O sonho da noviça
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando
Gertrudes chegou à portaria acompanhada da tia e do primo, no relógio da torre
do convento bateram pausadamente cinco horas da tarde.
O mosteiro
de Santa Clara ficava situado no respaldo de uma colina e emboscado em uma
deveza de carvalhos.
Era nos
primeiros dias de novembro. O céu, toldado de nuvens, que corriam para o norte
batidas de um vento áspero, estava de uma tristeza indefinível. Às vezes, uma
nuvem mais densa, cor de chumbo e pesada, escurecia o firmamento, e uma chuva
miudinha, como um borrifo, caia então obliquamente. Quando passava a chuva, um
pé de vento forte e rasteiro levantava em redemoinho as folhas amarelecidas do
outono, que alastravam o chão.
A fábrica do
convento era pobre, de frontaria humilde; e as paredes escuras e deterioradas
pelo decurso dos anos acentuavam o conspecto melancólico e lúgubre da clausura.
Em um nicho
fronteiro à porta da entrada, aparecia a imagem de Santa Clara, vestida com o
hábito de freira, os olhos extáticos levantados para o céu, suspendendo, com
fervor ascético, nas mãos brancas, uma custodia doirada. Debaixo do hábito
apareciam os pés da santa, quase nus, cruzados no peito pelos atilhos amarelos
das alpargatas.
Diante do
nicho, uma lâmpada de ferro, pendente de um carritel, oscilava como um
turíbulo; e a luz tênue da lamparina bruxuleava a espaços, ainda esmorecida na
claridade poente do dia.
Antes de
entrar, esteve Gertrudes com a cabeça descaída sobre o ombro da tia, a chorar;
depois, cingiu-a estremecidamente no derradeiro abraço, soluçando:
— Adeus,
minha tia, adeus!
Aproximou-se
de Mateus, que assistia do lado, pálido e trêmulo, àquela separação, abriu os
braços para o apertar, e disse-lhe com voz débil, fitando nele os olhos rasos
de lágrimas:
— Mateus!…
E transpôs
soluçante e oprimida o limiar do convento.
***
A comunidade
viera receber à entrada, segundo as praxes conventuais, a soluçante noviça. As
freiras professas e as recolhidas estavam dispostas em duas filas, tendo à
frente a madre-abadessa, já muito velha, arrimada a um báculo de prata lavrado.
Aquela sala
de recepção era úmida, espaçosa, fria e soturna. Entrava-lhe a luz tênue coada
pelas rexas oxidadas de duas frestas, que davam para o claustro. Ao fundo,
sobre um altar e no meio de duas jarras com palmas e flores artificiais, estava
a imagem de um Cristo de metal amarelo, com os braços abertos cravados nos
braços de uma cruz de jacarandá. No peito nu e descarnado do Cristo
refletia-se, como uma chaga viva, a luz vermelha da lâmpada de latão suspensa
do dossel.
A escrivã
passou o braço com protetiva ternura à cinta de Gertrudes, e encaminhou-a para
diante da Abadessa, dizendo-lhe a meia-voz:
— Beije a
mão à nossa madre-abadessa, menina.
Gertrudes
baixou os lábios à mão trêmula da freira, e recebeu em uma postura humilde, com
os olhos fechados, o abraço receptivo. Em seguida abraçou-a a escrivã; e
depois, de abraço em abraço, foi Gertrudes passando todas as freiras e senhoras
recolhidas até à derradeira.
***
Abria para a
cerca a janela estreita da cela de Gertrudes.
Avistava-se
ao longe, recortada no azul límpido do céu, a cumiada alvacenta e escalvada de
uma serra.
Mais abaixo,
por entre a verdura da encosta, descia a estrada em largas curvas, como uma
fita que se vinha desenrolando e alargando pelo monte.
Ao meio-dia,
quando o sol caia perpendicular, a diligência subia vagarosamente, levantando
espessas nuvens de pó. Viam-se os almocreves, que vinham à cidade, trazendo
pela arreata a recova dos machos.
Em
madrugadas serenas, ouvia-se até o chiar longínquo dos carros de bois pelos
atalhos das aldeias, o telintar monótono das campainhas dos machos e o estalido
seco do chicote da mala-posta.
Um dia, logo
que saiu do refeitório, enquanto as freiras se recolhiam às celas para dormir a
sonata da sesta, dirigiu-se Gertrudes para a cerca.
Era uma hora
da tarde.
Na horta, as
largas folhas das couves pendiam desmaiadas com o calor intenso da estiagem. Na
ramaria verde do pomar rumorejava uma viração agradável. Em torno à folhagem
escura das laranjeiras, na vibração da luz, agitava-se uma nuvem transparente
de efêmeros.
Por debaixo
das latadas passeavam de braço dado algumas meninas recolhidas.
Gertrudes
seguiu sozinha, cosida com o muro, por onde havia uma esteira de sombra. Ao
fundo da cerca, encostado ao tronco de uma magnólia, que projetava no saibro
seco e faiscante da rua uma larga sombra, havia um banco de pedra.
Gertrudes
sentou-se, tirou do bolso do avental um livro brochado, e abriu-o
cuidadosamente, retirando com as pontas dos dedos, dentre as folhas marcadas,
um grande amor-perfeito já
mirrado e desbotado.
Ao cabo de
alguns minutos de concentrada leitura, ouviu pipilar em cima.
Na
extremidade de um ramo, que balouçava de leve, chilreava um passarinho,
inclinado para baixo, entreabrindo assustado, com frêmitos, as azas. Gertrudes
pousou o livro de banda, subiu ao banco, e, fincando-se na ponta dos pés,
aprumou-se para espreitar.
Entalado num
esgalho e meio oculto na folhagem, havia um ninho fofo e tépido, do qual
surdiam duas cabecinhas penujentas. Pousada no rebordo do ninho, estava uma
toutinegra, ministrando o alimento aos filhos.
Gertrudes
estava encantada! Até suspendia a respiração, com receio de perturbar a
tranquilidade do ninho!
***
À noite, com
a cabeça deitada sobre a brancura virginal do travesseiro, a noviça suspirava e
sorria, acalentada num sonho de criança!
Ora vejam!
Estava de
pé, sobre o banco da cerca, espreitando o ninho da magnólia. Os passarinhos
implumes abriam sôfregos o bico para receberem da mãe o alimento.
Gertrudes
identificava-se tanto com o que via, que — em sonho — chegou a sentir o gozo
inefável da mãe que administra o sustento aos filhos. As cabeças penujentas dos
pássaros do ninho — que graça! — já lhe pareciam duas cabecinhas loiras de
criança deitadas no mesmo berço!
E o pássaro
que chilreava em cima, alcandorado no ramo superior, foi perdendo, pouco a
pouco, a forma que tinha e — como a gente vê num quadro dissolvente — foi
transformando a cabeça pequenina de ave em uma cabeça de homem, com cabelos
anelados, os olhos pretos e vivos, o bigode farto, e um doce sorriso de pai…
E entreviu, então, Gertrudes, através de uma nuvem
cor de rosa, em que o seu espírito se embalava, a imagem clara do primo Mateus,
que a contemplava, a sorrir!…
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