O último Concerto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Vi-o
pela primeira vez no teatro de Santa Isabel, em Pernambuco, em uma noite em que
a companhia italiana, dirigida por D. José Amat, dava o Barbeiro de Sevilha, a feiticeira pérola da coroa rossiniana.
Nada
tem a minha história com a arquitetura ou com a empresa lírica do teatro
pernambucano. Deixemos, pois, o edifício do Santa Isabel, que era
graciosíssimo, e o empresário Amat, que ouve a esta hora os gorjeios vibrantes
da Adelina Patti, para nos embebermos unicamente na essência que produziu este
conto fugitivo e real, como a imagem da vida comum. Às oito horas em ponto
apoderei-me da minha cadeira, pouco distante da orquestra. O regente moveu
agilmente a batuta e os instrumentos entraram em campo, atacando com brio e com amor a introdução da ópera monumental.
Eu havia chegado da Corte poucos
dias antes, e não estava disposto a perder a mais sutil particularidade da vida
elegante de Pernambuco. Na véspera gozara os suaves eflúvios das auras do
Caxangá; na antevéspera dormira em Apipucos, com as janelas do quarto abertas
aos quatro ventos do céu e ao melancólico clarão da lua aventureira.
A
orquestra deu-me desde o princípio a conhecer a inteligência dos professores
que a compunham e do maestro que a regia. A introdução do Barbeiro, viva, cristalina, eloquente, ora sentida como um amuo
entre lágrimas, ora turbulenta como as gargalhadas de uma infância traquinas,
prendia a minha atenção de turista à fiel interpretação musical da joia de
Rossini.
As
senhoras nos camarotes, cheias de interesse, de pedrarias e de sorrisos,
aspiravam os sons diáfanos das originais harmonias; os dillettanti sentavam-se caprichosamente limpando os vidros do
binóculo e o cristal dos pince-nez
indiscretos.
No meio
da grandiosa ouverture, a flauta
incumbida de um solo brilhante espalhou com uma etérea onda de melodias o
profundo silêncio da atenção e do êxtase em todo o teatro.
Nos
camarotes os leques colheram as buliçosas asas; na plateia os murmúrios e os
diálogos cessaram como por encanto, à primeira nota do mágico instrumento.
A
flauta era acordada por sopro de mestre, uma brisa inspirada percorria-lhe o
misterioso tubo, extraindo daí cardumes de sons peregrinos que voavam em redor
de todas as almas como um bando de segredos divinos.
Não
pareciam notas de instrumento tangido por força humana, pois só o vento que
surpreende o eco, só hálito da tarde que desperta o arvoredo possuem vozes
assim, tão macias, tão brandas e tão magoadas.
As
palmas na plateia e os lenços nos camarotes receberam os últimos ais do predileto
instrumento.
Foi tal
o sucesso, que por um minuto o regente suspendeu a orquestra em massa.
—
Bravo, Salustiano! — gritavam as vozes frescas da mocidade acadêmica.
— Viva
o Salustiano!
— Bis!
Bis!
— O
solo!
— O solo, Salustiano!
Recrudesciam
as palmas, multiplicavam-se os bravos, e os aplausos, de animados que eram,
chegaram a tocar a veemência do delírio.
Não
houve remédio; apesar do olhar trôpego do delegado e de cinco ou seis fardas
imponentes do camarote policial, o regente da orquestra voltou a página da
partitura, e a meiga flauta, a adorada flauta, a flauta tentadora, ergueu-se de
novo como um incenso de melodia naquele religioso silêncio do amor e da
admiração popular!
Quando
precipitaram-se as novas ovações, no final do solo, Salustiano levantou-se do
fundo da orquestra e inclinou a cabeça comovida perante o público, arquejante
de entusiasmo.
Era um
rapaz de 22 a
25 anos, pálido e formoso como aquele Rafael de Lamartine, cujo retrato todos
nós gravamos na nossa alma, depois da leitura das castas estrofes do mais
inspirado livro deste século.
Fulgurava
em seus negros olhos o tranquilo astro do gênio, que derrama sobre as
fisionomias favoritas da divindade uma aurora imortal. Ele sorria tímido quando
saudou o público, e a flauta estremecia em suas mãos, como o arco da rabeca
entre os dedos de Paganini na hora dos supremos triunfos.
Momentos
depois, ergueu-se o pano, e Rossini, auxiliado por uma ruim companhia
ambulante, apoderou-se da atenção pública.
Menos
da minha; durante todo o primeiro ato não afastei os meus olhos do semblante
pensativo e meigo de Salustiano.
CAPÍTULO 2
Quatro
meses depois, batia eu à porta da casa nº 54 da rua da Roda, onde
morava Salustiano em companhia de sua mãe, e de uma raquítica megera, que lhes
servia de criada. Já nós nos dávamos com essa franca e cordial expansão da
mocidade, tão pronta a entregar-se e a sacrificar-se entre dois sorrisos
Ele
estava de cama, atacado por uma febre violentíssima. Quando me abriram a porta,
saía o médico. A velha mãe do artista apertou-me as mãos afogada em lágrimas e
soluços.
—
Ânimo!
— É o
que lhe digo — acrescentou o médico, continuando o meu pensamento; — o moço,
embora gravemente enfermo, salva-se com toda a certeza.
— Deus
o ouça, meu senhor!
— Mande
já a receita à botica, e não se esqueça de ministrar-lhe a beberagem: um cálix
de meia em meia hora.
— Vá
descansado, Sr. doutor
A velha
apresentou-me ao descendente de Esculápio. Estendemo-nos as mãos, e ele
chamando-me de parte.
— É
conveniente que o senhor fique por aqui até a minha volta. A febre é
traiçoeira, e se o delírio aumentar, não há braço de mulher que contenha o
Salustiano.
— Com
todo o gosto fico doutor. Interesso-me por este moço, e se for necessário
passarei a noite inteira ao pé dele.
—
Bravo. Vou mais tranquilo, adeus. Pouco me demorarei.
Penetrei
na alcova do doente, impressionado deveras. A luz da velha lâmpada, posta
discretamente na penumbra, aclarava em moles raios o silencioso aposento.
Salustiano
estava lívido como um cadáver, e de sua boca entreaberta escapava-se o silvo
agudo da respiração intermitente e febril. Os seus olhos meio cerrados nadavam
em luz, e uma crispação nervosa sacudia-lhe às vezes o corpo da cabeça aos pés,
como ao contato de uma pilha de volta.
A mãe
do artista, sentada em um canto da alcova, ora limpava as lágrimas, ora
desfiava, murmurando, as contas negras do rosário.
O
quarto do Salustiano era um genuíno quarto de boêmio.
Na
cintilante cal da parede viam-se duas ou três figuras de odaliscas e um retrato
de Pergoleso. Junto à cabeceira gemia uma carunchosa estante ao peso de uma
porção de livros de música e das obras completas dê Henrique Heine, seu
escritor predileto.
No meio
de tudo isso mortalhas de cigarros esparsas, dois cachimbos funambulescos e o
busto de Petrarca, coroado de rosas e de louros.
Sentei-me
defronte do doente e esperei. Um despertador colocado sobre a mesa, cheia de
garrafas de medicamentos, quebrava a mudez do quarto com as suas longas e
soturnas palpitações.
Pobre
Salustiano! Ali estava ele talvez às portas da morte, com pouco mais de 20 anos
e um surpreendente talento, digno da imortalidade na Terra e no paraíso!
Ninguém o acompanhava nos seus amargurados transes, senão as dolorosas lágrimas
maternas e o simples cuidado de um amigo, por assim dizer, da véspera, um amigo
como se encontra tantas vezes na mocidade, entre os rumores de um festim e à
beira de um túmulo insondável.
Eu me
prendera pela simpatia e pela admiração ao engenhoso flautista, e desde a noite
do Barbeiro de Sevilha Salustiano
abriu o rol dos meus mais queridos companheiros. “A la vie! A la mort!”, como era
a divisa do Antony.
Aquele
dia era um sábado. O sábado, em Pernambuco, desde o toque de recolher,
assemelha-se às mais formosas noites de Sevilha, em que dizem que os suspiros
do amor e os suspiros das serenatas cruzam até o romper da alvorada, através
dos flutuantes clarões da lua!
Enquanto
eu me perdia em tristes pensamentos com os olhos fitos no busto melancólico do
doente, parou pouco distante da casa um grupo, e os sons maviosos de uma flauta
acompanhada a violão espalham-se lentamente na sua atmosfera.
Salustiano
abriu os olhos e apertou com os dedos frios a cabeça abrasada.
Aproximei-me
rápido, e a velha correu ao meu aceno. Apoderamo-nos ambos das mãos do artista.
A
flauta na rua exalou mais plangente melodia, e as cordas vibrantes do violão
pareceram soluçar convulsivamente.
—
Ouçam! — murmurou Salustiano pondo o dedo sobre a boca. — É assim que começa o
hino! O grande hino! O sublime hino!
—
Salustiano!
— O
hino da mocidade! — terminou ele, caindo como uma massa inerte ao longo da
cama.
O
médico, que entrava, examinou atentamente o pulso do doente.
A
serenata estava no auge do entusiasmo.
CAPÍTULO 3
Salustiano
veio convalescer em minha companhia.
Aluguei
para esse fim uma pequena e graciosa casa em Olinda, onde acondicionei a
limitadíssima família do artista. Eu frequentava nesse tempo o quarto ano
acadêmico, e, depois da aula, voava ao meu silencioso sítio, em cujo limiar os
dois hóspedes recebiam-me como se recebe um irmão e um filho estremecido.
Olinda
é uma das mais encantadoras paragens do mundo.
Para os
amigos da solidão, da paisagem e do silêncio, nada vale aquela cidade
peregrina, plantada à beira d'água, e que contempla pensativa o mar, como a
noiva de um marinheiro à espera da adorada vela do seu amor.
À
tarde, eu e o artista sentávamo-nos em uma espécie de terraço que deitava para
o nascente, e líamos alguma coisa, quase sempre o Intermezzo de Reine, de que ele era apaixonadíssimo.
E enquanto
os navios singravam ao longe, e as jangadas perdiam-se na barra inflamada no
horizonte, a alma daquele sublime rapaz bolava como uma gaivota nas doces ondas
da inspiração e da poesia:
LV
A
floresta despertou ao som precipitado dos meus passos e eu vi as árvores
agitarem os ramos, murmurando piedosamente e compadecendo-se do meu destino.
LVI
Em
campos agrestes e desertos enterram-se os infelizes que se suicidam.
Ali
nasce uma flor azul; chamam-lhe a flor da alma maldita.
Parei
nesses campos e desprendi um suspiro. A noite estava fria e silenciosa. Aos
raios frouxos da lua, eu via mover-se brandamente a flor da alma maldita.
LVII
Uma
negra escuridão cobre os meus olhos, depois que os não a alumia a luz dos teus,
ó meu anjo idolatrado!
A
estrela do amor apagou-se para mim; vejo aberto um abismo diante dos meus
passos; oh! noite eterna, sepulta-me para sempre no teu regaço!”
............................
— E
haverá melhores harmonias do que as desta protetora lira? — dizia-me o
Salustiano, com os olhos úmidos e extáticos. Repara naquele brigue que aproa
para nós; vê como o clarão do sol no poente envolve-o como que de uma bênção
divina! Ler-se Heine, desta maneira, é gozar duas vezes a poesia; pelos olhos e
pelos ouvidos! Lê, lê!
Voltando
alguns capítulos do Intemezzo, eu
continuava:
LVIII
A
tempestade faz gemer a frondosa ramagem das árvores, a noite está pesada e
fria; eu atravesso o bosque no meu altivo e impaciente corcel. E enquanto o meu
cavalo galopa, os pensamentos que me borbulham na mente transportam-me aos pés
da minha amante.
Ladram
os cães, aparecem os criados com archotes; eu subo a escada, fazendo tinir as
minhas estridentes esporas.
Em um
aposento atapetado e resplandecente com a chama de milhares de luzes, no seio
de uma atmosfera serena e embalsamada, minha amante espera-me. Caio delirante
entre os seus braços!
E o
vento fustiga as folhas do carvalho, e elas parecem dizer no seu murmúrio
lúgubre:
"Para
que te deixas dominar, louco cavaleiro, de insensatas ilusões!”
O
crepúsculo, cujo véu obscuro caía lentamente sobre as ondas e envolvia a terra
silenciosa, interceptava-nos a leitura do poema.
A
velha, com medo do sereno, reclamava para o interior da casa a presença do
filho, e terminávamos a noite, antes de nos recolhermos, ele a seguir o voo das
mariposas em redor do lampião, eu a folhear as Ordenações do Reino e os contos de Nodier.
Um dia
Salustiano disse-me:
— Há um segredo na minha alma que
preciso te revelar. Um segredo profundo como o mar, e perigoso como ele.
Contemplei-o
atônito; nunca sua voz soara em meus ouvidos com tão fúnebre entoação, nem seus
olhos despediram tão lúgubres centelhas.
— Há um
segredo em minha alma! — repetiu o artista.
A
natureza parecia querer ser intérprete das confidências misteriosas de Salustiano.
O céu, pensativo e curioso, acendera todas as suas pupilas, e um milhão de
aragens molhava a asa no mar e nas flores, à cata de segredos. As ondas
sussurravam na praia alva e longa, a lua entornava o tesouro de mágicas
ardentias, e no mar alto vogavam, mal surpreendidas por nossos olhos enevoados,
as velas dos navios que abicavam ao porto, lutando com a maré e com os ventos
contrários.
Salustiano
tomou-me as mãos inquietas entre as suas:
— Crê,
meu amigo, um mistério profundo me persegue como a minha sombra, como o meu
sangue, como a minha alma. Dir-se-ia que Deus deu-me o gosto e o sentimento da
poesia unicamente para que eu medisse o espaço que a desventura ocupa no meu
coração! Amo, amo perdidamente uma mulher!
— E é
essa a tua desgraça?
— É,
sim; a minha desgraça está nesse amor. Não leste nunca a história de Bernardim
Ribeiro e as aventuras do Tasso, pobres vermes sublimes apaixonados por uma
estrela? Pois eu sou como eles. Estou apaixonado por uma estrela!
Salustiano
ergueu os olhos ao céu, respirando sofregamente.
— Que
estrela? — perguntei eu, gracejando. — Vésper, Mercúrio, Saturno, Minerva,
Vênus, Júpiter? Estarás apaixonado por Júpiter, Salustiano?
—
Júpiter, o rei dos raios? Justamente! O meu astro fulmina, meu caro, arrasa,
pulveriza, incendeia! Tu a conheces; é a mulher mais bela do mundo; e decerto o
anjo mais desejado do céu.
— Oh!
— Não
rias. Poupa-me o teu espírito hoje, e deixa que esta confissão corra pacífica e
suave como todas as confissões em que entra a alma.
— Está dito.
Conta-me a tua paixão.
— Não é
propriamente uma paixão mundana; não é o amor; não é o desejo; não é o
entusiasmo; não é o coração. É o êxtase e o misticismo. Encontrei-a um dia...
Mas para que recordar-te coisas que não podem te interessar absolutamente?
—
Continua!
A velha
chamou o filho por duas ou três vezes. Caía o sereno com o terno raio das
estrelas.
— Eu
sou pobre, como sabes; pobríssimo até; sou um miserável...
—
Grande termo! Um miserável!
— Um
miserável na extensão da palavra. O burguês que encontra na gaveta uma moeda de
vintém, e na mesa uma côdea de pão, é mais feliz do que eu. Muito mais feliz.
— Estás
hoje digno de um taquígrafo!
—
Ri-te, tu que possuis um pai, uma família e tens um correspondente que te
compra livros. Em vão, meu filho, em vão tentarás devassar com a vista
impotente o negro abismo em que se estorce a miséria! Ser proletário é pouco;
sentir a dor dessa lepra é que é horrível. Eu a sinto, Luís! Sinto-a com as
maiores torturas e com as mais amargas lágrimas!
Minha alma
pendia dos lábios vibrantes do artista, como um virtuose das cordas trêmulas de
uma rabeca ou do tubo de uma flauta Inspirada.
— A
minha estrela, esse astro fatal que conduz os poetas e os artistas, iluminou-me
o espírito e arremessou-me ao canto obscuro de uma orquestra, em cujo trabalho
mal chegavam minhas mãos a arrecadar o pequeno óbolo para o sustento desta
infeliz mulher que me deu a vida. Como eu invejei, como eu invejo Bellini,
Rossini, Mercadante, Donizetti, Beethoven e os outros mestres! Esses foram os
prediletos do Senhor, e as suas inspirações, bafejadas pelo sopro divino,
impuseram-se ao mundo com o fulgor dos fenômenos e a grandeza dos milagres!
—
Espera, Salustiano. Para ti é que o futuro reserva palmas e coroas. Verás.
—
Porque sou moço; não é verdade? Deixa-te disso. Eu nasci com a desventura
amarrada às costas, como o caramujo com a inseparável concha. Esta desventura
atroz é a minha existência; sem ela, eu morreria, embora nadasse em mares de
dinheiro e me reclinasse aos coxins da opulência. Há quem venha ao mundo para
ser banqueiro, quem venha para ser poeta, artista, bandido, parricida ou
milionário. É o destino, meu caro. O destino inexorável e fatal. Quanto a mim,
vim ao mundo com a seguinte sina: amar a glória impossível e a mulher mais
impossível ainda. Eis o caso do canto de Heine ou de Murger: um grilo amante da
estrela Vênus!
— E a
tua flauta, louco!
Os
olhos do artista chamejaram na sombra.
— A
minha flauta? É a minha perdição, é a minha tortura, é o meu abismo! Que de dores
tenho tragado por causa dela, Deus do céu! Foi em uma noite da Traviata — continuou ele, com a voz
vacilante e a face lívida, como um condenado que se confessa no último degrau
do cadafalso —, em uma noite em que o teatro estava cheio até a última galeria
e uma atriz festejada incumbia-se pela primeira vez do tipo da Violeta. Ela
estava no teatro...
— Ela?
— Não
me perturbes! — exclamou Salustiano torcendo-me a mão nervosamente. — Ela
estava no teatro. Bem defronte de mim; risonha, coberta de flores, de
brilhantes e de cetins voluptuosos...
No
fundo do camarote o pai contemplava-a com um olhar meigo e persistente. De seus
olhos escuros escapava-se a irradiação de um céu inteiro, quando a noite vai
calma e o mar adormece aos melancólicos afagos do vento! Por mais que meus
olhos a procurassem, ela entregava-se venturosa aos meneios do seu leque e às
frases perfumadas que um ou outro elegante, nos intervalos, dirigia-lhe em
furtiva visita. Subiu o pano no quarto ato. Toda a sua alma embebeu-se no
feiticeiro poema das lágrimas e das amarguras que em cena se desenrolava. Da
pupila úmida desprendia-lhe um terno lampejo, e sua boca entreaberta deixava
escapar suspiros mais chorosos e puros do que todas as melodias de Verdi...
Incumbido do acompanhamento da célebre romanza
final, estremeci tomando a flauta, como um assassino quando levanta o punhal
sobre um peito indefeso. As luzes do salão multiplicaram-se à minha vista
ansiosa; os aromas invadiram-me vertiginosamente; orquestra, teatro, luzes,
público, Verdi, artistas, tudo desapareceu ante meus olhos paralisados, e só
ela, ela só, erguia-se na noite tempestuosa de minha alma, à semelhança de um
astro que rompe o nevoeiro da chuva ou o sorriso de uma mãe que transparece
através de nossas mais tormentosas lágrimas!...
A prima-dona volvia o olhar assustado para
a orquestra; o regente agitava a batuta; o povo murmurava... Que tinha eu com
esse mundo estúpido, incapaz de compreender-me?
O
sangue fervia-me nas artérias; a luz fugia de meu espírito; palpitava-me sôfrego
o coração, e com a vista cravada nela, que, como todos, me contemplava
indiferentemente, deixei cair das mãos a flauta inútil, saboreando o prazer
inefável da minha ventura, das minhas dores, dos meus triunfos e das minhas
alegrias simbolizadas naquela criança esplêndida e cruel! Arrancaram-me das
mãos o maldito instrumento, e não sei como continuou o espetáculo.
No dia
seguinte lembrei-me da ridícula cena, enquanto minha mãe chorava à cabeceira de
minha cama e o médico estudava-me o pulso e a cabeça.
—
Salustiano! — exclamou a velha pela centésima vez. Levantamo-nos ambos e
dirigimo-nos ao interior da casa.
O
artista disse-me ainda quase ao ouvido:
— Eu te
hei de mostrar. Se morrer em breve, crimina-a porque morro por causa dela.
— Ora!
—
Morro.
CAPÍTULO 4
Salustiano T., ao autor.
A bordo
do Cruzeiro do Sul, 20 de outubro de 186... Meu caro Luís. — Vou deixar-te esta
carta na agência dos paquetes nacionais, no Ceará, em cujo porto fundearemos
amanhã, se não falharem os cálculos do comandante Alcoforado. O mar está
furioso; o vapor joga como um endemoninhado e o vento norte assovia
arrogantemente nas gáveas e nos mastros despovoados.
Que
tristeza, meu caro! Que tristeza apodera-se de minha alma e que dolorosíssima
saudade! Desventurada existência de artista! Hei de estar sempre exposto a
todos os perigos e contrariedades para conseguir um pouco de pão, enquanto os
imbecis comem à farta em lautos banquetes.
Na
realidade, vale a pena correr atrás da glória. Porque, digamos em confidência,
eu amo a glória e o triunfo com uma fatal persistência e um inaudito arrojo.
Que queres? É o único meio de aproximar-me a ela. A glória é uma escada de luz que devora o espaço aberto entre
as ervas e as estrelas.
O mar
geme neste momento como um moribundo impenitente. O vento diz coisas lúgubres,
zunindo de encontro aos capacetes flutuantes das ondas, e o horizonte
estende-se sobre nossas cabeças, escuro e fúnebre como uma ameaça.
O comandante por muito favor
concedeu-me o seu beliche, onde eu escrevo-te estas mal amanhadas linhas. O
Byron foi um doido quando teceu ditirambos engrandecendo o enjoo, e o meu
adorado Henrique Heine no mar do Norte mentiu dando ao Oceano qualidades que o
pobre velho nunca teve nem terá. Poetas! Poetas! Desculpa se te toco na ferida.
Tens
ido ao Caxangá? Tens ido a Apipucos? Dá lembranças ao fotógrafo alemão que me
fez o supremo benefício de me ceder um retrato, companheiro hoje da minha saudade
e das minhas veementes aspirações.
É o
retrato dela! Imagina que felicidade!
O retrato dela, pensativa e formosa
como um anjo que está recordando-se das primaveras eternas do céu!
Sei que
teimas em saber o nome da minha feiticeira. Desculpa-me o mistério. Tenho eu
próprio medo de pronunciá-lo a sós, aqui mesmo, no meio do mar e da noite. Poderiam
as ondas levá-lo e, espalhando-o em ouvidos indiscretos, revelarem o meu
criminoso segredo ao mundo.
Procura-a
nas melhores reuniões, nos melhores bailes, nas mais suntuosas festas, que a
encontrarás com certeza. Ela e a alma da beleza, e ao seu contato não há quem
deixe de sentir a influência magnética que os seres privilegiados exercem
geralmente.
Amaldiçoado
e bendito amor! Por que motivo a sociedade e o destino separaram-nos um do
outro com tanta crueldade! Ah! meu amigo! Eu daria satisfeito metade de meu
sangue para poder cair, rojar-me aos pés dela beijando entre lágrimas de divina
alegria as margens do seu vestido perfumado, ouvindo em êxtase a sua voz, que
me perdoasse.
Tenciono
demorar-me no Pará o tempo suficiente apenas para dar alguns concertos e matar
os desejos da minha mãe: ela ansiava por esta viagem; é uma paraense dos quatro
costados, que necessita de vez em quando saborear as aragens natais de suas
virgens florestas, sob pena de morrer aos poucos de nostalgia e de tristeza.
Pobre mãe!
Anteontem
fez um dia soberbo e o mar estava manso como a lanugem de uma ovelha...
Encostado à amurada do vapor, pus-me a contemplar o firmamento e uma velinha
branca que bordejava nas vaporosas plagas do horizonte. Lembrei-me de Olinda, e
senti mais do que sempre a tua falta, meu bom, meu único amigo! Qual será o
destino que o céu me reserva? A ventura não foi criada para mim, e parece-me
que as coroas do meu triunfo eram entrançadas com os goivos melancólicos da
morte.
Antes
que me esqueça, devo dizer-te: não estou bom, creio mesmo que estou bastante
doente. Vem a bordo um médico, o dr. Ramos, da Bahia, a quem pedi que me
auscultasse e aconselhasse. Disse-me que eram cismas minhas.
Cisma!
Pode ser, mas afianço-te que há momentos em que tenho medo de ficar doido.
Correm-me nuvens nos olhos, e um frio de morte apodera-se de meu corpo todo. Um
cortejo extravagante, imagens burlescas, e sérias, pensamentos lúgubres e
joviais, todo esse imbroglio
rodeia-me em sonhos e quando estou acordado, a ponto de me aterrorizar.
No meio
disso, porém, através dessas tempestades absurdas, fulgura o rosto e irradia o
sorriso daquela mulher como o arco da aliança, como os primas da minha
existência, submersa em um dilúvio de lágrimas. Adeus; é tarde, e sinto-me
fatigado. Lamenta-me e estima-me, hei de mandar-te contar os meus sucessos ou
desastres no Pará. Deus não há de ser mau para mim, que dizes? Conceder-me-á a
suprema ventura de morrer na terra em que ela habita, respirando pela última
vez os ares que lhe dão vida, mocidade e beleza.
Recomenda-me
ao Colas e ao Coimbra do Santa Isabel. Aperta-te as mãos o teu velho e saudoso
amigo
Salustiano T.”
Nessa
como em mais duas ou três cartas que Salustiano me escreveu, o espírito do
artista parecia vacilar; raras vezes seguia um pensamento judicioso, e desde o
momento em que sua pena lembrava a mulher adorada, vinha logo adiante uma
fileira de palavras extravagantes, apaixonadas, dolorosas, que refletiam o
estado anormal daquela miraculosa alma, tão digna de pairar na serena atmosfera
da glória e da riqueza.
Fui uma
noite ao Clube Pernambucano. Intrigava-me deveras o mistério dentro do qual o
artista metera o seu amor, com o ciúme da concha quê acoita a pérola e da onda
que sepulta as bagas do coral.
A
mocidade impelia-me à descoberta do segredo, e nessa noite a nova diretoria do
Clube abria os elegantes salões com um opulento baile.
Entrei
às 11 horas e percorri avidamente com os olhos o grande salão festivo, em que
cruzavam-se gazas, casacas, diamantes, flores e sorrisos. A orquestra enchia o
ar de harmonias arrebatadoras; um denso aroma de cravos e rosas pejava a tépida
atmosfera; e os leques adejavam como asas fugazes em plena primavera de amor.
Passava
no turbilhão uma menina formosa, de olhos mortos e seio ofegante. Será esta?
perguntava eu a minha alma curiosa. Mais adiante outra curvava-se sorrindo à
palavra lisonjeira do cavalheiro. Será aquela? Ou aquela outra, que arrasta com
o aprumo de uma rainha a longa cauda dos vestido de cetim azul orlado de flores
de ouro?
À uma
hora da madrugada recrudescia o meu afã e o mistério ainda se conservava
coberto pelas suas mil dobras, ante o mau espírito quase desanimado. Dei o
braço a um amigo e fomos à janela principal receber o ar frio da noite.
Conversavam
vivamente duas meninas, duas crianças de 15 a 18 anos, no vão da janela. E não voltas
tão cedo para a cidade? — perguntava a que parecia mais moça.
— Não.
Eu adoro aquele sossego! Faz bem ao coração! Olha, esta vida de barulhos e de
testas cansa afinal! Houve tempo em que, se papai me tirasse da cidade, eu
morreria!
A outra
rui-se maliciosamente, batendo-lhe com o leque no rosto Ela ergueu os ombros
nus, com um desdém esplêndido e levantou os olhos ao céu. Era uma admirável
criatura, alva e contornada como um busto grego. Os cabelos enroscavam-se-lhe
em volta da fronte alta, formando na nuca um tufo espesso que se desmanchava em
ondas revoltas. Vestia uma simples toalete branca, envolta em primorosas
rendas, e da cintura à fímbria roçagante deslizavam-se-lhe duas orlas de trepadeiras
rubras como lágrimas de sangue.
Seus
lábios meio abertos pareciam estar sempre aspirando os aromas de um mundo
desconhecido.
—
Conheces esta moça? perguntei em voz baixa ao meu amigo.
— Já a
vi no teatro e nos Apipucos, creio eu. Mas no clube é a primeira vez!
Um
sujeito pingue e condecorado chegou-se ao grupo formado pelas duas meninas,
trazendo no braço um forte albornoz de caxemira cor de pérola.
—
Vamos?
A
esplêndida criatura voltou-se rapidamente.
— Oh!
papai! Vamos!
Um dos
diretores do baile aproximou-se agitado.
— Quê!
Já, Sr. Comendador?
— Estou
incomodada! — acudiu a menina com certa impaciência, recebendo a
capa, e curvando-se para o velho estender-lha nos adoráveis ombros.
Voltou-se
à companheira, e beijando-a nas duas faces:
—
Agora, até quando?
—
Breve!
— Qual!
Não há mais teatro lírico! Só aí é que podia ver vossa excelência! — disse ela
gracejando.
Senti
um aperto íntimo e brusco.
— É
ela; não há dúvida — exclamei.
Momentos
depois, parou um carro à porta do Clube, e a formosa, ao subir o estribo, leve
como uma visão, abandonava à brisa traiçoeira, que a conduzia até nós, uma vaga
de perfumes provocadores.
Os
cavalos fustigados arrebataram o cupê com uma velocidade pasmosa. Retirei-me
também do baile, lutando entre as suspeitas que me assaltavam.
Antes
de deitar-me, escrevi ao Salustiano as seguintes linhas.
“Descobri o teu segredo. Tens
razão, pobre Bernardim! Estás apaixonado por uma princesa!”
CAPÍTULO 5
Deixei
de receber inteiramente cartas do Salustiano. Esperei três, quatro, cinco
vapores da linha do norte. Fui a bordo do Tocantins, com cujo comandante
dava-me há tempos, e pedi-lhe notícias do artista.
— Na
capital não está — disse-me o comandante. A propósito, tenho aqui jornais do
Pará. Quer consultá-los? Pode ser que o orientem de qualquer forma!
Abri os
jornais e corri ansiosamente à seção dos espetáculos. Em vão! Não havia
vestígio do nome de Salustiano.
— Mas
de que Salustiano fala o senhor?
— De um
músico, um flautista, que partiu no Cruzeiro para o Pará.
Um
passageiro, interpelado pelo comandante, declarou-me que Salustiano dera
concertos na capital, onde fora muito festejado, e que partira para o interior
da província pouco tempo depois, em companhia de sua mãe.
— E
conheceu-o? — perguntei com crescente interesse.
— De
vista apenas. Assisti a dois concertos dele. É um gênio!
— Um
gênio, tem razão. Foi muito aplaudido pelo povo?
—
Excessivamente. Era enchente certa no teatro toda vez que se anunciava um
concerto do Salustiano.
—
Obrigado!
Voltei
à terra impressionado.
Onde
estaria aquele mau amigo, aquele admirável talento, cuja imagem perseguia-me
com a persistência incansável da figura da mulher amada, que não nos abandona
um minuto sequer? Nessas vacilações de espírito agitei-me durante dois meses
largos e aborrecidos.
Raiou o
dia do carnaval, e o teatro de Santa Isabel anunciou pomposos bailes de
máscaras.
No
domingo gordo à noite dirigia os meus passos para o largo da Princesa. A
fachada do formoso edifício do Santa Isabel, iluminada e florida, trazia-me à
mente as misteriosas festas do serralho, em que em uma hora se goza tudo quanto
se chega a saborear em dois anos nas cinco partes do mundo.
Os
mascarados atropelavam-se à porta e o saguão regurgitava de povo. A música
derramava no ar calmo da noite os seus inúmeros encantos e as suas infernais
tentações.
Ornado
apenas com a máscara insulsa que a natureza me concedeu, recebi o meu bilhete
de ingresso e afastei a mole ruidosa para entrar no salão.
Entrei.
Não
havia começado o baile ainda. Cruzavam-se os máscaras e os curiosos em várias
direções, e a orquestra, incumbida de atiçar os sentidos populares, repetia,
tentando os folgazões, a primeira parte de uma quadrilha provocadora.
Despejavam
os lustres torrentes de fogo; dos vasos acondicionados junto aos grandes
espelhos escapavam-se vagas de aromas diabólicos; o segredo preparava no meio
de toda essa perigosa atmosfera as suas cem garras diamantinas e os seus
irresistíveis filtros.
Às dez
horas em ponto formou-se a quadrilha, e o maestro Colas acenou com a imperial
batuta à sua harmoniosa falange.
O que é
o carnaval, sabem todos os que não têm vivido dentro de um ostracismo imbecil,
separados da humanidade turbulenta e ativa.
O baile
de máscaras é o resumo do baile da vida.
O dominó,
o pierrô, o debardeur, o polichinelo
representam excelentemente a criatura humana fardada de vários matizes e
sujeita aos indecifráveis sentimentos que a acometem.
A
loucura toma a vanguarda nesses pleitos revolucionários e brilhantes; o
espírito da mordacidade, da injúria ou da intriga, é sombra do veludo e do
cetim, exercita-se contra as vítimas que o acaso lhe sugeriu, e bloqueia o
senso comum de uma maneira insuportável.
Os
camarotes começaram a se encher desde as nove horas. Às dez e meia abriu-se um
na segunda ordem, e apareceu-me ante os olhos curiosos... quem? A desconhecida
do clube em todo o fulgor de sua imensa beleza.
Trajava
um vestido de cetim verde-claro com fofos alvos, e na cabeça sustinha um
toucado de margaridas e palmas verdes. Um colar de esmeraldas e pérolas
acariciava-lhe o colo palpitante.
Correu
com o binóculo a plateia, examinou os camarotes e disse, sorrindo ao velho, que
a seguia como uma sombra, não sei o que, que o fez também sorrir.
Depois
da quadrilha marcava o programa uma valsa. O delírio subia nota por nota a
escala do entusiasmo e da loucura. Cresciam os perfumes, multiplicavam-se os
movimentos dos pares dançantes, e a poeira que os pés levantavam no turbilhão
enevoava o espaço, aclarado vertiginosamente por oitocentos tubos de gás.
Ela, à
semelhança dos cisnes que nadam, e das estrelas que brilham, deixava-se guiar
indiferentemente pelas cambiantes ondas em que seu espírito se embalava.
Parecia-me a figura de Hebe nos resplendores do paraíso, desmanchando ao
furacão dos ventos e das harmonias a basta cabeleira desgrenhada.
Seus
olhos seguiam as danças sem luzirem de febre ou de interesse natural na
mocidade; seu peito largo e nu respirava como de costume, e o leque abria-se
mansamente como uma nuvem alva sobre os seus lábios distraídos.
Alguns
máscaras procuraram com ditos tolos e lembranças banais arrancar-me à espécie
de misticismo que me subjugava; meus olhos, porém, fitavam-se religiosamente
sobre aquela criatura, que, a meu ver, era a depositária da existência, de uma
das mais preciosas existências da Terra.
Lembrei-me
do Salustiano. Onde estaria àquela hora o inspirado artista? Ele daria de bom
grado metade dos dias futuros, unicamente para acompanhar como eu os zigue-zagues
caprichosos que o leque da elegante descrevia em redor de sua casta formosura!
A
meia-noite o delírio tocou a meta; a dança macabra entrava na festa estendendo
os seus braços medonhos e insaciáveis.
Ergui-me
de um canto onde me sentara, quase escondido por uma multidão de espectadores,
e dirigi-me ao saguão. Um polichinelo, cheio de guizos, deteve-me o passo e
enlaçou-me a cintura
— Que
fazes aqui?
Achei
originalíssima a pergunta, e desatei uma gargalhada.
— Não
deverias aqui vir! — continuou ele com a voz esganiçada e vibrante. — Isto é o
turbilhão, meu caro, o turbilhão em que ela aparece como o santelmo no meio dos
naufrágios!
Esforcei-me
por me desvencilhar do abraço.
—
Espera um pouco, impertinente folhetinista, e olha para aquele camarote!
O dedo
enluvado designava-me o camarote da menina do clube, a Laura do Salustiano, a
Laura ou a Beatriz, a inspiração que ia matando os sonhos e as alegrias do meu
desventurado artista.
—
Repara, repara naquela tranquilidade, e naquele indiferentismo! Assim fazem as
estrelas, não é verdade? Quando as ondas espumam e fervem loucamente! Malvada!
E há entre nós, entre cancanistas e valsistas, palhaços e macacos, um homem que
vive por ela, vive, sofre, agoniza e morre!
— Quem
é esse homem? — acudi eu intrigado.
— É um
homem! Rara avis! Bípede implume,
segundo Platão, estupor de vícios, segundo Voltaire. Ele corre talvez
arrebatado pelos furores da dança, contemplando-a através do prisma fatídico
deste baile celebrado em honra do nascimento do diabo!
O
polichinelo apertava-me a cintura em risco de partir-me as costelas.
— Mas,
admira a sua beleza! — prosseguiu ele dando à voz o tom da súplica e da
humilhação —, admira-a agora, agora que ela se debruça do camarote como um anjo
que espia as misérias da Terra! Tra lá lá, lá, lá! bonita valsa, sim senhor,
bonita valsa de Auber! Quatro bemóis, quatro bemóis tem esta valsa! Andante! Tra lá lá!
—
É um ébrio! — pensei comigo. — Com licença, meu espirituoso polichinelo, eu já
volto.
— Não
te deixo, não! Hás de ouvir-me até o fim! E dá graças a Deus, mal-aventurado,
que estás ouvindo um moribundo!
A voz
estrangulava-lhe na garganta opressa. Mais de 20 pessoas nos cercavam curiosas.
—
Aquela menina que tu vês, pura, branca, meiga, tranquila, é o cadafalso em que
se degolam uma por uma as ilusões de uma existência inteira! Eu armo-a! —
articulou ele em um soluço, sufocando a frase em meu ouvido.
Arrastei-o
para fora da sala. Ele seguiu-me trêmulo e as suas luvas queimavam com o calor
das mãos febricitantes. No botequim arrancou-se de meu braço por um violento
esforço e saltou sobre o balcão. Todos voltaram-se para ele, alegres, como se
esperassem um chorrilho de sandices.
— Eu
morrerei! — gritava o polichinelo, emprestando à voz variadíssimos tons. — Eu
morrerei por causa dela, mas que importa? Com todos os diabos! Que importa? Que
importa?
O
botequim enchia-se, à proporção que o máscara gesticulava falando.
— Vocês
todos olham-me contentes, e nenhum de vocês é capaz de me entender. Vão dançar,
imbecis. Dancem até arrebentar! Pulem! Saltem! Estorçam-se, aniquilem-se, oh
foliões do grande carnaval! Oé! Oé!
O
caixeiro servia conhaque a um freguês. O polichinelo curvou-se rápido, e,
apoderando-se do cálice cheio, engoliu o espírito em meio segundo.
Pungiu-me
cruel desgosto vendo-o cambalear.
A
orquestra no salão chamava os dilletanti
para nova dança. O botequim esvaziou-se pouco a pouco. O polichinelo continuou
com movimentos mais frenéticos:
—
Dancem, dancem, felizes idiotas! Para vocês é que se inventou o carnaval!...
Oé! O carnaval, a asneira, os pulos, a toleima! Offenbach, Strauss, Schulloff,
Goria, Ravina, Arditi e os outros! Deem lembranças, marotos, à bela dos olhos
grandes e das tranças flutuantes! Ela me mata, mas eu amo-a! Tra lá lê li! Adoro-a!... Sinto por aquela criatura um...
Subitamente
o polichinelo virou-se para a porta que desembocava no saguão e, estendendo os
braços, ficou hirto, pasmo e inteiriçado como um espectro... Segui-lhe os
movimentos e notei que entre as pessoas que se retiravam vinha uma moça,
coberta por um longo albornoz, cor de pérola.
Temi
conhecer a verdade. Lancei-me ao máscara que, preso de um violento ataque,
despenhava-se de cabeça baixa como um corpo decapitado.
Eu e
algumas pessoas presentes arrancamo-lhe os disfarces que o desfiguravam...
Por
baixo daquelas barbas ásperas e ridículas apareceu-nos o lívido rosto de
Salustiano inanimado.
CAPÍTULO 6
Até as
quatro horas da manhã Salustiano ardeu em um a febre implacável. Eu havia-o
conduzido para a minha casa na cidade, sem saber mesmo onde habitava a mãe do
artista, ou se ela estaria no Recife àquela hora.
O
médico que receitou ao doente era o antigo facultativo que eu pela primeira vez
encontrara na casa da rua da Roda. Ministrou-lhe uma simples beberagem e
exigiu-me o maior cuidado com o enfermo.
— Este
rapaz acaba mal! – disse-me ele tristemente. — É a sina dos artistas e dos
poetas — continuou com um doce sorriso: — o corpo humano não pode suportar por
muito tempo os voos da essência divina.
— E
haverá perigo?
— É de
crer que não. Isto passará com facilidade... mas depois? Quem sabe se amanhã um
novo excesso virá prostrá-lo deveras? Pobre Salustiano!
Quando
o médico se retirou, sentei-me à cabeceira do doente. Contemplei então o rosto
macilento, úmido pelas transpirações da febre, e fiz uma ideia dos sofrimentos
por que passava a desventurada alma daquele louco ideal. Tremiam-lhe os lábios
abrasados, de vez em quando, como se articulassem um nome, uma oração querida.
As mãos cadavéricas, cruzadas sobre o peito ofegante, pareciam já as de um
defunto à espera das fúnebres dobras do seu derradeiro lençol.
Auxiliou-me
um companheiro de casa, A. R. (lerá ele estas páginas?), a verter o remédio
através dos dentes cerrados convulsivamente.
Aos
primeiros clarões da manhã Salustiano abriu os olhos e volveu-os em redor de si
com espanto e terror. Apertei-lhe a mão ardente e pronunciei em voz baixa o seu
nome. O artista olhou-me longamente, sem pestanejar, e com os sobrolhos unidos,
como quem se esforça por atrair à memória lembranças fugidas. De súbito, porém,
fechou os olhos e tornou-se imóvel, qual se o torpor da moléstia o petrificara
completamente.
Descansei
a mão sobre o seu peito; o coração batia brusco e precípite como o de uma
criatura arquejante.
Decorreram
alguns minutos em que eu, com a vista no céu, em cujos flocos vaporosos a
madrugada estendia as suas harmônicas luzes, me entreguei às pesarosas
cogitações que o estado de Salustiano suscitava-me ao espírito preocupado.
Um som
flébil e suave partiu o silêncio do gabinete, espécie de rumor de asas
invisíveis ou de suspiros de criança, que sonha com os brincos do paraíso.
Outro
som, mais outro, outros ainda sucediam-se sem intermitência, com uma angélica
melodia. Voltei-me para o doente e vi que era de sua boca adormecida que as
notas se desprendiam...
Nuvem rosada
subia-lhe das faces à fronte inspirada e seus lábios frementes, como as cordas
sonoras de uma harpa, reproduziam os sons sem que a harmonia perdesse o mínimo
compasso e a menor partícula de doçura.
Os
lábios despediram notas mais rápidas e seguidas, entrelaçavam-se os ais e as
melodias com uma formosura igual à dos concertos das aves escondidas na sombra,
à hora do crepúsculo, que é quando a natureza enlanguesce e os pássaros cantam
os triunfos do dia que desmaia.
Assim,
em cardumes misteriosos, em serenos adejos em voos peregrinos e castos, o
artista criava, sonhando talvez com a glória, um dos seus mais caprichosos
poemas musicais. Eu pendia extático dos lábios vibrantes, e meu coração
banhava-se nas águas lustrais daquelas harmonias com uma ânsia sobrenatural.
Pouco a
pouco os sons diminuíram, estremeceu a boca terminando o suspiro da última
nota, e o silêncio foi interrompido apenas pelos sussurros da natureza que
despertava.
Os
campanários soavam em todas as igrejas e a luz entrando pelas janelas aclarava
ao mesmo tempo a cabeça imóvel de Salustiano e a roupa de polichinelo, envolta
em trapos e guizos, aos pés da cama.
CAPÍTULO 7
Como
chegara ele ao Recife sem que ninguém o esperasse ou pressentisse sequer?
Contou-me
tudo a velha a quem procurei no dia seguinte e com quem conversei largamente,
depois do restabelecimento de Salustiano.
— Este
rapaz é doido, meu senhor — disse-me ela.
Quando
chegamos ao Pará fomos muito bem recebidos por todo mundo, e até os jornais
falaram de meu filho como se pode falar bem de um artista. Salustiano parecia
estar satisfeito, alegre, trabalhava até cedo, quando não tocava no teatro, e
todas as tardes ia com os amigos passear pelos arredores, donde voltava corado
e forte. Imagine a minha felicidade! Nesse tempo, ele lhe escreveu?
—
Algumas poucas cartas, sim.
— Deu
concertos no teatro, onde foi muito aplaudido, coberto de coroas, versos,
flores que era um deus-nos-acuda! Não sei quem lhe mandou uma carta daqui do
Recife (nós estávamos fora de Belém) que o fez ficar triste de um momento para
outro que nem um castigo do céu!
A pobre
mulher enxugou os olhos molhados de lágrimas, enlaçando as mãos com um
movimento de dor.
— Uma
carta?
— É
verdade; uma carta amaldiçoada!
— E a
senhora não conseguiu fazê-la ler por alguém, para saber o que sucedia?
— Qual!
Ele rasgou-a logo depois, e ficou branco como uma cera. Na véspera de seguir
para o sul o vapor, Salustiano escreveu a noite inteira. Foi ele mesmo pôr a
carta na agência do lugar, e, voltando a casa, nem quis comer, nem quis sair
mais do seu quarto. Tinha-se tratado um concerto em casa particular e não houve
forças humanas que o fizessem tocar naquela noite.
— É
célebre!
— Veio
segunda carta; ele acabou de a ler e disse-me que partíamos para o Recife no
primeiro vapor.
“— Já!”
— perguntei-lhe admirada.
“— Se
me quer bem, minha mãe, vamos embora.”
—
Fiz-lhe a vontade; embarcamos no Paraná, que fundeou em Pernambuco mesmo no
domingo de entrudo. O mais, o senhor sabe...
— E ele
compôs alguma coisa lá? Trabalhou?
— Ah! É
verdade. Salustiano está fazendo não sei que música, que eu se pudesse punha no
fogo até lhe ver as cinzas!
— Não
diga isso!
— E
então, meu senhor? é uma dor de coração ver o rapaz como sofre quando põe-se
sozinho a cantar, a escrever e a tocar na flauta tudo aquilo. Sua, treme, fica
amarelo, e já chegou uma vez a desmaiar nos meus braços!
— Não
terá ele alguma paixão que oculta à senhora?
— Eu
sei! Se tem, renegada seja a mulher que está o matando.
—
Havemos de salvá-lo! Descanse!
— Agora
estou mais tranquila porque sei que o senhor e o Sr. dr. R. são seus amigos às
direitas!
— Pode
crê-lo. O que couber em nossas forças empregaremos a favor dele!
Entrava
o Salustiano da rua. Acompanhei ao quarto e sem mais preâmbulos:
—
Deixa-me ver o retrato de que me falaste na tua carta.
Ele
olhou-me enleado.
—
Perdi-o!
— Pior!
Deixa-me ver o retrato da moça que me mostraste na noite de Carnaval.
— Pelo
amor de Deus não fales tão alto! — murmurou ele voltando-se para a porta
entreaberta.
— Deixas
ou não?
— Para
quê?
— Para
convencer-me da verdade. Em Olinda prometeste-me dizer o seu nome; é inútil; eu
o sei na ponta da língua.
O
artista aproximou-se-me palpitante.
— Pois
é ela, sim, é ela mesma! — exclamou em um tom submisso e humilde.
— Com
quem te correspondias tão em segredo do Pará para Pernambuco?
— Foi
minha mãe quê?...
— Não
te importes. Qual era esse grande amigo por quem esqueceste aquele que te fala
neste momento?
— Oh!
Perdoa-me, vou contar-te tudo; é o coração em pedaços que tu exiges, pois bem;
ficarás satisfeito. Votei-te sempre a mais decidida amizade, e, acima de tudo,
uma gratidão profunda. Mas um acanhamento invencível apoderava do meu espírito
e do meu coração, quando tinha de dirigir-me a ti nessa mal-aventurada rede em
que embrulhei a minha existência. Receei as tuas censuras, aliás justíssimas,
e...
—
Procuraste outro confidente.
— Não
procurei; ele já havia surpreendido o meu segredo. Queres saber quem é?
—
Dispenso o nome de um mau amigo!
— Mau
amigo!?
—
Péssimo, traidor, cruel amigo! Todo aquele que não te arredar do precipício a
que te arrojas fatalmente, não merece ser contemplado no rol dos verdadeiros
amigos. E o que te dizia ele em uma carta que tanto te impressionou?
—
Dizia-me que ela fora pedida em casamento.
— E tu
tencionaste imediatamente assassinar o noivo, não é verdade?
— Não
gracejes. Nunca em minha vida senti tormento igual ao que a notícia me trouxe.
Cuidei morrer de desespero!
— Bom.
Responde-me agora; foste ao baile de máscaras na certeza de a encontrares no
teatro?
— Fui.
Dou-me muito com o Zebedeu, o bilheteiro do Santa Isabel. Soube por ele que o
Comendador alugara um camarote para essa noite, e...
— O
mais, meu ex-polichinelo, poderei contar melhor do que tu!
— Não
me recordes coisas que eu resgataria feliz com o preço de meu sangue.
—
Queres — resgatar o passado?
—
Esquecendo-a? Não!
—
Ouve-me, esplêndido louco. Estás matando a fogo lento tua mãe!
O
artista empalideceu e fitou-me, amedrontado.
— O que
esperas desse amor, Salustiano? O que esperas de semelhante empresa? Pois não
tens certeza ainda do impossível que te separa, a ti, artista e pobre, duas
vezes condenado, daquela moça milionária, aristocrática e filha de um
Comendador, quase Barão?
—
Tenho; mas amo-a...
—
Compreendo, descendente de Pirro, compreendo os teus entusiasmos pela formosura
dessa menina! És artista, e os artistas possuem o dom supremo de analisar a
beleza através dos prismas celestiais. Mas, em nome do senso comum, em nome de
teu futuro, em nome de tua...
—
Basta, pelo amor de Deus! Se minha mãe nos ouvisse!
—
Infeliz mulher! Ainda há pouco amaldiçoava à minha vista a criatura que te faz
sofrer!
— E o
que devo eu fazer então?
—
Esquecê-la!
—
Impossível!
—
Queres um conselho? Carrega uma pistola até a boca, dirige à casa dela e depois
de declarar-lhe o teu imenso amor, faz saltar os miolos ao teto!
— Seria
melhor isso! — acudiu ele com um olhar sinistro.
— Se as
almas são na realidade imortais, e se é certo que elas se reúnem em outro
mundo, uma hora depois do teu suicídio, a alma de tua mãe iria queixar-se no
céu da ingratidão de seu filho!
— Santo
Deus! Queres enlouquecer-me!
—
Responde-me, Salustiano; o que pretendes da mulher que adoras? Dize!
— Um
olhar, ou um sorriso! Um sorriso dela seria a minha eterna felicidade!
— Se
ela te contemplasse embevecida no meio dos teus triunfos artísticos, com toda a
sua mocidade, com todos os seus sorrisos inocentes e o seio arquejante de
entusiasmo e vida?
Ele
tremia da cabeça aos pés e acompanhava as minhas palavras como quem assiste a
uma revelação divina.
— Se
isso acontecesse, tu fugirias dela para sempre e tentarias esquecê-la um dia?
Juras?
— Juro
— balbuciaram os lábios deslumbrados do artista.
Corri
ao interior da casa e tomei pela mão a velha, surpresa e assustada. Conduzia-a
ao pé do filho, sem lhe dizer uma palavra.
— Jura
pela vida de tua mãe, Salustiano — exclamei eu, reunindo todas as minhas
forças.
Ele
curvou-se subjugado, e repetiu inundando as mãos vacilantes da velha de beijos
e de lágrimas:
— Juro
pela vida de minha mãe.
CAPÍTULO 8
Como
certas plantas enfezadas e maninhas, que ao primeiro raio do sol espalham ao ar
fulgurante os novos botões de recém-nascida primavera, a alma de Salustiano
começou a expandir-se feliz e animada, aspirando os ventos odorosos da
mocidade, e expondo-se às irradiações solenes do astro do futuro.
Não era
o mesmo aquele rapaz franzino, nervoso e apaixonado. Seus olhos cobriam-se de
uma luz magnética, e de sua boca, outrora silenciosa, as frases espirituosas e
vivas voavam em bandos infatigáveis.
A
princípio assustou-me a rápida metamorfose. Estaria curado? Estaria salvo? Por
um desses raros, mas conhecidos fenômenos psicológicos, o espírito do meu louco
amigo voltaria aos arraiais antigos, donde fora banido pelas Eumênides
insaciáveis do amor e da juventude?
Um dia
surpreendi-o à mesa do trabalho. Assim que me viu, debruçou-se sobre o papel de
música que enchia, escondendo-o com o temor com que o ladrão oculta as provas
do crime.
—
Salustiano, tu me enganas!
— Eu te
engano?
—
Engana-me, sim. Que diabo estavas aí a fazer de tão monstruoso e negro, que a
minha presença amedronta?
— Estou
preparando a minha salvação — disse ele com um sorriso banhado em torturas e
lágrimas. — Não era Isso o que querias? Não me preveniste ontem de que em breve
eu daria o meu concerto de despedida?
— Bom,
bom; copias músicas perfeitamente!
Os
olhos do artista fuzilaram como o flanco tempestuoso da nuvem.
— Não
copio músicas, não! Componho a última parte do Hino da Mocidade. Hino da
Mocidade! Deverá intitular-se Hino do
Desespero!
— Quê!
— Olha,
Luís — acrescentou ele, apertando-me as mãos com um carinho fraternal —, há
momentos em que tenho vontade de expor-me à tua maldição, aos desprezos do
mundo, aos desprezos dela — dela, entendes? —, e como um alienado que escapasse
às prisões do hospício, arremessar-me a seus pés pedindo-lhe a morte, já que a
vida não quer me abandonar!
Seus
olhos úmidos como os da ovelha moribunda fitaram-se dolorosamente em meu rosto.
—
Quebras o teu juramento?
—
Nunca. Sinto-me com forças de carregar o Atlas às costas e bater-me com o mundo
inteiro!
— Nesse
caso...
— Nesse
caso, pensas tu, é facílimo afrontar o meu amor e a minha desventura? Eu nem
sei, meu caro! Os tremendos sacrifícios importam a existência da criatura
humana!
— Mas,
qual era a tua intenção, se eu não te falasse?
—
Matar-me.
— E tua
mãe?
— Foi o
que me prendeu à beira da cova, a ideia de torturar o coração de minha mãe.
Desventurada mulher! Eu que por uma lágrima dela verteria sorrindo, gota a
gota, todo o suor do meu corpo e todo o sangue de minhas veias!
—
Bravo, Salustiano! És uma bela alma!
— Não
sou, não, porque arremessei-me ao indefinido, cuidando marchar em estrada
simples e comum.
—
Privilégio dos privilegiados, meu caro! Se nascesses recebedor de impostos ou
agente dos correios, nunca saborearias o indizível prazer de te expor à morte
por uma visão ou uma quimera fugitiva!
—
Perfeita visão, é verdade.
—
Perfeitíssima! Nem ela te conhece!
— Não
falemos mais dessas coisas que me atormentam. Vamos entrar em questões mais
sisudas. Foste chamado à lição na academia?
— O que
estavas escrevendo? Pergunto-te de novo.
— Nada;
uma despedida às fantásticas delícias da arte.
— Tão
cedo, meu poeta, foges ao afago das tentadoras musas?
— A
arte é um inferno, e o artista é o maior e o primeiro de todos os condenados. A
arte diz "voa" e prende os braços daquele a quem aponta os brilhantes
horizontes, com torrentes mais pesadas que o universo. Mais vale a obscuridade
que a luz nestes casos; prefiro a posição do morcego à da borboleta.
— Mau
gosto!...
— As
dores que eu tenho engolido e as mágoas que me acompanham São mais numerosas do
que os astros que brilham nas eternas constelações. Não te rias! Para ti que és
feliz, que vives satisfeito, que não amas, tudo corre às mil maravilhas, sem
tropeços, nem cuidados. Mas eu! Eu, cujos dias são pesados, um por um, na
balança das aspirações impossíveis, esforço-me como um miserável nos tortuosos
labirintos da minha existência, e se não fosse... o que tu sabes, a esta hora
estarias acompanhando a minha última viagem!
—
Louco!
—
Louco! Louco! Chama-me louco, e tens razão, porque não sentes o que eu sinto!
Sabes o que eu escrevia?
Salustiano
revolveu freneticamente os seus papéis de música, e estendendo-nos ante os
olhos ávidos:
— Este Hino — exclamou ele — é a minha desgraça
e a minha glória! Todos os meus pensamentos, todos os meus êxtases, suspiros,
encantos, entusiasmos, desilusões, quimeras, sonhos, febres, arrojos, quedas e
ascensões de mocidade e de talento, estão aqui, neste papel escuro, nestas
folhas garatujadas, que o primeiro varredor lançaria ao lixo se as encontrasse
à porta da casa!
— Sobre
estas folhas chorei eu muitas noites, e muitos dias erguia o meu pensamento anelante
como o poeta que traduz o último canto de uma epopéia, o matemático que
descobre a solução de um problema estupendo, e o mineiro que arranca da terra
convulsa o diamante envolto em sangue, suor e lodo! É o Hino da Mocidade! O Hino!
O grande Hino da Mocidade!
Todo o
seu corpo vacilava, como ao choque de uma carga elétrica, e os seus cabelos
negros em redor da testa larga e pálida voavam flutuantes, à semelhança das
nuvens obscuras que a tempestade revoluciona.
— Desde
o dia em que vi pela primeira vez aquela mulher, uma harmonia selvagem surgiu
do meu coração desvairado, e meus olhos começaram a descobrir, através das
lágrimas do meu amor, o sombrio e fulgurante fantasma da glória! Arremessei-me
à mesa do estudo e compus, compus, com o desespero do pobre que procura uma
côdea de pão ou do astrólogo que persegue no céu a cauda de uma estrela!
As
notas safam-me em borbotões, lavas, coriscos, raios, soluços, cóleras, que sei
eu?! Um completo extermínio e uma completa vitória de harmonias! Hás de ouvir na
flauta o Hino da Mocidade! É um
furacão! É um tenor, é um naufrágio!
Tentei
reproduzir as ânsias e as venturas supremas de minha alma deslumbrada! Às
vezes, crê, às vezes a correnteza de minhas dores assemelhava-se à corrente
caudalosa dos rios, quando a tormenta ruge e o relâmpago ensanguenta os ares!
Outras vezes, era o murmúrio da fonte que se parecia com o suspiro do meu amor,
o sussurro das flores ao afago da noite e ao resplendor das estrelas! As notas
embebiam-se no papel; os compassos galopavam-me ante os olhos ardentes como uma
legião de demônios e de fadas! Tudo entorpecia-me os sentidos! Tudo me agitava,
erguia-me, torturava-me, incendiava-me, enregelava-me, pois tudo me inspirava
como se Deus estivesse atrás de mim!
Repetidas
crispações nervosas acometiam-lhe os membros e o suor brilhava escorrendo por
sua face macilenta.
— Eu
executarei esta música sagrada e maldita adiante dela! Não é o que tu exiges?
Não é o que exige o mundo?
—
Ouve-me, Salustiano!
— Não te ouço, não! Deixa-me
contar-te tudo, já que o meu destino por tua causa...
— Por
minha causa?!
— Por
causa de minha mãe — acudiu ele, abrandando a voz —, deteve-se em frente de
suas mais fogosas esperanças!... o Hino
da Mocidade será acariciado por aqueles ouvidos divinos, e as vozes da
flauta angustiada confundir-se-ão no esplêndido concerto de primavera e de
inocência, que rompe do seu coração sublime! Oh! Feliz! Três vezes feliz e três
vezes desgraçado, artista que te sepultas com as tuas próprias mãos suicidas!
Apertei
em meus braços.
— Meu
amigo!
—
Quando é o concerto? — perguntou ele, transformando-se de súbito.
— De
hoje a 15 dias, pouco mais ou menos.
— Tenho
tempo. Vou estudar!
— Mas
por tua honra, vê o que fazes!
— Se da
prova final eu me salvar, acredita que conquistei o mais gigantesco de todos os
triunfos.
Salustiano
contemplou o céu profundo e luminoso:
—
Felizes os que não têm mãe! — murmurou ele surdamente.
— Estás
louco!
—
Felizes! Porque esses podem morrer.
CAPÍTULO 9
Nos
programas espalhados para o seu concerto, Salustiano fez inserir a seguinte
epígrafe:
CONCERTO
DE DESPEDIDA À ARTE
em
benefício
do
artista Salustiano Tenório
Procurei
no dia em que os jornais publicaram o primeiro anúncio:
— Que
diabo vem a ser concerto de despedida à arte?
Ele pareceu
perturbar-se levemente com a pergunta.
— Nada.
É um meio apenas de chamar concorrência. Sou americano, meu caro! Pertenço à
propaganda civilizadora do pufe!
Não é
preciso pufe para ti. O teatro vai encher-se pelo simples fato de te
apresentares ao público de flauta em punho.
—
Obrigado; mas é conveniente formar a estrada para se andar a gosto; o talento
só, caro mio, se realmente eu o
tenho, pode conseguir, e já não é pouco, morrer à fome em qualquer cantinho
imundo e negro!
— Mau!
Começas com as tuas descrenças oratórias!
— Não
falemos mais disso. Gostaste do programa?
—
Gostei. Estou ansioso por ouvir-te executar as variações dos Puritanos, de que o Colas fez-me ontem
as mais laudatórias ausências.
— Bom
amigo aquele! Mandou-me oferecer a orquestra grátis para o concerto.
—
Decididamente teimas em não me revelar um ou dois trechos do Hino, antes da execução em público?
—
Decerto, para causar-te surpresa.
— Creio
que seria difícil.
— Como?
Se nunca tu?...
— É o
que tu pensas. Parece-me que cantarolaste alguma coisa do famoso Hino na noite do Carnaval, enquanto
dormias, ardendo em febre.
—
Maldita noite! Causa de todas as minhas desventuras!
— Olha,
tenho às vezes ímpetos de desligar-te do teu juramento, Salustiano. Palavra de
honra!
— Cuidas
que me arrependi!
— Que dúvida!
— Não
me arrependi, não; mas sofro as dores de uma operação horrenda! Imagina! É o
mesmo que arrancarem-me, vivo e palpitante, com tenazes ardentes o coração do
peito!
— Mas
ficarás salvo depois?
—
Salvo!
Um
pálido sorriso vagou-lhe na boca desmaiada, e o suspiro cortou o lábio em
tímidos arpejos. Imediatamente, porém, o rubor coloriu-lhe as faces mórbidas e
um tremor nervoso sacudiu bruscamente.
— Vou
trabalhar! — exclamou ele.
— Por
que não cedes a algum copista a tua música? Salustiano olhou-me com o espanto
de um homem que surpreende as primeiras palavras de um doido.
— É que
o copista poderia errar um ou dois compassos — volveu ele, moderando-se
instantaneamente.
Deixei-o
no gabinete, de pena empunhada, e fui a negócio, no Recife.
Só os
delicados afagos de uma mesada iminente teriam o poder de afastar-me de
Salustiano. O correspondente esperava-me.
CAPÍTULO 10
Era a
segunda vez que eu penetrava no edifício do teatro de Santa Isabel, depois da
famosa noite de domingo de Carnaval.
O
teatro estava todo iluminado, e na zona diáfana em que se derramavam miríades
de estrelas de gás, flutuavam flâmulas e estandartes, prodigalidade excessiva
da parte do empresário, em honra ao Salustiano, o beneficiado da noite.
Enchia
o povo o saguão, e as carruagens enfileiravam-se no largo. Batiam oito horas
quando entrei. A muito custo conquistei a minha cadeira e corri os olhos por
todos os camarotes. Havia um desocupado, quase unido ao cenário, na segunda
ordem.
Os
músicos preparavam os instrumentos, e o regente Colas ainda não tomara posse da
cátedra presidencial.
Marquei
a cadeira e saí. O porteiro da caixa, meu conhecido desde épocas mais felizes,
não pôs dúvida em ceder-me ingresso.
— Hoje
não entra aqui ninguém – disse-me ele entre um sorriso de incredulidade e um
olhar de mistério.
— Oh!
oh!
— Foi
mesmo o Sr. Salustiano quem deu essa ordem.
— Mas
eu...
— Oh! O
senhor, é outra coisa. A casa é sua!
—
Obrigado, respeitável cérbero!
Salustiano
estava no camarim, enluvado, encascado, frisado, mas lívido como um defunto.
Com a
cabeça firmada nas mãos hirtas, ele parecia esquecer-se completamente do lugar
em que se achava, e de tudo quanto o cercava naquele momento. Ardiam duas velas
sobre a mesa, cheia de potes de carmim, pó de arroz, escovas, barbas postiças,
plumas multicores e os demais utensílios de teatro, de que tantos príncipes e
monarcas se têm servido durante o reinado de cinco atos de melodrama!
Chegavam
até o camarim os sons variados da orquestra que se afinava. O contra-regra
bateu palmas e o regente sentou-se de batuta erguida. Começava o espetáculo por
não sei que comédia traduzida do francês. No primeiro e no último intervalo
fazia-se ouvir a flauta do Salustiano; nos outros a atenção pública ia repartir-se
entre os talentos mais ou menos festejados de vários músicos pernambucanos.
A ouverture na orquestra fez estremecer o
busto pendido do meu taciturno amigo. Salustiano ergueu a cabeça, correu a mão
sobre a testa úmida, como quem fustiga uma asa agoureira, e, vendo-me,
aumentou-lhe a cadavérica palidez.
— Tenho
medo — disse ele com a voz surda e vacilante. — Medo!
—
Medo!?
— Sim,
meu amigo — continuou o artista apertando-me vivamente as mãos entre as suas. —
Sinto o terror na minha alma. Olha, o jogador que expõe em última parada o
derradeiro pecúlio de seus filhos, não sofre o que eu padeço agora!
—
Anima-te, rapaz! Deixa estas coisas para os romances de capa e espada!
— Não
brinques, pelo amor de Deus! Passei um dia horrível hoje! Estive
quase a transferir o concerto. Esqueci-me até, acredita! Esqueci-me da primeira
nota da música!
— Logo
te entusiasmas! O artista, Salustiano, é como o cavalo de batalha (salvo a
comparação), cria fogo quando ouve o primeiro clamor das trombetas guerreiras,
e aspira o sangue dos feridos! Quando soarem as palmas que te receberem,
ganharás alento, e o artista ocupará triunfante o lugar do homem!
— Deus
te ouça!
Ela não
veio ainda.
— Antes
não venha, meu filho! Vendo-a, a flauta cairá das minhas mãos covardes, e eu próprio
rolarei no tablado como uma massa inerte!
— Ou
erguer-te-ás na asa da inspiração, meu poeta, ascendendo ao paraíso da arte, do
amor e da mocidade!
Os
olhos dele fulguravam através das pestanas negras como a cauda do fuzil no meio
da borrasca.
— Fala-me,
que me dás vida!
—
Joga-se hoje o grande lansquenet da
tua existência, sublime mentecapto! Pede ao céu que o teu doublé seja em ouros, que é justamente a cor do sol e da fortuna!
Rindo-se
o artista, respondeu-me com uma energia fora do comum na sua natureza lânguida
e doentia.
— Estás
no teatro, minha mãe e o R.; tudo se fará.
— O R.
ainda não chegou, parece-me, mas ele virá com toda a certeza. Adeus; coragem,
coragem!
— Reza
por mim.
— Farei
o possível; mas nota que eu sou herege... na arte.
Quando
de novo entrei na plateia, volvi os olhos para o camarote, até então
desocupado. Dessa vez estremeci vendo na frente, com o alvo braço nu pousado no
parapeito do camarote, a tão esperada senhora dos destinos do beneficiado. Ela
estava fulgurante de beleza e de juventude. Sua boca vermelha e voluptuosa
entreabria-se em um sorriso admirável, e de seus olhos negros, como o crime,
escapavam-se irresistíveis cintilações. Cobria-a um longo vestido de cetim
azul, e em seus cabelos cintilava, como diabólicas pupilas, uma chuva de
diamantes, formando um diadema. Da mão dela pendia um grande cacto, borrifado
ainda de sereno.
Subiu o
pano. Enquanto se representava a comédia, uma comédia fútil e banal, olhei para
o camarote e vi que ela conversava, rindo com o velho, meneando a esplêndida
cabeça, soberana e pura como a da Palas mitológica.
Caiu o
pano e eu dirigi-me à caixa do teatro. Salustiano enfiava em surdina, na
flauta, escalas sobre escalas; os sons trêmulos e chorosos entrelaçavam-se como
os ais melancólicos de um rio à noite, ou os murmúrios do vento entre as ramas
espessas do arvoredo sombrio.
— Ela
está aí!
— Já a
vi! — exclamou o artista, com a alegria de um cego que torna a contemplar o
disco incendiado do sol.
—
Ânimo!
— Por
ora, tudo irá bem, creio eu. Pouco trabalho tenho. Para mais tarde é que peço
forças ao céu. O Hino foi composto
com o pensamento nela, e tremo à ideia de não poder interpretá-lo com alma!
— Mas
tu cambaleias, desgraçado!... Se te sentes mal, transforma-se o programa.
— Qual!
Na hora das grandes catástrofes ou dos grandes triunfos, a criatura humana é
menor e mais vacilante que o átomo!
A
orquestra deu o sinal. Corri à minha cadeira. Pouco depois dirigi os olhos para
o camarote; ela tinha-os presos no palco.
Subiu o
pano.
CAPÍTULO 11
Fez-se
um profundo e religioso silêncio em todo o teatro. Salustiano entrou em cena no
meio de uma salva geral de palmas, enquanto o regente da orquestra
entregava-lhe, em nome dos professores de música pernambucanos, uma gentil
coroa de louros.
Estava
pálido o artista como um sentenciado que aguarda o golpe do carrasco;
estremeciam-lhe os membros visivelmente, e por duas vezes a flauta, conduzida à
boca, resvalou mal suspensa dos dedos oscilantes.
O
público, sem compreender aquela súbita comoção, procurou animar o seu predileto
artista, fazendo-lhe soar de novo ao ouvido profusão de palmas e de bravos.
Só eu
possuía o segredo, o lúgubre segredo de tão misterioso enleio. Salustiano não
havia ainda erguido os olhos para o camarote fatal, e tentando descobrir o
sentimento que se apoderava dela naquele instante, notei com desgosto que a sua
misteriosa beleza, à semelhança da formosura das esfinges, não revelava a mais
sutil comoção ou o menor abalo.
A
orquestra lembrou o motivo dos Puritanos e deu começo ao acompanhamento. O
maestro Colas não despregava a pupila ardente do semblante demudado de
Salustiano.
Finalmente,
depois de um supremo esforço, a flauta deixou voar as primeiras notas, tímidas,
assustadas quase em murmúrio, como um enxame de mistérios suaves que têm medo
de ser surpreendidos. Pouco a pouco foi ganhando alma o instrumento e
entusiasmo o artista; pouco a pouco as notas mais firmes e vibrantes
percorreram em deliciosas escalas os tesouros harmoniosos desse poema dos Puritanos, tão solene, no meio dos seus
poéticos arroubos, e tão poético, em meio de suas lágrimas arrebatadoras!
A
plateia prorrompeu em retumbantes aplausos.
Cai o
pano, e dirigindo eu a vista ansiosa para o camarote, reparei que ela espalhava
do lábio coralino aquele desdenhoso sorriso, que jamais a abandonava.
Fiquei
indignado. Pois quê! Não haveria nada capaz de perturbar a eterna monotonia de
tão peregrina formosura?! Seria realmente insensível essa menina a tudo quanto
o céu formou para eletrizar as almas e produzir no coração humano o choque dos
santos entusiasmos e dos irresistíveis delírios?!
Alva,
tranquila, primorosa, como a mais bem contornada estátua de mármore, obra do
cinzel de Fídias, ela resistia com a impassibilidade das rochas ao fragor das
palmas, que saudavam o artista inspirado, e as ondas de harmonias divinas que
flutuavam através das luzes e do aroma, ora arquejantes como beijos
insaciáveis, ora meigas, castas, puras e ternas, como um suspiro entre lágrimas
ou as orações de um moribundo.
Fui
encontrar o Salustiano no camarim, abatido e mudo.
— Creio
que dou parte de fraco — disse-me ele. — Não posso mais.
—
Saíste perfeitamente nos Puritanos.
—
Pessimamente, deves tu dizer.
— Hás
de permitir que eu não saúde com grandes exclamações a tua, aliás
graciosíssima, modéstia!
—
Graceja, graceja, inexorável amigo! Oxalá não te arrependas do passo que deste!
—
Salvando-te?
— E
terei eu forças bastantes para arrostar tão tremenda prova sem sucumbir nela?
— A
imaginação dos artistas e dos poetas, Salustiano, é como o vidro do
microscópio; faz de uma pulga um elefante.
— Tu é
que pretendes transformar em rosas os espinhos que me cercam, mas meteste-me em
uma empresa impossível!
— A
propósito, quem vai tocar agora?
—
Ninguém. O Roberto canta a Serenada do D. Pasquale.
— Eu
tenho dito por aí cobras e lagartos a respeito do teu Hino.
— Maior
será a desilusão do público!
—
Veremos!
—
Responda-me seriamente: não fizeram fiasco as variações dos Puritanos?
— A tua
comoção serviu até de alvo aos aplausos, como viste!
—
Palmas de compaixão!
— Estás
insuportável, distintíssimo maestro!
Entrava
no camarim a mãe do Salustiano. Mudamos de conversa. Dois minutos depois, fui
ocupar o meu lugar nas cadeiras. O camarote estava vazio.
— Teria
ela ido embora? — perguntei a mim mesmo com terror.
O R.,
que veio me falar, disse-me que ela e o pai passeavam no salão. Descansei.
Enquanto se cantou a Serenada, e dois
artistas, um violinista e outro perfeito violoncelista ocuparam a atenção
pública, nem ela nem o velho dignaram-se vir ao camarote.
Desceu
o pano, e eu dirigi-me ao saguão para fumar.
O tema
da conversa entre todos era o Salustiano.
—
Tiraria a sorte grande? perguntava um interlocutor a outro. – Despede-se da
arte!
— Não
sei. Ali está quem nos pode dizer alguma coisa.
Referiam
a mim. O que fizera a pergunta era meu conhecido; encaminharam-se na minha
direção, e o curioso questionou-me acerca da despedida à arte, anunciada pelo
flautista.
— Ele
anda doente — acudi eu, encontrando felizmente a tempo uma resposta banal; —
quer tratar-se; vai para os sertões do Ceará um destes dias. Eis a explicação
do anúncio!
—
Coitado! Mal podia suster-se em cena, há pouco!
Salustiano
fechara-se no camarim, através de cuja porta ainda pude ouvir os sons flébeis
de sua flauta, recordando um ou outro motivo da música.
A mãe
do artista, que se sentara junto aos bastidores, chamou-me.
—
Parece-me que ele não está bom! — disse-me ela com cuidado.
— Por
quê?
— Não
sei, veja.
Salustiano
abriu a porta do camarim e saiu com a flauta na mão. Realmente causava dó
olhar-se para o pobre moço. Um terno sorriso, o sorriso do martírio resignado e
do glorioso sofrimento aclarava-lhe como luz celestial os traços desfigurados.
Ele
padecia atrozmente; sua alma a custo sustentava os ímpetos do coração opresso,
e a sua inteligência por um esforço quase sobrenatural acudia às urgentes
necessidades de momento; a flama do talento sobrepujava as aflições profundas
da existência dilacerada.
— O que
sentes tu?
Tive
desejos de arrastá-lo do teatro; dir-se-ia que ele agonizava.
— Nada.
Uma debilidade passageira.
—
Acabemos com isto, Salustiano! És ou não és um homem? Tens ou não tens força
suficiente para saltar sobre o ridículo que o teu misterioso sofrimento pode
provocar ante os olhos do público?
—
Ridículo; acreditas que seja ridículo isto?
E o
artista espalhou por um nervoso movimento os cabelos revoltos, como um brioso
corcel que se prepara para o combate.
—
Acredito que o povo não sabe acompanhar as peripécias extravagantes de tua
vida, e não poderá, portanto, desculpar-te as heroicas pusilanimidades. Cada um
pagou o seu bilhete de cadeira, plateia, camarote ou galeria no honesto e
louvável intuito de ouvir a tua flauta e admirar o teu talento. Ora, é pouco
airoso apresentares-te como tipo de romance perante uma multidão pouco amiga,
neste momento, de coisas imaginárias ou poéticas.
—
Basta. Eu não te envergonharei, nem me envergonharei também. Vai descansando —
continuou ele rapidamente e empurrando-me com brandura; — não tarda a subir o
pano... vai! Oh! É verdade; conduz minha mãe ao camarote.
A velha
persistia em ficar na caixa; Salustiano, enfadando-se, obrigou-a a subir para a
terceira ordem onde lhe havia reservado um lugar.
CAPÍTULO 12
Quando
eu me apoderei da minha cadeira, a orquestra executava os prelúdios da ouverture. Percorria a sala do teatro,
dos últimos camarotes às últimas gerais, uma espécie de ruído surdo e abafado,
tal como acontece na atmosfera, carregada de eletricidade, quando através do
pavilhão das nuvens a tempestade prepara-se para assombrar a natureza. Comecei
a ter sérios receios pelo sucesso do Salustiano. Seria eu culpado ou não por
haver insistido com o artista em levar-se a cabo uma empresa tão difícil e
escabrosa? Arrependia-me da minha ideia, e o meu coração febril pulsava-me
violentamente dentro do peito abrasado.
Terminavam
os últimos sons da orquestra quando ela chegou à frente do camarote. Sua mão
enluvada e graciosa sustentava sempre o hastil do cacto, cujas pétalas o calor
das luzes e da noite fazia arrufar em um melindroso recato.
Ergueu-se
o pano. A orquestra marcou os primeiros compassos do acompanhamento e as palmas
vibrantes saudaram a aparição do Salustiano. Os olhos dele e os olhos dela
encontraram-se de súbito e um flamejante clarão perpassou o rosto do artista,
que se hasteou glorioso como um cetro triunfante.
A
flauta, unida vertiginosamente aos lábios, desprendeu um trilo rápido, fugaz,
lancinante, que parecia ferir os ouvidos na passagem. Em seguida as notas
imponentes atacaram a introdução do Hino
com um valor e uma sonoridade admiráveis. Todas as vistas estavam presas em
cena, e um silêncio de morte pairava no ambiente luminoso. A pele úmida de
Salustiano brilhava com as luzes e a flauta arquejava-lhe nas mãos convulsas. Com
o busto meio pendido do camarote, a formosa criatura seguia a música,
animando-se pouco a pouco de nota a nota, de compasso a compasso, como uma
floresta virgem que desperta ao cântico matutino dos pássaros, e aos primeiros
raios do sol no oriente. Entrou finalmente o Hino, o grande, o festivo, o indizível, o maravilhoso Hino da
Mocidade! Era ele! Era a música, que em surdina cantarolavam os lábios túmidos
e febris do artista na noite do Carnaval! Os sons tumultuosos e doces,
tranquilos e revolucionários, calmos e tempestuosos, enroscavam, serpenteando
na atmosfera, serenos às vezes como a espiral de um perfume, e outras vezes
arrogantes, amedrontadores, esplêndidos e voluptuosos como as iras, os gemidos
e os beijos de um gigante.
A
plateia inebriada e pasma estendia as mãos para a cena... Salustiano crescera a
meus olhos; crescera prodigiosamente, assumindo a portentosa figura de um
semideus. Ele batia-se com a sua criação, lutava com o seu talento, arcava com
a fortaleza de sua alma, impetuoso, ardente, indomável, indescritível! As notas
voavam no encalço cristalino de outras notas, confundindo-se em turbilhões,
entrechocando-se, devorando-se, esvaindo-se em uma só e imensa harmonia!
Minha
imaginação aterrorizada e acariciada a um tempo, via desenrolar-se, ante os
seus olhos sôfregos, quadros de diversos matizes e cores, qual se o instrumento
do artista fosse uma varinha encantada a cujo toque criavam-se novos mundos e
abria-se de par em par o mitológico domínio das feiticeiras e dos duendes.
Galopavam
corcéis de crinas flutuantes e dorso luzidio, cobertos de esmeraldas e rosas,
montados por fogosas amazonas, cujo capacete de prata luzia ao clarão
melancólico da lua!... O bando ruidoso fugia envolto na poeira argentina da
noite, fazendo retinir no espaço radiante o choque das lanças sobre o dono dos
animais, e o ruído das armaduras de ouro picando o ventre abrasado dos
insaciáveis corcéis!
Imediatamente
transformava-se o panorama e um grande lago, afagado pelos vislumbres da
cadente madrugada, estendia até os confins do horizonte. Cortava a água um
batel tripulado por anjos e seguido por uma falange de cisnes e garças, de asa
espalmada.
Depois
era uma floresta cheia de harmonias e sombras; depois a luta de dois
gladiadores ofegantes; depois um templo majestoso em cujos altares celebrava o
ofício divino, enquanto o órgão despejava a sua invisível urna de melodias e
místicas emanações!
Contemplei
a heroína de todos esses triunfos; ela pendia do camarote, trêmula, assustada,
palpitante, de boca entreaberta, seio exausto e colo estendido, como se
conhecesse que era a alma desse miraculoso Hino,
e quisesse submergir-se no abismo luminoso que a atraía, fatalmente.
Salustiano
tocava a meta do incompreensível. Não era a música de Verdi aquilo! Apaixonada
e brilhante! Nem os soluços de Bellini; nem os caprichos provocadores de
Rossini; nem a imponente inspiração de Meyerbeer, nem a chorosa loucura de
Donizetti reveladas nas lágrimas de Lucrécia ou nos angustiados arroubos de
Lúcia. Era o Hino da Mocidade! A alma
de um artista feita em pedaços e ascendendo gigantescamente ao horizonte no
meio de súplicas, de orações e de blasfêmias sublimes! As harmonias subiam,
subiam, enovelavam-se, entrelaçavam-se como serpentes impalpáveis, e
desfaziam-se de ímpeto como um dilúvio de estrelas e de raios!...
Salustiano
cambaleava e o sopro estava quase a abandoná-lo.
O povo
em pé entregava-se ao magnetismo daquela música, sem saber se ela o despedaçava
ou comovia. Era a vitória do gênio! O triunfo irradiante da arte!
Enfraqueceram
pouco a pouco as notas; diminuíram os sons, desenrolando-se como um colar de
pérolas desmanchado; e em um último esforço, a derradeira harmonia ergueu-se
palpitante do tubo da flauta e do peito do artista! O delírio fez explosão
nesse momento! Os gritos, as palmas, os lenços, as flores coroavam
tumultuosamente o intérprete da mocidade, e ela, à semelhança do aloés quando
rompe do seio fecundo da terra, desprendendo um brado de entusiasmo, deixou
cair aos pés do artista o cacto, úmido com as lágrimas que lhe choviam dos
olhos deslumbrados.
Salustiano
veio quatro vezes consecutivas à cena. Em todas elas unia aos lábios a flor,
que era o resumo de todas as suas angústias, de todas as suas glórias,
esperanças, desconforto, futuro e vida!
Quando
eu corri à caixa, fui a tempo de recebê-lo entre os meus braços. O suor
gotejava-lhe da fronte, e um calafrio intenso percorria-lhe o corpo forçando a
contrair as mãos geladas.
A caixa
foi invadida por grande parte do povo que reclamava o artista em altos brados.
Ele
agarrou-me a mão e com a voz sibilante e breve:
— Vem!
— exclamou.
Arremessou-se
ao camarim e fechou a porta sobre nós. Sem me dar tempo de evitar-lhe o rápido
movimento, despedaçou contra a parede a flauta, origem de seus recentes e
deslumbrantes triunfos.
—
Salustiano!
—
Cumpro a minha promessa! E antes que me arrependa, olha!
Seus
dedos nervosos rasgaram os papéis de música onde fora escrito o Hino, e ele
lançou-se nos meus braços, chorando como uma criança. Batiam à porta do
camarim, e a voz da velha chamou o artista.
Salustiano
enxugou os olhos, afastou para longe os fragmentos da flauta e da música,
dizendo-me ainda:
—
Amanhã ou depois partirei deste céu e deste inferno. O destino permitiu, ao
menos, louvado seja Deus, que caísse uma flor nas ondas do meu naufrágio!
E
beijou respeitosamente as úmidas pétalas do cacto.
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