Os dois espelhos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Depois de mandar retirar-se a criada, Violante foi, pé ante pé, fechar a porta do salão de jantar que deitava para a copa, e veio sentar-se junto do esposo com um olhar esbraseado e as mãos profundamente geladas.
Simeão, o esposo, estava transfigurado: um tremor esquivo no canto dos lábios e o retorcer teimoso dos bigodes, iluminavam-lhe as feições com um clarão colérico.
Ao depois de sentada ao seu flanco, impulsionando para traz a cadeirinha de balanços, Violante provocou-o...
— Faze a tua cena.
— E não é sem tempo.
— Por que te deixaste enganar se sabias de há muito e se não é sem tempo?
— Facilidades.
— Os grandes generais perdem sempre as batalhas porque facilitam. E o homem casado não tem direito a facilidades.
— Bem o sei... Quando penso no erro do meu casamento, sofro mais do que Orestes no remorso do seu crime lembrado sempre pelas erynias. Uma existência inteira para passar escravizado aos laços de uma união infeliz!... Maldita hora!
— Ah!... ah!... ah!... ah!...
— Sorris...
— E então? Hei de chorar para te sentires bem na opressão que me fazes?
— A minha vida depois que me senti enganado...
— Não tem sido menos nem mais infernal do que a minha depois que conheci o teu adultério...
— Insultas-me ainda em cima, Violante?
— Não te insulto. Repilo as tuas agressões, termo por termo. O que eu digo é que o mesmo direito que tem o homem de trazer o corpo escarolado e perfumoso para agradar às amantes, tem a mulher de...
— Não dize, Violante, a indignidade!
— Por que não dizer as coisas como elas devem ser? Só depois que senti a tua ausência do lar...
— E confessas o delito?!...
—... só depois que conheci a tua amante...
— Mentes, mulher!
—... só depois que fui ver onde entras, todas as manhãs, quando daqui sais...
— É horrível, Violante!
—... só depois de ver-te partir de lá e a tua concubina despedir-se de ti com um olhar de escândalo e tu com gestos de lastimável escravidão...
— Tu viste?
— Sim... só depois de ter a certeza de possuíres uma amante...
— Poupa, Violante, essa frase...
—... rendi-me voluntariosamente a um dos muitos homens que me faziam a corte, sabendo-me uma mulher, infeliz como outras muitas, esquecida no lar pelo marido libertino...
— É demais!
— Porque tu o quiseste. Abandonaste a tua casa. Dias inteiros passei num isolamento de aborrecer. Entretanto, fora diverso o teu proceder nos primeiros tempos de nosso casamento. Quando saías, mal eu te pensava na rua, mal eu começava a sentir a tua ausência, estavas de volta. Fui-me habituando a essa Constância fictícia. No dia em que te retardaste, pela primeira vez, chorei e nem soube, porque nunca te perguntei, a hora em que tornaste da rua... Onde estiveste? Nunca quis saber. E, até hoje, nunca te pedi a menor palavra sobre o teu procedimento...
— E como homem, senhor pleno de seus atos, eu te negaria informações.
— Pois bem! Para evitar essa negação, nunca tas pedi, ciente e consciente de que sobre o meu procedimento, dentro do nosso lar, não te devo satisfações... São elas por elas...
— Abusas...
— Corrige-me se puderes... Não és o meu marido?... Toma conta dos meus atos! Soubeste que te trair?... Mata-me, ou expulsa-me de teu lar. Faze o que entenderes, certo de que atrás de mim haverá quem vingue as tuas incontinências e perversidades...
— E sabes quem é a minha amante?
— Se sei, Simeão?!...
— Crias um conhecimento para justificares a tua falta. Mentes, pois: não conheces ninguém...
— Só com o riso!... Ah!... ah!... ah!...
— Toma tento, Violante: enveredas por um caminho em que a minha paciência se esgotara afinal...
— Ainda em cima me ameaças?
— Sou senhor dos meus atos, dono de minha casa, e exijo que me confesses tudo... Quem te mentiu que tenho uma amante?
— Ninguém!
— Ninguém, como?
— Desconfiei e fui ao teu encalço...
— Não falas a verdade, Violante.
— A certeza das coisas é adquirida quando nos abeiramos delas. Moléstias mortais, por miasmas exalados dos paus, só as contrai quem lhes vai à beira. Acompanhei-te os passos... Foste ao subúrbio... Olhas-me agora atravessado? Nega então que te falo a verdade como ela é?!... Por favor, desmente-me, se és capaz...
— Juro-te que não sei do que se trata.
— Perjuro!... Então, toda a manhã não vais daqui à casa de Idália... Não me interrompas, não... toda a manhã, não passas lá horas esquecidas, quando sais não fica ela por traz da gelosia a acenar-te e tu a corresponderes-lhe os acenos de apaixonada despedida?
— Ousada! Além do mais, injúrias à mulher de um amigo da nossa família...
— E que é a tua amante...
— Pois se é, está tudo muito bem... Escolhi-a por minha muito livre vontade... Constou-te já que eu tivesse desrespeitado o nosso lar? As minhas obrigações maritais concluem-se, quando saio, na porta da rua, e começam, quando entro, no mesmo ponto em que as deixei... Portas a dentro, estou eu casado, e arrependido de ter renegado a Jessy a quem jurei culto eterno, aliás, em tempos melhores... Casei por uma suposição de momento: a solidão de solteiro era um suicídio de todos os dias. E só não me enganei em supor que o matrimônio me facilitaria relações difíceis antes de ter as qualidades de senhor duma mulher... O mundo inteiro me foi pequeno sempre que tive em mente a tua companhia, e, inda hoje, Violante, se me lembro de ti, o maior prado é um pequenino jardim, o maior céu é a entrada de uma furna... A companheira é um tormento. Tomei uma amante... mas, dentro desta casa, fui sempre o mesmo homem respeitador...
— Outro tanto te alego eu... Mentirá aquele que disser me ter visto, sorrateira ou clandestinamente, embuçada ou mascarada, penetrar em lugares escusos, ou ao lado de algum homem que não fosses tu... Casei-me por inexperiência... Supus ser inextinguível a paixão momentânea que ditou o ato de meu infortúnio... Escravizei-me enquanto o meu marido também foi meu escravo... Libertou-se ele, libertei-me eu... Adquiriu uma amante...
— Retém-te, Violante!...
— Não! Hei de dizer-te como tu me disseste... Ninguém pode viver longe do pecado depois que pecou uma vez... Também tenho um amante, Sr. meu marido!...
— Intolerável!
— Também tu o és!
— Adúltera!
— Deixemo-nos, Simeão, de ápodos... Tenho língua e liberdade para tos devolver todos, um por um...
— Saber-me traiu...
— Nada mais natural: queimou-te a brasa com que me queimaste... Quando nada, não terás de lastimar a alarvidade da tua esposa... Foi uma mulher digna do marido que lhe deram...
— Sinto faltar-me a luz da vista...
— Impressões, Simeão.
— Pois é justo que me consinta enganado?
— Não nos desonramos...
— É um consolo ridículo.
— E que dirias tu se traída eu não te traísse igualmente?
— Diversa é a situação do homem, Violante.
— O casamento nivela os direitos de ambos os sexos... Espontaneamente nos submetemos a esse regime de igualdade...
— Doloroso!
— Assim exclamei, Simeão! Agora, porém, me sinto melhor: não me enganaste, e isto deve ser glorioso para ti, enganamo-nos...
— E o teu amante?
— Dispensa sabê-lo...
— Ah!... Repilo a lembrança que me ocorre... Não, não é possível!... O massagista...
— Rende justiça à tua mulher, Simeão! Pois não vês que eu me não vingaria de ti amando um homem indigno por todos os títulos, que te fizesse corar perante a sociedade, e que me fizesse enrubescer diante de ti?
— Então... Desabafa-me!... Sê completa!
— Insistes em conhecer tudo?
— Não duvides que o quero de coração.
— É Lourival...
— O marido de Idália?...
— Decerto.
— Ah! como somos, do modo mais vil, dois espelhos que se refletem conjugadamente...
— Mas eu estou vingada...
Interrompendo-os, a criada de copa, do lado de fora do salão, perguntava aos harmonizados esposos, se podia servir o jantar...
E quando a sala se reabriu, reinava ali completa paz...
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