Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia
brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as
mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta
do Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio:
dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem
ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer
coisa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe.
De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do
bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os
passos foi até o refúgio. Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele.
Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer
alguma coisa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os
olhos, puxou o relógio.
— Pode me dizer que horas são?
— Duas. Duas menos três minutos.
Agradeceu e sorriu. Se o Anísio
estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou.
Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O Anísio já
teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher.
Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na
direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar.
Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece
que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que
ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O bonde
parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não
pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a coisa pior
deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos
dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente
era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas
precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa.
Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de
Itapetininga? Mais depressa não podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o
nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se
encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria
é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora
que era difícil queria.
Estava parada na esquina. E virada
para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver
sem ser visto. Alguma coisa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se
decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que
ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se
continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua
esperança estava na varredeira da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira
a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto.
A mulher recomeçou a andar. Até que
enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas:
duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando
bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e
pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou
que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos
calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois
uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer coisa assim. Nem
ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um
cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caídos, usava galochas e se via
na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem
que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo.
Via a ponta da pele caída nas costas.
De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez
um esforço para que as pernas não parassem. A mulher virou o rosto na direção
dele. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o
rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o
coração batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audácia sim.
Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho,
depois de passar ainda se virou mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar
do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso
tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um
pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.
A sujeita se levantou, deu um jeito na
pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar
de novo a ocasião. Bastaria um sorrisozinho. Mas nem um olhar quanto mais um
sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só
dando mesmo pancada como recomendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar
mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o
cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e
o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita
apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no
fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.
Ela esperou que o automóvel passasse
(tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e
desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um
homem sem chapéu e sem paletó (naquela umidade) gritava palavrões na cara da
sujeita que chorava. À primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era.
Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e
com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente.
Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados
Alguém dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Então seguiu. E o outro
atrás.
Nem tinha tempo de pensar em nada.
Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as
quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho
fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia.
Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a
caminhar ligeiro.
— Faz favor, seu!
Favor nada. Mas o velho o alcançou.
Não podia deixar de ser um canalha.
— Diga uma coisa: conhece aquele
xaveco?
Fechou a cara. Continuou como se não
tivesse ouvido. Mas o homem parecia que estava disposto a acompanhá-lo. Parou.
Perguntou desesperado:
— Que é que o senhor quer?
Por mais um pouco chorava.
— Onde é que ela mora?
— Não sei! Não sei de nada!
O velho começou a entrar em detalhes
indecentes. Não aguentou mais, fez um gesto com a mão e disparou. Ouvia o velho
dizer: Que é que há? Que é que há? Corria com as mãos fechando a gola do
paletó. Só depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava ofegante
a garganta doía com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é
capaz de ainda estar apanhando.
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