Os anjos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet renaissance, sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de porcelana chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rum da Jamaica.
Agora, parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Rafael.
Júlio, falando baixo, inclina-se mais, ainda mais:
— Então, viscondessa, então?
Ela, para desviar a conversa, pergunta uma banalidade:
— Diga-me, senhor Álvaro, o senhor, que é pintor, deve saber isso... Por que é que, em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas?
De canto a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde:
— Nada mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito; damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o símbolo da imaterialidade...
Mas o poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, adianta-se até o meio da sala:
— Não é só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação do caso...
Tomou um gole de rum, e continuou:
— Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade...
— Depois do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — por quê?
— Já vão ver!
E Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu:
— IX. Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselhar-lhes que se deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles...”
Houve um silêncio constrangido no atelier...
— Aí está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só tivessem cabeças e asas...
A viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou:
— Shoking!
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