10/12/2017

Os mortos entre nós (Conto), de Salomão Rovedo


Os mortos entre nós

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“Com olhar desdenhoso disseram os mortos:
 para de falar em deuses, demônios e almas. 
No fundo, há muito já sabíamos disso.”
C.G.Jung

– O que posso dizer? Nascer, viver e morrer, isso é o que sei, não pelas causas, mas pela constante experiência dos efeitos. Como todos os seres humanos, passei por fatos singulares. Viver, vivi como um troglodita, no bom sentido. Meio selvagem, mais largado às emoções e paixões, com calor. Como não se deve viver, diriam alguns. Mas o como e o porquê de tudo, o mistério das coisas, sempre estarão eternamente arraigados ao espírito imperscrutável do universo. A vida é curta, os dias passam rápido demais.

“Estamos aqui reunidos para nos despedir de Carlos. Pedimos a Deus, em Sua clemência, que receba sua alma cheia de bondade, espelho que foi para todos, enquanto esteve entre nós. Consiste a vida do homem viver entre amigos e irmãos, sem se sentir desgraçado por ter sido feliz. Foi este o legado de Carlos, que viveu entre nós, feliz e irmão”.

– Carlos, o simples fato de a gente pensar e falar já é um mistério, faz com que a comunicação seja um bem secreto. O homem não passa de um abismo, enigma maior do Universo, mistério que habita a natureza. Estamos cercados do fastidioso desconhecido, tudo que vemos e fazemos é misterioso. A curiosidade é um mal inquieto das coisas que não se pode conhecer, que nos obriga a ser o zeloso gênio que transforma o mundo na maravilhosa aventura que é viver.

“A sua virtude resplende neste momento em que dele nos despedimos. Infelizmente é verdade que o espetáculo do infortúnio alheio nos conforta. Por isso avançando na vida parecemos nos endurecer ao golpe do infortúnio. Não foi assim com a alma bendita de Carlos. Não lhe afetou o golpe da dor. A muitos sua companhia serviu de lenitivo”.

– Sempre me interessou o mistério do amor, que considero mais profundo que o segredo da morte. É temeridade querer conhecer os sentimentos, fazer da nossa fraquíssima mente juiz de tudo, chamarmos de vilão o supérfluo, as coisas não nos serve. Por não ter a curiosidade de conhecer as coisas ocultas, mas despertar o desejo de apreendê-las, os homens propendem mais facilmente a crer no que não compreendem.

“Carlos percorreu a existência descobrindo a todo instante novas perspectivas de vida.

Mas o Deus, que em nós impera, proíbe que partamos sem o Seu consentimento. Assim foi com Carlos, que ocultou a sua fidelidade e intimidade com o bom Deus, em nome de um pretenso ateísmo. Na realidade ele sempre rejeitou as doutrinas de arbítrio. Era um sensitivo, uma alma cristã, apesar de tudo”.

– Bem sei, amigo, as coisas obscuras e misteriosas exercem maior atração em nós do que é claro e fácil de compreender. Carlos, não há mistério, o que há é ignorância. O que é o milagre? Filho predileto da fé que sustenta o único e indestrutível milagre – a crença! Milagres existem para provar o poder de Deus. O inacreditável é que eles se realizam e têm sobre os corações o poder que a oração tem sobre as almas. És, agora, o próprio milagre, o próprio mistério.

“Tu creste, Carlos, porque jamais viste o coração insondável de Deus. Bem aventurados todos que não viram e creram. O homem acredita mais facilmente naquilo que não compreende. Coração de criança pela inclinação à amizade, haverás de ser lembrado, porque foste puro e reto. Quando eras menino – eu bem sei porque ungi teus lábios com o sal do batismo – falavas como menino. E depois, homem feito, tu jamais deixaste de mão as coisas de menino. Era adulto e criança em pureza”.

– A mente iluminada é o céu, mente negra é o inferno, pequenas feridas, pequeninas coisas. As grandes almas a tudo sobrevivem incólumes, nada tem a ver com a mente o que dela não faz parte. Para mim, nada há mais veloz nem mais feroz que a alma tranquila na prosperidade, calma na adversidade. Frequentemente o corpo sobrevive à mente e a mente sobrevive ao corpo. Deve ser por isso que alma e corpo nunca morrem ao mesmo tempo. Por isso minhas noites eram iluminadas, mesmo que fosse com a lâmpada de Edison.

“Infeliz o homem no qual nada mais vive do menino, porque a existência não passa de uma longa e interminável infância. Terá o homem direito de dispor de sua própria vida ou cabe somente a Deus tirá-lo deste cativeiro terreno? Será o suicida um prisioneiro que foge da prisão antes de cumprir a pena a que foi condenado? Terá o espírito infantil canais de maldade que levam a esse intento? Amigos, lembrai do preceito: amai uns aos outros, como Carlos nos amou.”

– Você bem sabe, meu amigo: jamais considerei nada mais sagrado que a integridade da alma. Conhecer o coração para amar, conhecer a alma para ser amado, lembra? A força da alma é bem maior que a força do corpo. O inteligente é dono da sua alma, o ignorante dela é escravo. Nunca fomos iguais às pessoas que se sentem mais à vontade com a mentira do que com a verdade. Lembra, Carlos, ao descrer na alma nós mentimos e a mentira se confunde com a verdade.

“Dignai bom Deus, estender a misericórdia infinita sobre a alma de Carlos, para que nossa prece e sua piedade possam suavizar a amargura de seus sofrimentos, por não ter ele tido a coragem de esperar o fim de suas provas. Deus de misericórdia, não abandone jamais este amigo que acaba de deixar a Terra. Pedimos o Teu celestial perdão, porque aqui na Terra nós já o perdoamos.

Senhor, tende piedade dele Senhor, tende piedade de nós”.

– Me irrita a ilusão boba. Muitos falam com os lábios e mentem com o coração. É a inverdade mais prejudicial e mais doentia, própria dos desesperados, que não podem fugir senão mentindo. Em geral nos limitamos a contar lorotas (temos que admitir a verdade cruel: o mundo é tolo, artificial, científico, calculista), sobre os males do mentiroso: não acreditar e não ser crido. Às vezes estimulava a solidão, achando-a mais sublime, mais completa. Depois me convertia à amizade, com um sentimento de existência maior, a existência humana.

“Tira a venda que lhe oculta a gravidade da descrença, para no arrependimento encontrar as graças que ora pedimos. Possa nossa prece reparar a alma diante dessa nova existência. Seria injusto colocar Carlos na categoria dos espíritos sofredores, arrependidos. Ele está entre os bons de coração. Pode ter sido fraco algum momento da existência, mas, Deus de Misericórdia, quem não o é? Se aceitas o arrependimento sincero, aceita também o testemunho ante uma grande alma”.

– Mas Carlos, nós ficamos a falar o que é fácil entender: a fantasia, o milagre, o céu, o inferno. Isso fazem os homens que nascem sinceros e morrem descrentes.

Podemos acreditar que viver na mentira é um prazer ou um vício como qualquer outro: beber, namorar, comer, jogar, comemorar, aventurar-se. Mas a verdade mais crua nós guardamos no baú do silêncio. Quem tem coragem de afirmar que a origem dos crimes contra a humanidade é a mentira dos políticos? Que esta não pode ser combatida, porque finge ser parte de uma verdade?

“Que em sua misericórdia infinita Deus estenda o manto generoso sobre ele. Afasta de nós o pensamento de nos entristecer com a morte, porque ele sempre foi alma alegre e risonha. Pedimos, Deus clemente, que sua bondade se amplie sobre todos os espíritos. Recomendamos nossas preces especialmente para a alma boníssima de Carlos”.

– Não sou nem nunca fui purista, mas se acredito no bem e no mal, também admito que o alvo do demo é simplesmente encantar, deliciar, proporcionar divertimento. A própria base da sociedade reside em iludir com a beleza, o erotismo, o prazer. Mas a mentira tem pernas curtas, é pobre de espírito. O esplendor da vida é ilusionista, o passar das gerações, viver a infância, a juventude, alcançar a madureza desfrutando a luz da razão. As trevas da ignorância pesam toneladas sobre nossos ombros e a verdade, bela e pura, muitas vezes é preterida.

“Abri, bom Deus, o coração de Carlos ao arrependimento, ao desejo de se purificar, fazei-o compreender que, por seu esforço, será alegre o tempo de sua prova. Fazei luzir aos seus olhos o raio de esperança e que a divina luz ilumine a todos nós quanto às imperfeições que nos afastam da sua morada. Nós somos o espelho de outras almas...”

– O que sei é que foi uma grande sacanagem, Carlos, você ter se ido assim, sem mais nem menos, de repente. Afinal havíamos combinado passar a virada para o ano 2000 juntos, num porre formidável. Bebedeira de discussões filosóficas, esotéricas, carnais, carnavais. Lembra que nossa filosofia sempre teve como ideologia a amizade? Tudo terminava no sorriso mais íntimo, no abraço, no até logo, nos planos para próximas encarnações. Aí vem você sem graça nenhuma se atracar a um enfarte, fingir um coma de uma semana – e deixar a gente na mão. Agora tenho de arranjar uma morena bonita para gastar o champanhe, o vinho, o chope.

“Se fazer o bem sem se exibir, sem ostentação, é um grande mérito, esconder a mão que dá ainda é mais louvável aos olhos de Deus. É o sinal indiscutível de grande superioridade moral, porque é preciso se elevar acima da vida presente e se identificar com a vida futura. Carlos jamais mostrou a mão com que tudo doou com desprendimento. Deu mesmo a própria vida”.

– A soberba se mostra quando o homem quer saber toda a verdade, por isso estou ausente. Que ninguém se desespere, a continuação não é boa, mas estou melhor. Descobri, um pouco tarde, que todo homem é mentiroso, tão mentiroso que não se lembra das balelas que profere. Do ladrão nos livra a cadeia, do mentiroso nada nos livra, porque a mentira é impalpável e volátil, como os germes, os vírus das grandes epidemias, senhora do mundo, hábil, astuta, mascarada. Isso não é filosofia, é cultura popular.

“Deixa boníssimo Deus, Carlos entrar pela porta estreita, pois a porta da perdição é larga e o caminho que a ela conduz é espaçoso. Sabemos como a porta da vida é pequena, como o caminho que a ela conduz estreito e como há poucos que a encontram. Não viemos a este mundo para fazer julgamento nem para exigir muito daquele que muito recebeu. A porta estreita é o caminho de Carlos”. 


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Fonte:
Salomão Rovedo: Sonja Sonrisal. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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