com ares de irrevogável resolução, denunciara Júlia a paixão que a
dominava, batera o pé, tivera uma série de fanicos, mas nada conseguia senão
frequentes: “Ora bolas! Contenha-se menina!” “Tenha Paciência, estou já com
noivo quase arranjado!” “Que maluca!” “Não seja tola”, “vá bugiar” e outras
frases de invencível resistência, além de muitas descomposturas ao tal
pelintra, que viera interpor-se entre pai e filha: “Um valdevinos; conheço-o
muito: chupador de cerveja da rua do Ouvidor, batedor de carteira”, e mil
outros deprimentes qualificativos, entre os quais voltava a cada passo o de
“poeta d’água doce”.
De tudo foi logo informado Gracias, mas lá vinha a recomendação:
“Não se importe; apresente-se em casa e peça a minha mão. Precisamos ter do
nosso lado a razão. Papai gosta muito de mim mas lá a seu modo.
E tal a insistência que, numa tarde, ao escurecer, subiu o
descendente dos guerreiros espanhóis, um tanto comovido, força é confessar, as
escadas do Comendador Candelária, enfiado numa casaca emprestada que, por
sinal, não lhe assentava nada. Logo se denunciava roupa de empréstimo. Casaca
só? Qual, camisa, deste feita bem limpa, colete, gravata branca, calças, claque e luvas que segurava da mão
despretensiosa elegância – jamais as poderia calçar. Fizera vir da loja botinas
de verniz para essa entrevista decisiva.
— É o meu Covadonga, anunciara ele, vou entestar frente a frente
com o sanguinário alarabe Alkamah. Pelas barbas dos Gracias, que não me mete
medo o bronco Almoravide.
Recebeu-se o Candelária de cara muito amarrada, todo vermelho,
quase apoplético. Como, porém, se prezava de muito bem educado – uma das suas
manias — fê-lo sentar, empertigado, casmurro, deixou-o falar, expor ao que
vinha.
Após breve hesitação, falou, falou o rapaz quase a perder o
fôlego, legítima conferência, como se estivesse de posse da tribuna da Glória.
Não poupou os excelentíssimos.
Afinal o velho o interrompeu, todo inchado de ira:
— Tudo isto é muito bom, declarou com solenidade de pessoa de
finíssimo trato; mas o senhor, consinta-me a franqueza, não tem nem eira e está
perdendo o seu tempo. A minha filha não é para os seus beiços.
— Tenho diante de mim o futuro, exclamou liricamente Gracias.
— Bom, bom, não admito conversas fiadas.
E levantou-se para não arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas
intumescidas veias.
Quis o pretendente replicar.
— Basta, basta, meu rico senhor. Isto aqui não é ponto de
bilontras. Queira retirar-se, quanto antes. Pão, pão, queijo, queijo! Por ali é
o caminho da rua.
Portou-se Gracias com incontestável dignidade e calma.
— Pois bem, exclamou um tanto melodramático, retiro-me, Sr.
Comendador, mas lavro solene protesto. Hei de vingar-me, espera pela pancada.
E descida a escada, ao chegar a soleira da porta, voltou-se, fez
das mãos em côncavo sonoro porta-voz e atirou aos ares o mais formal desafio a
todos os pais despóticos e da velha escola.
— Ó sujo! Ó pé de chumbo.
Em vibrante epístola, sem mesmo despir a casaca, contou logo à
Júlia o resultado da desastrada conferência. “Fiquei, narrou ele, ofendido nos
meus brios mais sensíveis e melindrosos. Tudo suportei por seu esse brutamente
seu progenitor. Fora outro homem, e a esta hora estaria estrangulado, morto.
Imagina quanto não sofri. Houve momentos em que supus perder a razão com o
esforço que fiz por me conter e reprimir os marulhosos borbotões do meu sangue
espanhol. Ainda estou pasmo de ter tido tamanha poder sobre tantos avós, que,
do fundo das minhas entranhas, bradavam ululantes: “Vinga-te, mancebo;
lembra-te de nós, não deixes que esse desalmado e vil português zombe de Aragão
e Castela!”
E, mais por leviandade, do que de tenção feita, terminava propondo
à amada imediata evasão daquela sinistra Bastilha: “Fujamos, dizia arrebatado,
é preciso pores termo a tão intenso padecer. Tudo tem limites, a resignação, a
Paciência, a cordura, é doce palomba, estrela do meu amor, vida da minha vida,
etc., etc.”
“Fujamos”, foi a resposta, sem a menor vacilação.
E os dois trataram da pronta realização do temerário projeto.
III
Muniu-se, desde logo, Arnaldo Gracias de desabado sombrero e vasto manto espanhol, que
misteriosamente arvorou, fizesse sol ou chuva, como símbolo de graves
complicações e perigosas incidências, em sua vida, o que a não poucos
comunicou, exigindo, porém, rigorosíssimo sigilo – questão de muito comprometimento.
Cuidou, em seguida, de lançar um empréstimo na praça do Rio de
Janeiro, coisa, aliás, bem modesta, uns 200$, que, entretanto, não lhe foi
fácil reunir, embora oferecesse aos emprestadores de profissão juros
positivamente fabulosos. Enfim, já como favor pessoal, já como adiantamento
para um livro a sair dos prelos e destinado a estrondosa aceitação –
intitulado, ora Novos aspetos de crítica
– ora A metempsicose é luz da ciência, ou então O eureka nas letras e nas artes – aos 5,
10 e 20$ pode arranjar a soma precisa para ajustar e aluguel de um carro de
cocheira com cavalos pretos – velozes como o pampeiro, recomendara ele – ter um
quarto melhor no Hotel dos Quatro Cantos
– e outras despesas indispensáveis. Aos, criados, largas gorjetas prévias — era
de obrigação no melindroso trecho.
Em poucos dias, tudo ficou minuciosamente combinado.
Com as liberdade de vida que tinha Júlia Candelária, nenhuma
empresa difícil, aliás, e menos ainda de assombrar, o sair de casa pelo portão
do jardim, das 9 ½ às 10 horas da noite, meter-se num carro à espera ali perto
e... fouete cocher! Nas vésperas do
grande dia, ou antes da noite fatídica, sentiu-se Gracias agitadíssimo. Não é
graça, de certo, proceder-se ao rapto de uma menor, apatacada ou não. E esta
ideia de dinheiro pungia até o nosso boêmio de modo especial. Havia momentos em
que preferiras saber a amada paupérrima, filha de necessitados operários, a fim
de tirar à ventura em que ia meter-se qualquer caráter de vil interesse, como,
infalivelmente, não deixaria a malevolência de assoalhar, pérfida, viperina.
Além disto, por mais leviano e despreocupado que se seja, por
menos que se pense, representavam esse feito e as imediatas consequências tem
modificação de hábitos na sua existência livre e descuidosa, que, de vez em
quando, lhe girava a cabeça como se fora a perder os sentidos.
Mal podia dormir e passava as noites a fumar cigarrinhos de palha,
uns após outros, e a beber xícaras de café, concentrado, apesar das reclamações
dos donos da casa.
— Você põe-se doido varrido com esta história de rapto, gritavam
eles.
No dia então aprazado, não teve um momento de descanso o
alvoroçado Gracias. Duas, três, dez, vinte vezes foi ao tatersal, repetiu as instruções, descreveu ao cocheiro aprazado os
lugares, todas as particularidades do ponto de espera, fez dele seu confidente,
gratificando-o com toda a antecedência. Do mesmo modo no Hotel dos Quatro Cantos.
A rua do Ouvidor percorreu-a febrilmente o dia todo. Aqui, ali,
nas inúmeras e vertiginosas passadas, a consultar todos os relógios como se
receasse perder a hora solene, foi ingerindo cálices e mais cálices de cognac, kisch e rum e xerez e mais isto e mais aquilo, em número de todo o
ponto incalculável, capaz de encher de alto a baixo todo um obelisco egípcio,
consagrado a dados estatísticos sobre consumo de líquidos.
E, entretanto, não dava sinal de ebriedade; a superexcitação
nervosa o aguentava com valentia.
Não pôde jantar. Mal lambiscou umas guloseimas.
Também, à hora em que, encafuado no carro, se quedou à espreita da
presa, à maneira de ardilosa aranha no centro da teia, não podia mais de
cansaço, os membros todos alquebrados, numa lassidão inexprimível. Cochilava
como um perdido e, embora quisesse impedir a conversa do cocheiro com um
caixeirinho da venda próxima à casa do Comendador, não se mexia, a cabecear,
tolhido, inerte, estatelado, ouvindo, contudo, palavras que deviam tê-lo
sobressaltado: espera, rapto, moça de bairro...
Só despertou com a chegada de Júlia Candelária, toda de preto e
envolvida em mantilha negra, mas muito senhora de si, alegre, satisfeitíssima
da sua proeza. Não encontrara estorvo algum; não suscitara nenhuma
desconfiança.
Soavam então 10 horas.
— Cocheiro, bradou Gracias saindo do seu torpor; toque para o
ponto que já sabe... Um relâmpago!
E lá se foi em disparada o veículo pelas ruas já silenciosas, com
ares de mistério muito chic, baixas
as cortinas, fustigados valentemente os cavalos negros, encarregados de
representar de pampeiro naquele dramático episódio.
Enfim... enfim... exclamou Gracias
buscando chamar a si todo o entusiasmo das traições castelhanas, chegou a nossa
hora... chegou... chegou...
Qual! sono invencível lhe prendeu a língua, fechou-lhe a boca com
mão de ferro. Grande também o espanto de Júlia, que a pouco e pouco se mostrou
amuada, ofendida, e afinal se encolheu mal humorada a um canto do carro.
Ao rápido balancear da tipoia sonhava o mísero com uma cama larga,
macia, perfumada, irresistível, em que afinal tomava desforra completa das
passadas insônias! Como era bom dormir, dormir a farta, refazer as forças
perdidas, estender e desentesar os nervos e músculos, tantos e tantos dias
contraídos, repuxados, hipertenisados! Não,
deveras, nada vale um bom conchego, quando a gente tem sonos atrasados, nada se
lhe compara!
De repente acordou.
Era o carro que parava, alcançado o Hotel dos Quatro Cantos.
E o criado à porta, gravibundo, ainda que revestido de certo ar de
condescendência, esperava os dois pombinhos e os foi guiando com toda a
discrição ao quarto preparado.
Fecheram-se.
Gracias, acabada a momentânea sacudidela da chegada, não
compreendia mais onde estava, o que fazia. Tudo entrava no domínio do sonho. E
não era que o via realizado? Como que lhe estirava amorosos braços uma cama, a
puxá-lo com desapoderada atração na sua brancura, deslumbrante a olhos fáceis,
bem duvidosa, entretanto, mau grado todas as recomendações mil vezes feitas.
“Um ninho de cisnes!” pedira instante ao hoteleiro, gostando, mais que tudo, da
frase.
Como, pois, não se deitar logo e logo a fio comprido? Como
recusar-se a tão convidativos e suaves encantos? Impossível, superior a forças
humanas... naquela emergência!
— Ao tálamo nupcial, balbuciou ele, Júlia... minha celeste Júlia!
E, dando o exemplo, tirou depressa as célebres botinas de verniz
e, vestido como estava, embrulhado no manto espanhol, deixou-se ir, sem
resistência, a um sono de chumbo, acabrunhador, inelutável. Dali a nada
ressonava como um bem-aventurado.
Estava a imprudente Júlia positivamente atônita, terrificada. Que
significava tudo aquilo?
Lembrou-se de gritar, de pedir socorro, bater nas paredes, mas não
pode, sentia-se paralisada ao menor movimento, sem voz, sem ação.
Deixou-se cair, envolvida em sua mantilha negra, apatizada, longo
tempo, talvez horas, sem saber o que seria dela. Olhava sem ver para o singular
raptor, cujo corpo, à luz da mortiça stearina, se lhe afigurava simplesmente o
de algum bicho monstruoso, repugnante; e lágrimas compridas desfiavam-lhe
amargas pela faces afogueadas.
Nem de propósito, numa sala próxima, entre grandes berreiros,
terminava-se uma ceia com proporções orgiáticas, e os gritos descompassados de
homens e mulheres, o espocar estrepitoso do champagne,
as saúdes, os hips e hurrhas, lhe imprimiam ao sistema
nervoso contrachoques elétricos, que a punham quase louca.
A pouco e pouco, porém, se iam acalmando e esbatendo todos os
barulhos da rua, e múltiplos ruídos do hotel, quando a desventurada verificou,
transida de horror, que a vela breve se extinguiria. Como, às escuras, em tão
pavorosas circunstâncias? Se aquele homem passasse do sono à morte?
E esta ideia tanto a aterrou, que, fazendo heroico esforço sobre
si mesma, procurou na maior ansiedade e por toda a parte meios de prolongar a
claridade, prestes a sumir-se.
Foi-lhe de grata impressão encontrar na gaveta do lavatório um
pacote de falsificado Clichi.
— Enfim! Não pode deixar de exclamar.
Recuperando algum alento, depois de reformar a vela, achegou-se a
Gracias e chamou-o a princípio com meiguice e bem baixinho, depois com força,
impaciência e raiva.
— Arnaldo... Arnaldo, estou com medo... acorda! Sr. Arnaldo...
acorde!...
Mal se mexeu o desastrado. Ergueu, num gesto inconsciente, as mãos
imensas, que puseram temerosas sombras na parede, e murmurou:
— Conversaremos amanhã... temos... muito tempo.
Desanimou Júlia de vez, instintivamente ofendida.
Enfim, não ficaria às escuras, não era pouco; acendeu até duas
velas mais, e, de volta à sua cadeira de braços, com a maior intensidade de
luz, contemplou espaçadamente aquele novo Endimion, presa de inquebrável
dormir, o ideal do seu romance, o pomo de discórdia com o seu velho pai, tão
bom, pronto sempre a lhe fazer todas as vontades, o causador da sua vergonha e
irremediável desgraça.
Pois deveras era aquilo?! Que nariz ridiculamente arrebitado, que
barbas de piaçava, que cabelos e que tez esverdeadas, baça! E a grotesca
saliência dos olhos por baixo das pálpebras inchadas? E as sobrancelhas em
matagal, unidas como sombria e fatídica linha? Santo Deus, que pés colossais,
metidos em meias de branquidão negativa!
Que seria dela, perdida para todo sempre, depois de tamanho
escândalo, travados a sua existência inteira, o seu futuro, com o desse sedutor
impossível?!
E de novo chorou copiosamente quando a madrugada já vinha
colorindo de rosicler uns pontos do espaço, anunciada pelo estridulo grito dos
galhos matutinos.
Sorria-se todo feliz Gracias na sua beatitude de largo repouso
afinal conquistado; mas nem por isto se mostrava menos feio e repulsivo, pelo
contrário. Ah! quanto arrependimento, que intenso vexame, no peito de Júlia!
Que acerbas reflexões! Que horas ainda! Que anelo, para que aquela noite
acabasse e ao mesmo tempo nunca pudesse ter fim, nunca, durasse eternamente.
Afinal, vencida por mortal fadiga e indizível angústia, pegou
também no sono, na tal cadeira de balanço.
IV
Foi a triste e mesquinha heroína acordada em sobressalto por
enorme barulho. De todos os lados inundava o quarto sol alegre, triunfante;
deviam ser 8 horas da manhã.
Batiam à porta com desabalada violência, iam arrombá-la.
Gracias nem se mexeu.
Júlia Candelária fez um esforço e, arrastando-se deu volta à
chave.
Atiraram-se sôfregos para dentro em bolo o Comendador, o delegado
de polícia, soldados e curiosos. Frutificara a palestra de véspera do indiscreto
automedonte, pondo a autoridade na pista imediata e certa dos fugidinhos.
Dominando a imensa conturbação, viu a moça afinal a salvação.
Agarrou-se ao pai que, em vão, buscou repeli-la.
— Juro, exclamou ela bem alto e com acento de irrecusável verdade,
que passei a noite toda naquela cadeira de braços. Não me acabrunhe mais com a
sua justa cólera, meu pai... meu bom pai... minha proteção única nesta terra de
misérias. Tenha pena de mim, da sua filha tão infeliz! Fui... muito, muito
culpada... mas salvei-me...
E com tudo isso Gracias nem se mexia.
Afinal sacudiu-o umas três ou quatro vezes o delegado com energia
por um braço, e o homem... despertou.
— Bom, disse ele com relativa calma, esbugalhando quanto pode os
estremunhados olhos, temos agora histórias com a senhora polícia... era
infalível!
E, sentando-se na cama, pegou com as mãos os pés em atitude de
quem estava disposto a encetar conversa familiar e entrar em acordo amigável.
Fossem razoáveis, era só o que pedia.
Não mostrava maior abalo.
— Aliás, continuou já um tanto altivo, acatei esta donzela como se
fora minha irmã. Ela que o diga... Sei portar-me como cavalheiro. Raptei-a,
para que o Comendador, aqui presente e que me merece estima e consideração,
consentisse na eterna união de dois corações leais, que se estremecem
loucamente e anseiam um pelo outro!...
Júlia soluçava como uma perdida.
— Que vergonha! Que vergonha!... Como é que se não morre nestes
casos?
Candelária mostrava-se muito abatido.
— Deveras, minha... filha? pode ele a custo perguntar.
Teve a moça uma arrancada de desespero e indignação.
— Casar-me com esse homem bradou estancando de súbito o angustioso
chorar, antes a morte, mil vezes antes, na forca, diante do mundo inteiro!
E, numa explosão de bem sincera dor, implorou humilde e meiga:
— Tenha dó, meu pai, da sua desgraçada filha... Leve-me daqui já e
já... Sofro como jamais pude imaginar sofrer!... Nada lhe ocultarei!... Nunca
mais lhe hei de desobedecer, mas vamo-nos embora... perdão, perdão.
Quinze dias depois, e muito à capucha, efetuou-se o casamento de
Júlia Candelária, com o desempenado rapagão que o Comendador tinha desde muito
de olho, conforme avisara a filha.
Partiram os ditosos noivos sem demora para a Europa, e, de certo,
não acharam motivo algum de estranheza e queixa um em relação ao outro. Fora,
ainda mais, o dote duplicado, acima de toda a expectação...
Quanto a Arnaldo Gracias, continuou na sua existência desorientada
e solta, cada vez mais boemia e mais satisfeito consigo mesmo.
Toda uma epopeia aquele momento psíquico da turbulenta vida!
Pudera, qual outro arcanjo São Rafael conculcando aos pés o
truculento Belzebu, subjugar vitorioso a animalidade feroz e bramante,
amordaçar a turgidez da desencadeada luxúria, agrilhoar pela inacreditável
possança do idealismo as tremendas e leoninas investidas da matéria, e arcar,
braço a braço, peito contra peito, em esforço titânico, com os ímpetos vorazes
da volúpia, tudo para quedar-se imóvel de joelhos, em êxtase de mística
homenagem, puro, continente, sem pecha, na mais adorável e santa vigília de
amor e de respeito, ante o símbolo da paixão etérea, seráfica, lírio virginal,
a flor sublime, que saíra de tão extraordinária prova imaculada, impoluta,
intemerata, adamantina, realçado o brilho ofuscador da incomparável confiança,
candidez e castidade!
E com todos esses elementos da mais inspiradora subjetividade, em
menos de meia hora e entre dois cálices de cognac,
compôs, sublimando a virtude própria e o seu heroísmo, esplêndido
soneto nuns sonoros alexandrinos, muito citados depois, e que, nos grêmios
literários da mocidade, provocavam sempre aplausos de fremente entusiasmo e
enternecida admiração.
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