10/23/2017

Pequeno drama na aldeia (Conto), de Fialho de Almeida


Pequeno drama na aldeia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Devo dizer-lhes que este Carlinhos era um adorável petulante de buço preto e olhos claros, cheio de vivacidades com raparigas, pronto a rir, delgadito e forte, tendo pelos atos de bravura uma quase religião. Compensavam-se nele delicadezas de fêmea, brancuras de mãos, flexibilidades de cinta, uma doçura cândida de feições, toda a graça ondulosa enfim, dos que adolescem à larga, sem cuidados nem represálias paternas, com os primeiros esboços dessa energia física, tenaz, inquebrantável, leviana e generosa, que ainda agora é tradição em certas raças da província, e guarda fama de povoado em povoado. A escola fora-lhe apenas um pretexto de troça, onde esse incorrigível tinha posto em debandada a autoridade clássica dos mestres. E como nesse período as primeiras desordens do sangue, ensaiavam pelo campo da aventura, mais agora ou mais logo, as suas sortidas, não havia mesada que chegasse, nem horas para folhear as lições. Demais, a sua impetuosidade que esplendia cor e frescura de saúde, pouco dava à vida cerebral; portanto, voltou à aldeia sem curso, elançado de figura, tendo as olheiras sintomáticas do amor esbanjado, lendo romances, com uma arte especial de surpreender mulheres, e predileções decididas por quanto fosse prazer.
— Doido, dizia a gente pobre da aldeia, mas que rapaz!
A fortuna da família fazia-o no sítio uma espécie de menino de ouro, sagrado e por todos querido; desculpavam-lhe as audácias, tinha entrada em todos os lares, e quando nas romagens o seu cavalo piafava nos adros das ermidas, ou a galope ia cortando a chafranafra das feiras, as raparigas deslumbradas achavam-no belo como um deus, e muitas fugiam com ele, mandando à fava os namorados. Realmente ninguém achava extraordinárias estas coisas. O que as velhas camponesas então faziam, era ter saudades do pai, rico grão-senhor de herdades e quintas, destemido, brilhante, alegre aventureiro, que ainda em vésperas de morrer tinha raptado a lavradora das Lages; aquela russa magnífica de carnação, que tinha o ar de uma grossa madona eborense, hão de estar lembrados, hein? Carlinhos mesmo, era um filho do amor, vindo não se sabia de onde, amor de acaso, de alguma arribana de granja, de algum arredado lugarejo entre serras e moinhos. O certo era que dias após haverem enterrado no velho cemitério, a filha que ao rico homem restava da esposa legítima, entrara o marido em casa com um pequenito pela mão, fora junto da esposa mortificada de prantos, e sem palavra tinha-lhe deposto no regaço aquela encantadora miniatura de Carlinhos pequeno, a mais fresca e divina que era possível sonhar. A pobre senhora que se via sem descendência, já não estava em idade de ter filhos; resinada às traições do marido, e enobrecida desse grande orgulho benévolo e senhoril, que ainda na província revelam as antigas famílias, aceitara o bambino sem coisa alguma perguntar. Além de que, adotando a criança, assegurava-se herdeiro à casa, e os filhos do irmão de seu marido não participariam ceitil na grande fortuna do casal. Ah, mas esse exemplo de adoção tinha dado a mulheres sem marido, frenesis bruscos de contágio, e certo foi que muitas crianças apareceram dizendo-se irmãs de Carlinhos. Talvez calúnias forjadas pela outra família, ainda que falando sério, não faltassem a tais pretensões, uns sinais de verossimilhança. Tanto os da Oriola, que assim era conhecida a família do Carlinhos, como os da Torre, que assim nomeavam a casa do tio adversário — eram fortunas de respeito e gente de poderio. Os primeiros tinham o maior núcleo da propriedade de redor da Oriola, aldeia perdida entre carvalhais e sobreiros; os segundos faziam sede de governo próximo a São Matias, outra aldeia nos vales de Beja. Uns tinham cabelos pretos, alta estatura fina, nariz direito, olhos claros, e uma cor fulva de pele, nuançada em deliciosos duvets; eram da Oriola. Mas outros insculpiam-se hercúleos e louros, nariz recurvo, dentes carniceiros, barba rara, e os olhos singularmente oblíquos contra um nariz que arfava com destrezas de hispano-árabes; eram da Torre.
Pois extraordinária bizarria! Dos trinta anos para baixo, toda a Oriola copiava o tipo do pai de Carlinhos; e acontecia o mesmo em São Matias, a respeito do tipo louro da Torre. Nas terras de roda, estas coincidências faziam riso, ainda que se explicassem com honra, aqui para nós. Os da Oriola davam pão à sua aldeia, como os da Torre a São Matias. Lá vinha o provérbio — mesmo pão, mesmas feições. E sendo assim...
Ora cada qual destas famílias rivais — e nunca pude saber porque rivais, questões de ciúmes talvez, uma herança mal repartida, ambições de riqueza ou voga entre os povoados, eleições renhidas nalgum ano de mais gastos, enfim qualquer pequenino atrito desta natureza ou de outra, onde o orgulho dos senhores rurais, tão veemente e meticuloso, faísca determinando incêndios e íntimas assolações — cada qual destas famílias, ia eu contando aos senhores, não passava dia sem discutir com uma rica metralha de descomposturas, escárnios e desdéns, o viver da outra. Em torno destes ódios interfamiliares, tinham-se formado mesmo pequenas cortes, feitas com figurinhas insípidas de proprietários, mulherzitas secas e beatas, maldizentes na sua dentuça podre, com poucos meios e grandes deslumbramentos pelas pratas de casa rica, sabendo as mesmas histórias e queixando-se dos mesmos flatos, levando e trazendo recadinhos, segredinhos, pequeninos fétidos de intriga, em preço do chá com doce que pelos serões lhes serviam, e da quase familiaridade que em público, esses senhores de terreola lhes dispensavam. Na casa da Oriola sabiam-se por exemplo a horas e a tempo, os vestidos de seda da prima Dora de São Matias, como ela se vestia em sendo madrinha de batizado, o que tocava no piano, e quem estivera a jantar no dia dos seus anos.
— Diz que houve balancé até de manhã.
E notícias da cortiça exportada para Inglaterra, lã que vendiam os da Torre, e dos rebanhos, carneiros, vacas, porcos, cavalos, poldras...
— Tão maus, que elevaram o preço dos carneiros, só para prejudicar os lavradores somenos. E os porcos deles não prestam, carne de cão, mais dura!...
Cada viajata de Dora durante a estação de banhos, cada mês de ópera em Lisboa, no inverno, as primaveras com o pai pela Andaluzia, no Algarve, ou em Marrocos e Gibraltar, para espreitar o dolente azul do Mediterrâneo do alto das artilhadas escarpas inglesas, eram motivos de censuras na Oriola, e surdas profecias de ruína iminente. As mulheritas da terra vinham aos serões com seus maridos, trazer o que sabiam da Torre, inventar quando não havia que trazer, e a mãe de Carlinhos comentava os casos entre velhas criadas que a tinham acalentado, velhinhas que davam tu à sua dona, enroscando-se-lhe aos pés com sonolência de gatas fugidas ao serviço. Mas, desgraçadas das visitas que ousavam julgar diante da rica viúva, o proceder da sobrinha ou do cunhado — que tombadas em graça, nunca mais lhe viam os dentes e provavam o doce! Ela só, viúva de Fernando Zarco, podia discutir os desvarios de seus parentes; o resto contava sem comentários o que ouvia por fora, ou ia escutando o que ela dizia, sem retrucar mais, aliás...
Na casa da Torre, exasperação idêntica a respeito da Oriola, não havendo serão que as estroinices do primo não fossem esmiuçadas, exageradas e discutidas. Carlinhos não tinha pai, Dora não tinha mãe. Mas autoritária e toda orgulhosa do seu reino doméstico, da riqueza e alta educação que recebera, também ela punha em torno de si uma pequenina corte dulcerosa e servil. Era mais nova que o primo, e a sua beleza de loira, magnífica e alta, toda fresca em batas destofo exótico, deliciosa de cabelos e mãos, com uns ares de inacessível castelã, fazia dela a musa do distrito, e a paixão de quantos gordos filhos de casa opulenta, batiam por feiras e lavouras em grande. Viam-se os dois muitas vezes, Carlinhos e Dora, casualmente nas festas de Beja, em praias de banhos, e por Lisboa, onde até acontecia ficarem no mesmo hotel. O pai dela, Manuel Zarco, fingia não dar pelo sobrinho, o enjeitado, como ele dizia na sua brutalidade morgadia. Os rapazes, porém, é que se iam mirando às furtadelas, sem querer saber das caturrices do velho. Carlinhos, tão ruidoso e leviano por onde quer que andasse, ficava sério e perturbado sob esses rápidos encontros com Dora, e os seus olhos claros esmaltavam profundezas ardentes, e melancolias de quem fica a cismar. Porque em verdade, mulher alguma podia equiparar-se a Dora, pela nobreza do seu tipo, estudada elegância de maneiras, vestuário, contos de fortuna e altivez de família. Os bem informados nisto de interesses e alianças possíveis ou premeditadas, não viam por essa orla toda do distrito, um casamento à altura de Dora, a menos que a orgulhosa descesse, o que todos diziam não ser provável. Apenas um noivo a merecia bem, Carlinhos.
— Esse, opinavam as terras circunvizinhas, quando as galinhas tiverem dentes.
Precisamente esse dia, a aldeia de São Matias suspendera os trabalhos do campo em sinal de festa; os das herdades tinham vindo com os seus cajados e as rudes botas altas de couro branco, rolavam bailaricos por todas as casas; e no terreiro da igreja, às portas das vendas, no balcão da escola régia, ou mesmo às embocadas das ruas, por aqui, por ali, os camponeses em ranchos, fato novo, ruborescências de vinho no queimar da face, havia mais de três horas que aguardavam a boda. Os campos nesses meados de junho, tinham primeiros doirados do trigo maduro, ondulante e farto, que a aura por zonas encama numa saudação graciosa; por um lado e outro, entre gavelas arrepeladas sem ordem, remoinhos desflorados de messe, como lábios de rapariga ardente, ria o escarlate das papoulas; e como aos sóis da quadra tinham vindo as cigarras, ruído de cega-rega, trocavam alertas de árvore em árvore, à medida que ia avançando o verão. Entanto ainda as noites eram frias, e o orvalho da manhã perlava nas folhas, secretas lágrimas de amor traído; corria mesmo água por alvercas e ribeiros, fria, salobra das terras atravessadas, dando eretos viços aos panascais verdejantes, às junças e mentrastes das ribanceiras. Microscopicamente, as vinhas iam esboçando cachos, entre pâmpanos pisados de amarelo e vermelho ferrugem; começam a vir os perdigotos, as rolas tinham chegado de uma áspera migração, e desconfio que os melros, casados de fresco fazendo música de opereta entre os murmúrios das canas e dos silvados, arredondavam já os seus ninhos, à espera da petizada. Nessa grande paz bucólica, a alma abraçava simples ideais de ventura, nua de ambições desordenadas e volúpias lívidas, e na doçura de palpitar entre aromas silvestres, ia voando em cata de amores delicados e mansos idílios, pelas veredas onde as condoídas espigas se curvavam, a depor nos regaços esmolinhas do primeiro trigo em sazão. Vista de longe, a aldeia era encantadora de alegria e brancura. Nas colinas, de roda, empoleiradas ermidas vigiavam por ela dia e noite; Deus foragido pela descrença das cidades, andava por ali talvez na estatura de algum velho mendigo de falas doces e resinada humildade; e pela noite, quando os rebanhos vagarosos seguiam para os currais, esse cantinho rústico tinha cenas bíblicas de uma graça inocente, pastores e pastoras ajoelhando ao toque das Trindades para dizer o angelus, risos de ganhões pelas devesas, cantigas que se apagavam nas corcovas dos caminhos, enfim tudo quanto entretece a elegia plangente do morrer do sol. Esse dia casava-se o Carlinhos com a prima Dora, e as duas casas fortes do distrito, tantos anos separadas por ódios, iam enfim restaurar-se na boa cordialidade, por esse laço dos primogênitos. 
Imagine-se o espanto e a curiosidade que um tão inesperado sucesso derramou por toda a província, conhecidas como eram as desavenças dos Zarcos, desde tanto apregoadas. Mas assim como tinham ficado na sombra os motivos de apartamento, assim também incógnitas ficaram as molas íntimas da nova amizade entre as duas casas. Evidente, que o principal motivo de ligação era o casamento dos rapazes; isso não bastava entretanto; outras secretas ponderações deviam ter influído; e essas, quais? Porque, enfim, era conhecida a indole orgulhosa e tenaz da viúva; as suas frases sobre o cunhado citavam-se em modelo de altivez varonil e decidida independência; e por seu lado o da Torre não a poupava também. Nem uma só vez Dora tinha falado a sua tia; criancita ainda, sucedera encontrá-la não sei que de vezes; os olhos pretos da viúva detinham-se um momento na figurinha petulante da bebê, e desviavam-se logo sem rastro de afeto. Verdade é que o velho Zarco referindo-se a Carlinhos, punha sempre palavras cruéis, marau, vadio, o filho daquela...
Subitamente, eis que os rapazes iam casar! Jamais por aquelas redondezas se tinha dado coisa parecida. Vamos nós agora a ver, se a da Oriola virá dormir à Torre! diziam muito interessadas, das suas soleiras, as gordas comadres de São Matias. A mor parte nem tal acreditaria, mesmo vendo. E as apostas começaram. A ver como dorme! Apostar em como não dorme! A camarilha de Manuel Zarco arengava com sobranceria, entre os grupos mais impacientes:
— Afinal, quem se humilha são os da Oriola. É bom saber!
E uma de preto, a Fevrônia, toda preponderante, meia azul e sapato roto, batia palmas numa loucura, dizendo por todas as casas:
— Quem viver tem muito que contar, não haja dúvida.
Foi neste marulhar de opiniões e trocadilhos, que um forte rumor de sege alborotou a aldeia e enquanto rapazes descalços corriam, cães ladravam, e cabeças de mulheres vinham às portas espreitar avidamente, os trens da Oriola romperam a grande passo pela rua larga, vindo topar alfim nas escaleiras do adro. Este caso foi muito falado, e ainda se pasma da majestade com que se apeou a viúva da sua grande berlinda estofada a casimira pérola, grandes fivelões e lanternas de prata esculpida. Tinha-se chegado muito povo a ver, as janelas guarnecidas de madamas, e o mordomo da senhora viúva, gordalhudo, com uma expressão presidencial, desenrolou um rico tapete amarelo e branco pelo adro, desde o estribo até aos portais do templo; os criados da taboa tinham-se erguido e descoberto; e nisto Manuel Zarco com um riso amarelo, todo curvado de obséquios, casaca e luva branca, saíra a receber sua cunhada; e quase a medo, todos repararam, oferecera-lhe a mão para saltar. Diz que ela nem o encarou, e foi sozinha pelo tapete fora de cabeça alta, um dos braços pendentes, e a cauda do seu vestido de damasco negro roçagava que parecia mesmo da senhora rainha. Carlinhos ia atrás, um pouco deslocado na casaca de noivo, porque em verdade ia-lhe melhor a jaqueta e o chapéu largo. E fechavam cortejo as velhitas que tinham embalado a viúva, ambas de roxo, ajoujadas, chapéus muito profusos de violetas, e mitenes de renda onde as suas velhas mãos boiavam carcomidas. Junto ao altar tinham posto uma grande poltrona em cetim rutilante, flordelizado a ouro velho, onde a viúva se assentou sem mais cerimônia; e todos em pé serviam-lhe de corte, com passadinhas respeitosas e pequenas vênias cheias de unção. Apoiado à espalda da poltrona, velho Zarco mastigava demoradamente as palavras com o seu modo sonolento, siflando os ss de quando em quando, e ela sem lhe dar atenção, um momo altivo de lábio, entretinha-se a esfolhar com o seu pé de fidalga, rosas brancas espalhadas pela alcatifa.
Embalde o da Torre lhe fez notar que melhor seria assinarem as escrituras em casa dele, como era natural, até ficava ali perto, no largo. Vossa excelência descansaria um pouco nos quartos de minha filha...
— Meu cunhado, não me sinto fatigada, assinaremos isso no gabinete do prior, onde quer que seja, mas sem arredar pé da igreja, que é casa de todos. E a propósito, disse ela tirando o relógio, é a hora, duas e meia. Janto às seis, o caminho é longo.
O da Torre ia a sair, a viúva tinha-se erguido sem reparar na impressão que estavam fazendo os seus cortantes modos de dizer. Manuel Zarco deixou-se caminhar ao lado dela foi-lhe lembrando com voz mansa que os velhos rancores deviam acabar com aquele enlace dos filhos: tudo afinal se esquece.
— Tudo não! disse ela bruscamente. E prosseguiu: podem casar, podem casar. Carlinhos além de tudo, não é meu filho, aliás tinha-lhe proibido esta aliança, meu cunhado!
— Vossa excelência é então muito orgulhosa, notou velho Zarco despeitado daquele tom.
— Crê isso? disse a viúva abrindo o grande leque de ouro e plumas, que reluzia numa polvilhação de pequeninas pedras. — E de repente, num acesso de voz intimativo: Sabe, meu cunhado, que seu irmão era homem para o ter morto, se acaso tem vindo a saber... Porque francamente, disse ela com os dentes cerrados, rígida e faiscante nos seus damascos negros, francamente, é desprezível, o senhor! Tenho ainda nos pulsos sinais das suas unhas. Adoro o Carlinhos, creia — eis porque às vezes me aterro da mulher que ele escolheu. Meu Deus, se essa criaturinha sair ao pai!
Os dentes do outro rangeram— porque não casou então comigo? disse ele com frenesis na raiz dos cabelos.
A viúva riu-lhe na cara.
— Eu? Eu? Ora, meu cunhado!
Fez dois passos na alcatifa, quebrando numa crispadura elétrica e larga, a enorme cauda aplicada de rendas antigas, ao tempo que os dedos de Zarco rasgavam convulsivamente a luva descalça de rompante. Ambos traíam cólera nos zigue-zagues que faziam marchando. Os olhos ainda magníficos da viúva procuravam o da Torre, fosforentes de ameaça. E o velho, como quem não acha outro caminho para fugir:
— Enfim, desmancha-se este casamento, se quer.
— Não, já agora, eles desgraçadamente adoram-se, Carlinhos mostrou-me as cartas, amor de muitos anos, inda eram pequeninos. Deus sabe se o senhor mesmo aproximou... — E subia-lhe a voz em graves dramáticos, com vibrações de metal. — Mas, meu cunhado, acautele-se, acautele-se! Sua filha vai comigo, voltá-la-ei contra o senhor.
— Oh, disse ele, experimente.
— Pois veremos.
— Vou buscá-la, resumiu ele transtornado, curvando-se. E muito baixo, querendo dominá-la: que inimigo horrível eu tinha, se a senhora fosse um homem!
— Matava-o, respondeu ela estendendo o punho num gesto de Rachel. E ajuntou a rir: tão certo!...
Carlinhos vinha para eles, já o velho Zarco se afastava. E vendo-o no seu ar de cavalheiro, estatura correta, alto, um fulvo esplêndido de pele, boca firme nos cantos sob a veludagem do buço, quase inocente na graça leal do sorriso, esse rir da viúva, correndo imperceptíveis nuances, foi gradualmente adoçando, enternecendo, perfumando como um licor que se evola entornado, de modo que era divino quando Carlinhos, femininamente, lhe deu a beijar a testa. Ela então sem se importar, atraiu-o a si numa paixão de leoa, como se nunca mais se vissem, e dizia-lhe coisas entrecortadas, a chorar, a beijá-lo furiosamente, estreitava-o mesmo sobre o coração, com ímpetos de abandonada, que se fica nos ocasos da vida, sem mais ninguém que amar. Fosses tu das minhas entranhas, não te queria mais que te quero! E essa maldita, há de expulsar-me do teu coração. — Ele queria contê-la, quase envergonhado de os estarem olhando à roda, jurava-lhe, prometia tudo, num precipitar de palavras meigas. E à flor da abóbada nua e branca da igreja, andorinhas corriam chilreando, filhos e mães que inda não tinham emigrado, e demoravam residência no calor dos velhos ninhos patriarcais. 
Nisto, fez-se um grande rumor, que alastrado, mais e mais confuso, por todas as ruelas, ia pondo as gentes de sobreaviso; viram-se rapazes e mulheres correndo às esquinas que defrontavam com o largo, janelas que abertas de chofre inchavam de gentio com fatos de gala, grupos frenéticos buscando posição de ver melhor; e de repente, quando a orquestra de Beja entrou a choramingar uma sinfonia no coro, ondas de família romperam na portada sem guardavento, invadindo as capelas, enchendo a nave, querendo forçar a balaustrada carunchosa do santuário. Jamais São Matias tinha visto coisa igual, nem quando D. Pedro V fora a Beja — e francamente, de logo perdeu a esperança de tornar a gozar outra grandeza assim de boda. A casa da Torre era no largo, grande, pesada, singular, com esquinas de granito negro, onde os escudos postos ao través esculpiam complicados símbolos de nobreza, leões com asas, metade de um cavaleiro armado de lança e capacete, Nossa Senhora dentro de uma torre, cabeças de mouro num molho: e só águias eram algumas três! Sobre os portões de colunelos gastos, com argolas de bronze para prender as bestas, e portas de carvalho fortalecidas com magnífica pompa de ferrarias damasquinadas, esses brasões repetiam-se mutilados; no fundo do pátio aberto, de um sabor árabe, e com arcos à volta cobertos de hera via-se a ampla escadaria de corrimões de bronze, alcatifada de fresco e cheia de vasos decorativos; um velho cipreste lhe fazia sentinela, hirto à beira de um poço octógono, todo em altos relevos de pedra rugosa — em casotas, acorrentados, inquietos, dois grandes mastins abriam sobre quem chegava, o duro olhar sanguinolento. Na fachada cá fora, a correnteza de janelas senhoriais, fria de botaréus e cimalhas onde os estorninhos gritavam, deixava pender ricamente sobre as velhas sacadas, preciosas colchas hereditárias, amarelas com grandes pássaros em lhamas de prata, azul pálido numa loucura de mandarins e pagodes, ou de altos relevos brancos, verdes, escarlates, sobre foscos de ouro indiano, onde as grossas franjas luziam. Pois dessa casa severa, vomitara súbito um cortejo bizarro de noivado — à frente vinham os figurões de Beja em grande mise, ricaços das terras próximas que tinham chegado nas suas seges, velhos amigos de Zarco, lavradores, funcionários, últimos parentes da família... E rodeavam o da Torre todo pálido na sua grande barba, que levava a filha pelo braço como uma grande musa germânica, alta, pudica, esplendidamente branca e vaporosa num véu que lhe caía aos pés. Fez bulha na aldeia o senhor coronel do 17 com as suas medalhas ao peito, e um velho general de metro e vinte e cinco, gesticulando para a direita e para a esquerda, que mirava as fêmeas lampeiro como um galo, ao pé do vigário capitular, um cor de parede, que mui dulceroso e beato, afiara o dente em três dias de abstinência, sonhando as delícias do copo d'água. Seguiam damas paramentadas de ouro e plumachos, luvas chinfrins de dois botões, pulsos éticos chincalhando braceletes, muito estrepitosas em sedas de cor terrível: e disse uma delas para a outra, que seguia ao lado, mortificada no peso da cuia — quem está mesmo um cangalho é a Sardinha. Esta coisa causou grande pasmo; estar a Sardinha um cangalho! Hi!... Muitas aglomerando-se em trouxa, discutiam tão famoso caso. E gabou-se a morgada das Palmas, uma trigueirona de cabelo corredio, lábio gretado, seca e presumida, que de chapéu branco e vestido verde, fazia pensar num grande molho de nabos. Depois as criadas, sinceras raparigas que choravam— isto deu pena em São Matias — e quase em braços no meio delas, uma velhita em seda preta, pequenina como uma criança, levava um ramo de rosas brancas e o leque da noiva, abanando num triste ar resinado, a sua cabeça branca de octogenária. A aldeia estava toda no largo, gralhando a essa hora, gente das lavouras de roda, uma chafranafra de mulheres e homens que se rasgava e bipartia, ao passar o acompanhamento. A cada passo, pequeninos lances detinham a procissão bruscamente, e viam-se as raparigas sair dos ranchos, tostadas, fortes, rindo com soberbas dentaduras, cabelos de trigo maduro remoinhando em serpente no alto das cabeças...
— Com sua licença — e deitavam flores sobre a herdeira, comovidas, um ar de filhas de burgo medieval. À porta da igreja, o Carlinhos estava entre os seus, crescia a turba embatendo-se; e por traz a viúva muito pálida, tinha os vagos olhos das frias estátuas antigas, inertes, dilatados de insônia, como perscrutando ao longe os tempos em que ainda não eram de pedra, e uma vida lhes circulava e ria no alvor dos membros nus. Deu-se então no Zarco e na viúva, ao mesmo tempo, um calafrio de ciúme, quando os noivos se encontraram com a mesma flama nos olhos; e os dois perceberam que iam ficar de mais nesse idílio de crianças, absortas uma na outra, que esquecidas de tudo, iam de mãos dadas pela igreja fora. Nessas velhas idades de amor egoísta, em que os filhos são o calor, o orgulho o motivo de viver — o choque de ambos, percebendo que lhes tinha acabado o império sobre essas adoradas criaturas, foi tão violento e fulminante, que se deixaram ficar atrás no meio da turba, com vagares de fundo desalento, ela direita, sem desmanchar a estatura soberba, derrubado ele, pacífico, apagado, enorme como um elefante, e sem dar uma palavra para não desatar ali em soluços, trespassado dos primeiros regelos do abandono. Cortando então por entre a gente, ouvia por toda a banda humildes palavras de conforto e piedade; velhas mães que o encontravam, lacrimejantes, atentando-lhe na face descaída — Vai ficar só naquela casa tamanha, coitadinho do amo Zarco há de lhe custar. Isto de filhos!
— E são os da Oriola que levam a nossa menina! Abaixar-se o amo...
Porque todos os súbditos sabiam já da capitulação desonrosa desse velho rei de charnecas e montados; umas poucas de palavras colhidas na altercação com a viúva, serviram de base a toda a sorte de comentário e parlenda sobre o casamento; pintava-se e repintava-se de grupo em grupo, a expressão terrível da viúva falando a seu cunhado, palavras cruas ditas por ela, acautele-se, acautele-se levo-a comigo, e outras muitas; e o amo Zarco todo enfiado, ali a ouvir, a rezar desculpas, a fazer-lhe vênias. Com os diabos — nem que comesse os sobejos daquela magana!
— Fosse comigo, fazia cada qual em grandes quizílias.
— Ai, argumentavam muitos pachorrentos, é o que se vê hoje em dia.
— Tão má, filhos, que nem as escrituras quis assinar em casa do cunhado.
— Inda assim não entalasse o rabo, figurona!
Mas depois de longas conjecturas, recapitulando, toda a gente acabava por dizer que andava ali o quer que fosse. Olá se andava! 
No gabinete do pároco tinham posto uma grande mesa, e em roda bancos negros da confraria das Almas, para os convidados se assentarem. Era uma casa verdenta de paredes, com fendas ao través na abóbada, pintada de frescos mais que barbarengos; e por um buraco de cima, passava a corda da sineta, que desde que se rachara o sino, servia para chamar à missa a freguesia. Ao fundo, pesava um grande armário de carvalho negro com espelhos de metal que verdejavam; e painéis de santos esburacados à navalha, caíam aqui e além, emoldurados em talhas carcomidas. Uma luz de cava vinha de cima, por uma janela sem portas, onde se cruzavam varões de ferro. Como a casa era estreita, apenas foram à leitura do contrato, os íntimos amigos ou personagens de peso. E o tabelião Matias homenzarrão com uma cabecinha humorística de japônico, estimável e estúpido, principiou com a sua voz em falsete nos fins de cada período, a ler artigo por artigo as escrituras, circunvagando a cada clausula os seus olhitos por cima de umas olheiras paposas, onde as bexigas tinham picado covinhas de sombra.
“...e mais dou a minha filha Dora Vitorina Maria de Sousa Alvim Mexia Zarco da Cunha Menezes... as herdades denominadas da Cova, das Sesmarias, da Chaminé, e Cortes tanto Grandes como Pequenas, com seus montes, gados, arvoredos, dependências e serventias, a partir do dia em que desposar o dito seu primo Carlos; e mais lhe faço doação de todas as minhas lavouras do Guadiana, que vão entre os moinhos da Coitada e a minha quinta de Vale de Borrucho, constando de doze herdades seguidas, partindo de uma banda com o Guadiana, da outra com a estrada de Moira, da outra...” E aqui Matias foi obrigado a parar, porque um burburinho de espanto se levantara entre os convidados. — Quê? Dava tudo aquilo à filha? As lavouras do Guadiana, o melhor trecho de propriedades do Baixo Alentejo? Mas endoidecera esse homem com certeza! Despir-se para enriquecer o genro! Tomé dos Panascos, que trouxera arrendadas muitas terras da Torre, e passava pelo melhor avaliador da cercania, punha as mãos na cabeça com uma face atônita e consternada. — Jesus! Não contente de humilhar-se ante a viúva, inda em cima lhe cobria o filho de ouro. Mas é que ia ficar arrasado! Dar à filha mais de seiscentos contos, sem restrições, sem condições, sem cautelas... E Tomé foi junto do seu velho amigo, e disfarçadamente puxando-lhe a manga:
— Olha que te arrependes, Manuel. Que é que te fica para viver?
O da Torre encolheu os ombros.
— Desgostos, fez ele muito baixo, e disse ao tabelião para continuar.
— “E outrossim lhe entrego toda a plantação de vinha e olival, que possuo livre e isenta, no sítio das Barrocas, freguesia de São Pedro de Portel, cerca de quatrocentos milheiros de cepa e três mil pés de oliveira...”
— Meu pai, balbuciou Dora, avançando para o velho que estava junto da banca enovelando a barba num movimento calmo.
— Vá, Matias, depressa! ordenou ele, enquanto cada vez mais, num frenesi crescente, os convidados se acotovelavam e comprimiam, não querendo acreditar no que lhes fora lido. O tabelião enumerou o que restava de uma fortuna rural cedida em dote, moinhos, hortas, ferragiais, montados de retalho, ruas inteiras da aldeia; tudo que Zarco possuía, bom e mau, pequeno e grande, tudo dava a sua filha com a mais generosa confiança.
— Matias, disse ainda o velho Zarco, falta a casa da minha residência, o quintalão e as abegoarias. Acrescente que a contar de hoje, lhos dou também. — E voltado para a cunhada, com a sua face radiante de altivez fidalga, fingia não sentir as murmurações de roda. Fora, na igreja, no adro, no largo, por essas casas todas da aldeia, já se contava que o amo Zarco estava doido, e pior ainda, ia ficar às sopas da filha. Dera-lhe tudo, sem acautelar a sua rica subsistência, o seu vestuário, o seu séquito. E uma hesitação quebrava agora em facções a gentana: à piedade sucedera nos ganhões o fatigante receio de serem despedidos da casa pelos amos novos. Zarco descia — quando um tocante episódio deu nos espíritos a nota mais viva da emoção. Foi a leitura, do que a pequena velha que levava o ramo de rosas e o leque, dava à sua menina. Matias, ele mesmo comovido, ia dizendo... Umas contas de ouro com imagem de Nossa Senhora da Conceição, a sua capoteira de veludo verde, duzentos dobrões em ouro numa bolsa vermelha, a tapada da Vanga...
Dos belos olhos pudicos de Dora saltaram lágrimas por baixo do véu; nos próprios olhos de Carlinhos faiscavam pontos úmidos; de redor nas gentes, faziam-se monossílabos ternos; mas toda radiante de ser o alvo, correndo a assembleia com a sua cabeça trêmula, a velhita exclamou:
— Esperem lá, esperem... — e para Matias, muito ruidosa nas sedas pretas: leia lá!
— “...com a expressa condição de residir seis meses do ano em casa de seu pai, durante nove anos, ou em lugar dela, algum de seus filhos, caso seja fecundo o casal.”
— Ouviste bem? redarguiu ela sensibilizada, abraçando-se a Dora, e a sua cabeça dava pela cintura da noiva. É que nós não queremos ficar abandonados, nem eu, nem teu pai, e a nossa casa. — O que fez com que o dos Panascos fosse dizer baixo a Manuel Zarco:
— A velhota teve mais juízo que tu. Enfim lá estou, se um dia... É como se fosse tua casa, Manuel, bem sabes! — Chegou então a vez de se saber o que dava ao Carlinhos a senhora viúva. Matias começou com a sua voz gordurosa, e para ouvir, inda os convidados se apertavam mais. Era quase uma réplica da viúva, à arrogância com que o da Torre amontoara riquezas aos pés da filha. Foi longa a lista, novas herdades iam passando, arribanas, laranjais, vinhedos, joias, louças, Palácios, rebanhos, casebres, trens... Desta vez quem se espantava era a Oriola — e por seu turno a viúva ficou nua.
Processionalmente então, e à medida que iam firmando o contrato, como a cerimônia findava, em reverências de vassalos ante uma grande potência, passavam os convidados diante dos noivos, com sorrisos de grande gala, alguma graça estudada, dando parabéns com ares cavalheiros, ou demorando-se a afirmar esta ou aquela intimidade, na adoração dos mil e setecentos contos de dote. As mulheres sobretudo, cercavam Dora de pequenas ternuras ridículas, beijos muito repenicados, segredinhos entre risadas. A morgada das Palmas fez-lhes prometer que a iriam visitar ao seu monte de residência; o general citou alguma coisa no gosto bocagiano; velhos lavradores que tinham trazido ao colo Carlinhos e Dora, de pálpebra úmida davam-lhe conselhos, descansando-lhes no ombro as suas grossas mãos de trabalho. E numa avidez, sempre de longe, a viúva contemplava a sobrinha, idealizada no meio dos tules, como uma grande figura de legenda.
Quando viu menos gente no gabinete, Zarco foi apresentar Dora a sua cunhada; a recepção foi quase afetuosa, abalada a viúva como estava, pela grande batalha de generosidade que momentos antes ferira com o da Torre. Foi quando Dora levantou para beijar a tia pela primeira vez, o grande véu de noiva em que vinha envolta. Essa beleza senhorial de uma soberba escultura, que a viúva nunca pudera contemplar assim em plena eflorescência, pareceu feri-la com o seu esplendor de pureza e brancura, porque se pôs muito pálida, apenas o véu de Dora se erguera. E por muito tempo ainda, considerava sem poder falar, a sobrinha. Em volta, nas gentes da Oriola, o mesmo frêmito de surpresa fizera correr murmúrios de lábio em lábio. As duas velhas aias tinham corrido a Dora, e soluçavam. E a viúva de mãos no peito, como sustendo-lhe o frenético pulsar, reconhecia por verdadeiro o que por várias vezes lhe chegara aos ouvidos, vagamente, como uma opinião sem força — isto é, que Dora era o retrato vivo daquela querida filha, tão meigamente loira e tão formosa, única criatura que ela amara no casamento, e pela qual mesmo tinha chegado a aborrecer menos o marido, Laura enfim, a sua pobre criança, morta com vinte anos, pouco antes da adoção de Carlinhos.
Evocação da única memória que ainda hoje a fazia toda vibrar, esta ressurreição em Dora, da celeste criatura nascida das suas entranhas, exacerbando angústias passadas, acordaram na viúva de Fernando Zarco, menos ásperos propósitos de conduta. E voava-lhe a ideia pelas lembranças já longínquas dos seus primeiros tempos de esposa, aos dezesseis anos, quando por cobiça do pai, uma vez acordara no leito do lavrador da Oriola.
Seis anos de infecundidade tinham assinalado depois melhor essa frieza de esposos, que quase nem se haviam conhecido. Era ao tempo ainda dos dois irmãos serem amigos, companheiros de caçadas e aventuras. Manuel com as suas espáduas de hércules, e uma barba de escandinavo muito frisada nas pontas, quase branca junto dos lábios, era o tipo da prudência, falava pouco, e ria com todos os dentes, um riso ingênuo que antes parecia de rapariga pela doçura do esmalte; e quando os seus olhos de violeta, atravessados de um brilho leal e tímido, se erguiam a procurá-la, ela experimentava não sei porque, tamanha melancolia e quebramento, que se ficava ainda com mais pena de ser mulher de Fernando, um tostado, para mais grosseiro e leviano. Ah, como isso ia já longe! E Manuel todos os dias achava alguma pequena lembrança que lhe trazer; ninharias primeiro sem intuito previsto, depois expendidas a furto, aceites em segredo... O certo é que ela amou o cunhado, porque o perfume desses beijos a embriagava, no carmim dos seus lábios de adolescente. Fernando, que era soberbo, áspero, intratável, brutal, coração ao pé da boca, desconfiou mas sem medir a profundeza da culpa. Ela vivia nesse tempo inteiramente só, sem amigos, nem proteções do marido, muito nova, tão cheia de ímpetos! E das profundezas do seu corpo exuberante, cheio de fecundas desordens e de amores indomáveis, vendo-se ali abandonada, vinham-lhe fúrias de pecar. Um domingo, os irmãos tinham ficado mal; nascera aquela filha, de quem Dora copiava a beleza — e tal documento da sua culpa, trouxe-lhe a secreta vergonha que agora gotejava ódio sobre o irmão de seu marido. 
Depois da bênção, o Sr. vigário geral pronunciou uma alocução toda faustosa e erudita, em que se comparava a vida a uma nau vogando no mar proceloso das paixões, entre escolhos de vícios e malquerenças; e ali sua reverendíssima descompôs mais uma vez os seus adversários políticos, atribuindo-lhes a última estiagem e a decadência dos costumes; e com filáucia denunciou que os maridos não tratando senão deleições abandonam as esposas à fantasia das suas pobres cabecitas, do que se aproveitava o demônio para ir centuplicando os adultérios. Isto levou tamanho donato a filosofar sobre a família, e desfilaram as qualidades dos Zarcos, o seu amor ao progresso e à liberdade, e do que os povos de roda lhes deviam, pois ainda no inverno passado, os fidalgos tinham dado corte gratuito nas herdades perto, a fim da pobre gente ter lume nas ásperas noitadas.
Saltou daqui naturalmente nas inimizades que por tantos anos tinham separado as duas famílias (inimizade não, emendou logo com um meneio untuoso; diremos antes melindre, susceptibilidade ferida, pequena divergência de família — era de mui bonitos termos sua reverendíssima! Inda que...) Mas, prosseguia o orador, o distrito todo exultava de ver unidas de novo as duas casas, todos davam graças. — E batendo no púlpito, com gestos de quem chama a si o melhor da cristandade, uma imponência no carão, fechou trecho com um latinório dos santos padres, faustoso e seráfico, que por sinal mereceu uma palavra irreverente ao lavrador dos Panascos.
Quando a cerimônia acabou, foguetaria e vivório estrondeavam por essa aldeia toda, repercutindo os entonos e ritornelos de fraga em fraga — enternecia a tarde nos campos com a descida do sol, uma poeira de ouro tamisava os fundos, aqui, além, imóvel sobre o ar, e dando à paisagem velhos tons de pintura fanada. E o cortejo saiu da igreja como viera, mas bem numeroso e mais rico, pois lhe estava adicionada toda a Oriola, ganhões, criados, convivas, amigos, as duas velhas aias, e coisa pasmosa! a própria senhora viúva. — Anda, sempre te abaixaste, bem feito! dizia-se à da Fevrônia, na passagem do cortejo. O coronel dera o braço à viúva que descera meio véu; o generalito, gazil como um rato sábio, levava a morgada das Palmas, muito birrenta de lhe terem descosido a cauda verde nabiça; e Dora pelo braço de Carlinhos, vermelha, comovida, grandes olhos de safira úmida, radiava a frenética beleza de uma virgem que se abala e palpita, ao primeiro contato de um homem.
O cortejo é que não ia diretamente ao portão de entrada da Torre, mas enfiou pelo enorme pátio de lavoura ao lado, a pretexto de ver a função que se preparava aos servos e trabalhadores. Num banquete monstro, São Matias e a Oriola congraçavam, comendo ao lado uma da outra, na melhor harmonia e folgança; e só no intuito de sagrar esta confraternagem, a viúva acedera vir a casa de seu cunhado, sem quebrar as juras que fizera, pois não passaria o terreno neutro do pátio. Desconforme como um domínio, era esse pátio de muralhas rudes e portadas soberbas, onde os varões de bronze raiavam, e pendiam das portas formidandas, como corações de molochs, os grandes cadeados de ferro. Descia-se das cozinhas por um balcão de pedra com escadarias laterais e mutiladas estátuas, em cujos velhos pilares se vinha tanchar a dentuça dos corrimões estruídos. Diante do balcão, ia ao fim do pátio uma alameda de castanheiros gigantescos, múrmuros sob a verdura das suas folhas acres, de onde um frescor gotejava no esmaiar da tarde. Um grande portão aberto ao fundo dava sobre os laranjais da horta, sombrios àquela hora num verde metálico condensado, redondos até ao chão relvoso pelas imbibições da rega, úmidos, picados de frutoa, e filtrados de uma aura toda enervante em nupciais essências. Nessa alameda de castanheiros amigos, tantas vezes percorrido do pai e da filha, onde pela manhã palafreneiros passeavam à rédea os cavalos de sela, ou vinham limpar o pequeno coupé de serviço, onde tinham lugar as tosquias, as ferras e as matanças nas épocas da praxe; nessa alameda tinham construído uma mesa sem fim para quem chegasse, homem, mulher ou criança, fosse de onde fosse e viesse de onde viesse. Aos lados alargava-se o pátio até às abegoarias, cavalariças e estábulos. E um tom de boda reinava por toda a parte; nas carretas de trabalho postas em bateria, mais os seus troféus de forquilhas, ensinhos e pás, radiando das joeiras, arneiros e mulins, como panóplias em sala de armas; nas paredes cobertas de murta e gilbarbeira, onde as coroas de espigas maduras faziam rodopiar serpentes de ouro pálido; nas largas manjedouras que as bestas esfocinham rilhando os fenos perfumosos; em arcos de flores de árvore em árvore, risos e saudações levadas a um delírio realmente cativante. Em quatro dias tinha-se abatido um rebanho de carneiros e bodes, o arroz viera numa quantidade de carretas, não sei quantos moios de lobeiro em farinha para a amassadura, o poder do mundo em couves, para mais de vinte pipas de vinho... E a Fevrônia punha as mãos do error de moedas que ia custar a frescata ao fidalgo — mas coitada! era uma pobre, sempre foi atando ao cós das saias a mais funda taleiga de quadrados, e sumindo-se debaixo do xale a mais disforme escudela da sua pilheira, para arrepanhar as sobrazinhas. Ora, deixá-lo custar caro! Em compensação, que grande quermesse em plena tarde, sob a viva e sagrada cúpula das árvores, onde trigueiros e louros dos dois burgos rivais, se abraçavam cantando e rindo nos seus luxos domingueiros, cinta escarlate, chapéus de borla, jaleca ao ombro, e a camisa crua de grandes colarinhos moles, acolchetada pelo nó da goela. Com a largueza do terreiro, a malta farandolava em quantos recreios havia: por aqui atiravam a barra os valentões arregaçados até aos ombros, estriando as musculaturas bovinas nos rompantes de uma destreza infrene aos berros de cada vez que alguém passava a baliza, ou não chegava a ela; por além bailava-se de roda das árvores, deitando as vagarosas cantigas do trabalho rústico; em tal sítio havia saltos, em outro lutas, desgarradas em outro; e tudo isto num burburinho infernal que ensurdecia a gente. Vinham chegando as raparigas de claros cabelos lisos nas fontes, com flores no remoinho das tranças. E a Oriola abrasava de as ver tão brancas, boas carnações flamengas, saúde afiançada, perna dura, seio fecundo, dentes finos, e essa maravilhosa doçura de olhos violeta, tão peculiar como era sabido, aos bastardos do amo Zarco da Torre. Elas iam aparecendo a pequenos ranchos, envergonhadas dos de fora, lenços em cruz sobre os seios inviolados, de mãos dadas e braços bamboleantes, como os recrutas em passeio.
Os negros da Oriola diziam-lhes então gracinhas, botavam-lhe rima na passagem; e era vê-las a rir escondendo os olhos com os braços, abalando cor de romã umas atrás das outras, para dizerem de longe aos mariolas — que não se fizessem destemidos nem confiados, e fossem lá ter chalaças com as pretas da sua terra, perceberam? Mas a outra porção da Oriola por seu lado, gente madura e refletida, ainda desconfiada da senhoril hospedagem na Torre, sempre tinha querido inspecionar, ver com os seus olhos, apalpar com os seus dedos, todo o maravilhoso arsenal agrícola, instrumentos, máquinas, animais, bombas, poços, bebedouros e hortejos — e por essa aldeia que viera, subia um respeito de gente cavadora e mandada, que mal disposta para o da Torre, agora se dobrava, reconhecendo nele o gênio de um lavrador modelo. Ah! o que se chama grandeza, ordem, elegância e precisão! Que gados, que acomodações, as catedralescas medas de azinho, pombais, palheiros, ferramentas de trabalho!
Colossal tudo aquilo — e os tostados da Oriola baixavam os seus olhos árabes e premiam os seus beiços de negros, ante a vitoriosa grandeza dos louros de São Matias. Quem havia de esperar, compadre, uma coisa assim?— Nisto, um velhote grosso e vagaroso, que do balcão andava mirando tudo, apenas o cortejo apontou para o lado das abegoarias, pôs-se a repicar do alto uma sineta: era o jantar. E duas filarmônicas romperam latindo musicatas gentias, enquanto as palmas, os gritos, os vivas e os saltos, centuplicavam de toda a banda.
E a viúva deixava-se ir entre as aldeias congraçadas, que no abandono animal da vida rústica, riam alto com dentes famintos, e na passagem dos amos, tirando os gorros, acenando de longe com os chapéus, erguiam meio corpo da mesa, para lhes dar boas tardes familiares. Alguns mais ratões da Oriola — e sempre a Oriola teve fama de moços reinadios — botando cantiga às raparigas, que chegadas tarde ficavam sem lugar nas mesas, ofereciam-lhes por cadeira os joelhos e por encosto o coração. Elas riam largo, já menos esquivas; muitas, solicitadas, davam-se por noivas daquele e mais deste; e à ordem do homenzinho da sineta, chegava a criadagem com o arroz dos fornos, aloirado entre ramos de salsa, empilhando-se em alguidares desconformes, de onde rompiam fumando, tenras, suculentas, as pernas dos perus e dos patos. Então foi uma loucura de vivas, saltos, gritos e cantares. Passava o vinho em picheis de barro, as saúdes choviam nos estímulos da sede, o tinir dos pratos era inquietador. Nunca Carlinhos fora mais querido que nessa tarde plácida de noivado, onde tudo ria à sua mocidade leviana; a Dora que ele levava pelo braço e readquiria vivezas de pomba; os pavões, que sob os telhados das abegoarias, inquietos, gritando de entorno às fêmeas, abriam enormes leques mosqueados de ouro verde; nuvens de pombos que o ruído assombrava forçando-os a revoar de cimalha em cimalha; e ao largo a paisagem caindo numa paz luminosa, muito irisada em tintas subtis.
Ela foi-se isolando, isolando do ruído, até ao portão que dava para a horta; parecia conhecer aqueles lugares, distraída, como quem ressuscita apagadas memórias. Olhava o muro de buxo talhado em formas arquiteturais, circunscrevendo o jardim pela esquerda, até se perder numa folhagem áspera de alfarrobeiras. Para aqueles lados em outro tempo havia um murmúrio de fonte: tinha sido uma noite sem estrelas, o braço de Zarco sustinha-a pela cintura e levava-a, de modo que os seus pés nem tocavam o chão. E assustada, ficara a ouvir aquele choro tímido d'água corrente: espera! ouço passos... — É o vento, dissera ele, e os seus beijos endoideciam-na. Lá estava ela ainda a gotejar na pequena concha musguenta, que um grupo de éfebos sustinha, cavalgando golfinhos. Fora em maio, a flor dos favais enchia os campos decências, o marido caçava o javali por Espanha — nessa noite ele tinha querido roubá-la, conduzi-la aos seus domínios — ela resistira, não! não!... mas o perfume da sua barba tão loira envolvia-a numa fascinação terrível, e a boca pequenina, sincera, úmida, talhada a buril, ao mesmo tempo imperiosa e feminina, tinha-se colado por ela toda: quem poderia recusar coisa alguma? Ouvia ainda o breack rolando pelas asperidões da estrada, os cavalos que voavam, ele a guiar; e ao curvar-se para puxar as rédeas ou chicotear os hanoverianos, o clarão das lanternas iluminava-o de perfil... Oh, as venturas absorventes que se resumem num momento de pecado! Dir-se-ia o perfil antigo de um Deus helênico, branco, hercúleo, alado em juventudes divinas.
— Vais ter frio, minha filha.
— Frio, eu, ao pé de ti!...
E do capuz negro do bournous que ela levava, forrado de peles cetinosas, os seus olhos ficavam absorvidos nele muito tempo, muito, muito. A noite fazia as árvores terríveis, intermináveis os campos; e apagando a perspectiva, aproximava mais as montanhas, e punha traições na goela dos precipícios... Vinham-lhe a cada passo pequeninos medos, as pupilas verdes do remorso que a penetravam de faúlhas calcinantes — lá está um vulto além, naquele canto da estrada... Os troncos corriam atrás deles com pernas de gigantes, enovelando-se, aumentando em número à medida que o breack fugia.
— Jesus! dizia ela num terror, são talvez espiões de meu marido.
Depois na ponte, um pássaro tinha dado um grito, secretos escárnios foram ciciando pelos lábios das folhas; de longe em longe, uivavam as raposas com fome. A cabecinha dela descaía no braço do cunhado, fazendo uma carícia penetrante. Era espirituosamente tocada, correta, de um modelo audacioso em que havia primores. E como ambos eram pouco lidos, incapazes de fazer um amor literário, dialogado por imagens, cheio de contracenas, permutavam as suas emoções tocando os corpos, numa descarga de volúpias balsâmicas. O que ela lhe admirava era a seriedade do aspecto, a forte enformatura dos encontros, uma força de gigante cingida em delicadezas de criancinha. Esse rapaz sem violências, envergonhado de ser tamanho, uns receios de a molestar a cada beijo, silencioso, tranquilo, com melancolias brumosas do norte, subjugava pelo contraste, os ímpetos e os orgulhos da natureza dela, toda impaciências, coqueteries e ardores.
À chegada eram desoras, cantavam os primeiros galos em São Matias — ela nunca tinha por ali passado.
— Gente na estrada, estamos perdidos!
Manuel tinha atirado os cavalos por um olival a dentro, apagara as lanternas, e o break em solavancos lá ia arrastado pelos terrenos declivosos. Pararam. Um rumor de carros vinha da aldeia, guizos de mulas, a voz de um homem cantando... Eles, à escuta, ouviam bater os corações, com medo de alguém os ter pescado. Agarrada ao pescoço de Zarco, ela batia os dentes, tresvairada numa paixão.
— Viram-nos, Jesus.
— Não, escuta, redarguia ele sopeando os cavalos. Em roda, iam e vinham as sombras, no pavor das coisas sonhadas a arder em febre. Ela exaltara-se: adoro-te.
— Mas, por Deus, não grites! dizia ele. — Davam beijos de lava, o amplexo acendia-os, nenhum lutava, foram-se possuindo...
E agora velhos, inúteis na felicidade dos filhos, tendo-lhes dado tudo, sem amor, nem coragem, cheios de cabelos brancos, odiavam-se por desgraça! — Era ao fim do laranjal, o muro de buxo aparecia de novo, nespereiras em flor abriam parasol por cima de um portelo baixo — toda a aventura se lhe reconstruía na ideia, nítida, chamejando horríveis saudades. Sim! os carros de mato abalando à meia noite de São Matias, a voz do homem cantando, esse flutuante mistério da noite, é verdade, um sapatinho de veludo que perdera ao entrar, por aquele portelo, ao colo dele... Oh, a medonha angústia de se não ter outra vez dezesseis anos! Para além, olival, terrenos declivosos: o break parara ao pé daquela grande oliveira.
— Não sentes pena de desonrar teu irmão?
— Mas cala-te, dizia Manuel num tom de queixa, enquanto a levava nos braços docemente, como uma criança adormecida. Ela, supersticiosa, falara-lhe do grito que dera o pássaro noctâmbulo, quando o break entrou na ponte. Talvez prenuncio de desgraça! — Ao que ele respondia: doida! Reparou nas roseiras que por ali floriam agora, como num cemitério consagrado pela saudade de muitos amores fenecidos. Fora ali, junto ao murozinho de buxo, que a respiração dele tinha siflado numa fúria de titã semilouco, e o sapato caíra... Quantas vezes depois o amaldiçoara, sentindo impreteríveis desejos de ir contar tudo ao marido, ao mesmo tempo que um suor frio a aljofrava, só de pensar que Fernando podia vir a ter notícia do adultério. Sim, ódio, era ódio que lhe tinha neste momento! Mas como seria bom desabrochar em outra juventude, radiar a sedução de uma nova beleza, ter ainda pudores de vestal, frescuras de epiderme carmínea, virgindades de noiva, para ir direita àquele infame, atirar-lhe os braços ao pescoço, e dizer-lhe: adoro-te, macula-me outra vez!
Outras recordações então, lúgubres, implacáveis, acastelavam na sua mente, espectros de remorsos longínquos e gumes de suspeitas mal esboçadas. Lembrava-lhe Fernando trazendo Carlinhos pela mão, depois da morte de Laura, a dizer-lhe com palavras de chumbo, espaçadas intencionalmente — este é meu, ficará nesta casa! E como a olhara dizendo isto, apenas ela num movimento de repulsa, erguera a cabeça para dizer que não. O terror desses anos conjugais tinha sido bem cruel. Era o marido fitá-la — tremia toda como um vime. Quando ele se exaltava, ou se bebia, ou em os negócios correndo mal, a cada momento ela receava, que arrastando-a pelos cabelos, o marido lhe gritasse: prostituta! Crescera nos povos a sua reputação de santidade; as esmolas que fazia nem tinham conta, ia de noite ver os doentes, matar a fome às cabanas sem chefe, e o seu nome incubava-o uma lenda de poéticas virtudes e castidade suavíssima. Se viessem a saber, que vergonha! E ante o marido, o seu orgulho vergara, e fizera-se neutra a sua violenta personalidade. Nos últimos anos, Fernando Zarco tinha caído num marasmo desopilante, não saía, não recebia, não falava. Às vezes, ia ela levar-lhe de comer com o riso nos lábios, uma palavra carinhosa para lhe inspirar conforto; e estendendo o braço para agarrar no talher, lentamente, como tendo alguma coisa grave a indagar, ele ficava a mirá-la com o ardor dos seus olhos encovados; depois ia baixando a cabeça numa confusão, vagarosa, funebremente — sim! sim! — e viam-se-lhe as narinas arfando nos haustos de uma raiva subterrânea.
Chegou à porta que rasgava no muro, por sob a cúpula das nespereiras; correu-lhe o ferrolho depressa, empurrou-a com o pé, cheia de curiosidade de penetrar no olival, até à velha oliveira onde naquela noite, o carro tinha parado. Mas recuou com um gritinho de susto. O cunhado nas almofadas do break, à sombra da árvore, aguardava por ela como em outro tempo.
Manuel Zarco não quis prolongar à viúva, a visão teatral que se impusera, e desceu do carro para vir ter com ela. Em vez de veredas e barrancos tortuosos, uma larga estrada cortava agora o olival, entre eucaliptos colossais, que sacudiam à brisa molhos de folhas em cutelo. Ela nem podia falar, branca de susto, humilhada de vergonha, e sentindo o coração grosso de lágrimas. A voz de Zarco era triste, porque também ele não tinha sido feliz.
— Como não quer demorar-se, disse ele, mandei os carros aqui. Partirá quando quiser, as criadas não tardam. A carruagem em que veio fi-la reservar aos noivos, por ser ampla. Pode ir neste break, é velho mas de boas molas, tenho-o há vinte e quatro anos...
— Antigamente, tornou ela junto ao portelo, vencendo um grande embaraço, não havia roseiras aqui.
— Não, disse ele galante, nasceram por onde o teu vestido roçou. — A sua voz tremia.
Chut! casaram hoje os nossos filhos.
— Mentes. Carlinhos vem de uma cigana velha, a quem hoje dei o que ela quis levar. Tem-mo dito muita vez! É negra, traz uma filha, ouço que vivem de roubar por essas feiras.
— É verdade, murmurou ela suspirando; filhos só os tive de ti. — Chorava a sua mocidade agitada, as terríveis dores que sofrera, os orgulhos feridos de mulher.
— Ouve, disse-lhe então ele com súplica, não me tenhas ódio, não tenhas. Dora é tuna criança, ama-a um pouco, assim como amarias a que nos morreu. Elas parecem-se. Sobretudo, não lhe digas mal de mim.
— Ah, bem vejo que amavas tua mulher...
— E tu que amastes meu irmão?
— Mas é falso.
— De que serviria acreditar agora nisso? Estávamos doidos quando nos amamos.
— Sim, doidos de amor. Ai como a gente envelhece depressa!
— Razão para ficarmos amigos, já que tudo morreu. Fernando nunca veio a saber...
— Prouvera a Deus que assim fosse! Cala-te daí! disse ela bruscamente. Na hora da morte ia beijá-lo, repeliu-me; morreu, dizendo a horrível palavra. E por tua causa! Não poderás dizer nunca que te provoquei. Quando vinhas, fugi-te muitas vezes. Tudo me abandonava então!...
— Esqueçamos: a vida dos nossos rapazes, exige. Vá, perdoa. Eles viverão seis meses comigo, seis meses contigo. De mais, ficamos pobres. Os pobres não devem ter ruins paixões. — Ela cortava rosas, no rosal que extravasava de roda. As velhas aias tinham chegado entanto a pequeninos passos, arregaçando muito as suas sedas festivas; em carros de toldo, jumentos e mulas, a criadagem repleta, cantando, chalaçando, deixava São Matias caminho da aldeia. A viúva relanceou ainda os olhos por aqueles sítios, lentamente, como a impregnar a memória daquela idílica paisagem.
E para que ouvissem todos, falando alto, pediu desculpa a Manuel Zarco de não assistir ao copo d'água, mas sentia-se indisposta, tinha que receber os noivos... Ele abriu a porta do break, esperou curvado que ela subisse.
— Zarco, disse a viúva aconchegando-se a um lado, enquanto as velhas subiam e se anichavam também. Os nossos filhos que não demorem a partida, vão ter frio pelo caminho. Principiavam coros de grilos na espessura amarelenta das ervas, o sol caía por traz das árvores; à esquerda, nos vagos fumos da tarde, Beja torrejava.
— Adeus, disse a viúva sem cólera, estendendo ao velho as duas mãos descalças. Zarco sem falar, beijou essas mãos inda pequeninas e brancas.
Os cocheiros tinham vindo; e sob o pingalim, os cavalos arrancaram o break de ao pé da oliveira, em direitura à estrada.
— Adeus, disse a viúva, apertando ao seio as rosas que colhera no rosal. — Zarco parado, as mãos caídas, ficara imbecilmente de pé, todo vazio de reação.
— Eh, esperem, gritou de repente aos cocheiros.
break tinha outra vez parado. Com os olhos estourando lágrimas, ele correu à portinhola com um pequeno embrulho para a viúva, que conforme disse, esquecera na igreja.
— Obrigada, respondeu ela com a voz um pouco trêmula. — E o carro abalou. Junto da ponte, já longe, a estrada fazia um cotovelo para a esquerda, e bruscamente o olival desaparecia. Então a viúva voltou-se muito, chorosa, inda viu Zarco imóvel no meio da estrada, disse-lhe adeus com o lenço. Depois tudo se foi com as árvores que se interpunham, a estrada, o muro da horta, os olivais, a aldeia. Ficou a desembrulhar o pacote que ele lhe dera.
— Que chinelinha mais rica! disse uma das velhas bispando o que continha o embrulho. Era o sapato de veludo bordado a ouro, que ela, a tal noite...
— Cabeça a minha! Quis trazer sapatos largos para o caminho, e afinal só vem um, que para mais me não serve.
A outra velha acudiu com admiração:
— Nem eu sei de pé, que possa caber numa chinelita destas.
E a viúva com um rir doloroso:
— Cabiam os meus, no tempo em que eram leves a ponto de atravessarem jardins sem pousar no chão.
— Ora! isso é o tal conto de fadas, disse a mais pequena das velhas.
— É verdade, um conto de fadas, tornou a viúva. Mas aconteceu! — E os seus olhos iam na direção do olival.

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