O sineiro de Santa-Ágata
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há quinze anos,
véspera de Natal, numa noite bem frígida e chuvosa, ia eu em jornada através
das serras, caminho da minha aldeia, a fim de consoar, conforme a velha usança,
no aconchego patriarcal da família: quando a sege que me levava estalou com
fracasso, desabando em bocados pelo chão. A custo pudera salvar-me do destroço,
que a sege velha e de correias, sobre duas grandes rodas escultadas,
esbarrondara de chofre contra um amontoado de penedos, e o cocheiro contuso em
muitas partes do corpo, era quase impotente para sustar os galgões dos cavalos
sacudidos pelo terror da derrocada. No meio das trevas, àquela hora, sob a
chuva sibilante, como encontrar agasalho?
Era no mais cerrado
das brenhas. Lúgubres penedias estacavam por toda a banda.
Ásperas
montanhas pareciam vir a despenhar-se sobre as gargantas estreitas da passagem.
E nem a mais dúbia fogueira de pastores, casinholo de coutada, voz ou
campanário, revelando a proximidade de criatura humana! A muito custo podemos
remover do caminho as bagagens e destroços da pesada traquitana, eu, o cocheiro
e mais um velho criado que me seguia a cavalo.
Com fortes brados,
aos quatro ventos do campo, fomos chamando alguém que ali vivesse; mas nem
sequer latidos de cão logramos sacar das goelas carbonosas da noite. Sempre
aquele ruído prostrado, regular, desesperante, da chuva nas urzes e pinheiros
anões, que o vento trazia e levava no mesmo agreste ritmo, como o jogo uniforme
de uma joeira que joeirasse do alto, bagos d'água frigidos, e cruéis.
Por infelicidade, o
cocheiro não era do sítio, e mal sabia dizer daqueles caminhos incertos. Beja inda
talvez ficasse a nove léguas dali. Os cavalos extenuados não queriam marchar. E
olhavamo-nos interditos, à luz da pobre lanterna que por milagre escapara ao
desastre.
Enfim, já nos
decidíamos a ficar por baixo das azinheiras, nalgum
abrigo escavado da montanha, quando se ouviram badaladas de sino distintamente.
— Graças a Deus!
exclamei eu todo alegre, que vamos ter guarida no passal do bom padre ou
ermitão que daquele campanário nos está chamando. Onde é, cocheiro?
O homem esteve sem
responder um bocado. Era um alentejão supersticioso, tostado, leal, e
gigantesco.
— Aquilo, senhor,
disse alfim o colosso, fica por traz de cerros que levam vinte horas a galgar a
um homem. De noite, sempre os sons parecem mais perto, e enganam uma pessoa nas
contas que deita.
— Bom! mas que sino é
aquele? Convento, freguesia, castelo ou casa do diabo?
Vi o rapaz benzer-se
com um movimento brusco, e lentamente ir contando, que era o sino de
Santa-Ágata, ruinaria maior que uma cidade, com quatro torres dominando as
chapadas dos montes, e casarões aonde ninguém tinha ido desde que houvera lá
fogo. — Ninho de demônios e malfeitores! Em trinta e três, a guerra civil correra lá, farejando as riquezas do
culto — as freiras tinham debandado pelas serras, com os seus hábitos brancos e
os seus rostinhos macerados — por quatro dias as
chamas lamberam os santuários — e diz que duas ou três religiosas,
entrevaditas, centenárias, se deixaram morrer nas suas celas, cantando salmos,
por não haverem já parentes e amigos, em cujo seio ir acabar. Agora só voltava
ao mosteiro algum maltês perseguido, ou pessoa empenhada em roubar cantarias,
alguma porta de carvalho, e restos de alfaias sepultas nos entulhos.
Lentamente então,
como um fumo de incenso que oscila subindo pelas incertezas penumbrosas da
neve, assim a lenda se formara e fora condensando, detalhando, subindo em
espiras poéticas, dos claustros góticos da velha abadia. E o cocheiro
acrescentou:
— Pelos modos, os
diabos dizem lá missa a desoras, com mitras que nem bispos!
— Venha essa
lanterna, disse eu sem mais ouvir. Meia ração de aguardente e tabaco! Vocês
abriguem-se aí como poderem, que eu já volto!
— Mas onde é que o
senhor vai?
— Ora essa! à abadia.
Tocou-se à missa: o diabo já deve ter subido ao altar. O cocheiro ainda quis
acumular obstáculos; até que vendo-os sem resultado, apontou-me o caminho provável do mosteiro, lá longe, sobre as altas serranias, a
cujo sopé se tinha desmantelado a nossa berlinda de viagem.
Pondo-me a caminho,
confesso, foram-me os primeiros passos bem duros. O terreno pedregoso abria
fendas onde os pés se enterravam em lama; tufos de esteva e piorno vedavam a
passagem, circundavam-me, prendiam-me o fato, ou vinham dar-me bofetadas nas
faces com as suas mãos pegajosas. E assim fui mais de uma hora, tropeçando de
um lado e caindo de outro, pelo espinhaço lúgubre da cordilheira. Entanto as
nuvens desdobravam-se, menos espessas, correndo, até que uma claridade de lua
velada pôde orientar-me na marcha.
Alguns corpos
avançados da ruinaria começaram alfim a mostrar-se, pequenas capelas com arcos
góticos, sombras esguias de ciprestes, casarões onde bulia a erva açoitada pelo
vento... Dez passos além, achei-me numa alpendroada vasta de pedra, toda em
arcarias de capitéis mutilados. Ao centro murmurava uma
fonte, caída às gotas sobre uns restos de tanque esculpido; e via-se um pórtico
ao fundo, com feixes de colunelos, e nichos de apóstolos em oração.
Mais dois passos e
entrava na igreja. Parte da abóbada tinha já caído. Arcarias altas,
flexuosas, em séries paralelas de uma extensão
desmedida, iam até ao santuário. No parapeito de um ou outro púlpito, pendiam
tapetes de hera — e por um bocado de muralha derrubada via-se o claustro,
contrafortes, arcos butantes, rendas de janelas manuelinas, estátuas partidas,
e montões de pedras lavradas que a vegetação daninha ia vestindo, engolfando,
no labirinto das suas teimosas grinaldas.
Lentamente, enquanto
marchava entre as maninhas plantas da serra, eu fora evocando da nevoenta
penumbra das minhas reminiscências de infância, a lenda que tantas vezes tinha
ouvido contar, pelo inverno, quando finda a ceia os pastores e couteiros vinham
fazer circuito conosco, de roda do brasido, na cozinha abobadada da herdade,
cujas chaminés se erguiam dos tetos, como duas torres quadradas de solar.
Lembrava-me de ter
ouvido a minha avó, como a abadia fora uma das mais
venerandas casas de reclusão de todo o reino, sucessivamente enriquecida pelos
reis, visita de prelados, e refúgio de muitas princesas e bastardas que ali
dormiam o último sono, nos seus jazigos de pedra, de cujos nichos a velhice
aluíra figuras e inscrições.
Apesar das
enormíssimas riquezas que as religiosas mandavam repartir pelas gafarias e
misericórdias da província, a regra impunha às monjas uma pobreza frigidíssima.
Dormiam numa tabua, as pobres servas, sem enxergão nem cobertura, e com uma
pedra tosca por cabeceira. E vivendo de ervas e legumes, sem mais tempero que
um fio de azeite e um punhado de sal, elas apareciam na estamenha branca das
túnicas, afiladas na sua espiritualização perpétua de prece, antes como umas
sombras de loucas, espectros de mal sofridas angústias, marchando nos claustros
em genuflexões de extáticas, e como dobradas ao peso das camandulas e das
orações. Um velho Papa da idade gótica doara então o mosteiro de relíquias,
compadecido por austeridade tamanha de enclausura, e permitindo que as monjas
pudessem dar-se a glutonaria mundana de um cordeiro guisado, na ceia do Natal, sob a condição expressa de ser branco e acabado de
nascer.
Sempre na minha
lembrança, desde então, tinha ficado aquela humilde história das freiritas,
dormindo em tarimbas de castanho, e jantando couves de azeite e sal. No
colégio, muita vez, punha-me a fazer esforços para me representar a figura
benévola daquele santo Papa da idade gótica, risonho sem dúvida e
encarquilhado, com o seu barretinho de púrpura, e um grande anel de turquesa,
concedendo às filhas de Santa-Ágata o cordeiro branco para a consoada do Natal.
Vinham-me aquelas coisas num fundo de fantasia, para assim dizer bizantino, sem
perspectiva aérea, com o nimbo de ouro nas cabeças, e pregas miudinhas no
bocatel das roupagens — e tão longe do nosso tempo! tão longe do nosso espírito
que eu acabava sempre por sorrir à inverosimilhança das legendas contadas por
minha avó.
Todos os anos na
herdade, depois de se haver dito a ladainha diante do presepe armado no
oratório, com grande pompa de velas acesas, cobertas de seda, painéis de
santos, flores, amuletos e cearinhas de
trigo grelado em pratos da Índia, às escuras, durante
os vinte e cinco longos dias de uma lua — todos os anos, à hora de servir a
espetada de lombo de porco com migas, da ceia do Natal, quando já tudo se
assentara em volta da mesa, eu me não esquecia de inquirir.
— Avó. Se o cordeiro
de Santa-Ágata estará tenro e capaz de ser manducado pelas freiritas sem
dentes?...
Lá me sorria a boa
velha, com uma expressão de melancolia que eu nesse tempo não era capaz de
interpretar. E à direita dela marcando intervalo na mesa, um talher inativo
aguardava meu avô, que fazia já onze anos de falecido quando eu tocava os
dezesseis.
Ai! esse talher era a
grande nota solene da ceia, o símbolo sacrossanto do espírito de família,
perpetuando o respeito do nome através das revoluções da idade. O copo estava
cheio, o guardanapo desdobrado, e chegado à mesa o tamborete.
A todo o instante ia
entrar na sala o fantasma do velho lavrador, com a sua matilha de galgas
argelinas, e uma daquelas grandes risadas que ele dava, em nos vendo felizes a
todos.
Ceia
de Natal! Ceia de Natal! Não seria eu, não, que daquela vez havia de começar
cantigas ao Deus-menino, ante o presépio da nossa casa das Torres.
Nem iria assentar-me,
tão pouco, entre meus irmãos, partilhando a espetada de lombo no meio da
gralhada das crianças, e dos sainetes dos pastores e maiorais. Oh como o frio
da montanha me fazia agora lembrado o madeiro
do Natal, tão escrupulosamente escolhido entre os troncos mais corpulentos
das catedralescas medas de azinho da nossa província; o madeiro que as comadres vão ver a
casa das comadres e cuja enormidade de alguma forma passa por luxo e sintetiza
a abundância da casa! Ceia de Natal! Ceia de Natal! Naquela noite de
cordialidade, tão íntima na vida do campo alentejano, em que o primogênito da
família tem obrigação de consagrar aos criados o primeiro toast da ceia, a minha ausência, eu
bem na via! trazendo lágrimas aos olhos de minha mãe, e longos anos
permanecendo arquivada entre as tristezas do seu amantíssimo coração. —
Paciência! dizia eu, deixando os meus olhos correr por cima da fantástica
decoração de ruínas, como quem busca fixar a realidade
no meio das oscilações que a sombra despregava das arcarias.
Cessara a chuva de todo,
e o vento que enovelava os castelos de nuvens, muito baixas, vinha depois
marrar com elas de encontro às fragas da cordilheira.
Torvos luaceiros
cardavam sobre as coisas, aspectos pardos e monacais, desse tom vago,
inquietador, inexplicável, que permite à imaginação de agigantar o que apenas
entrevê.
E assim diríeis que
se alongavam na noite os butareus das quatro torres, e que os boqueirões da
treva mastigavam, e como lanças tremiam os colunelos do templo, espetando na abóbada
imaginárias cabeças; enquanto patrulhas de ciprestes paravam a escutar, se
àquela hora rastejaria no mosteiro um infinitésimo de vida, só que fosse. A
primeira coisa que notei, foi que não estava só, porque ao raspar de um fósforo
para acender o cachimbo, pude lobrigar na portaria vultos de gente acocorada.
Pouco a pouco, os
meus olhos afizeram-se a destrinçar na sombra os objetos; e entrei a bispar
vultos pequenos, corcovados, que surgiam por todas as bandas da serra,
vagarosos, cosidos às pedras, derreados do caminho, e
arrastando sapatos de trabalho, com gorros nos olhos e capotes negros sobre os
ombros.
Pelas encostas,
longe, perto, muitas luzinhas deslocavam-se em direitura ao mosteiro, como
fanais guiando a um conclave outros tantos conspiradores.
Duas ou três
cadeirinhas entram no adro, buscando a sombra dos arcos com uma cautela
apavorada, e aos ombros de homens, que pelo rastejo dos passos e lentidão dos
meneios, ia jurar tinham passado os oitenta anos. Em pôs das liteiras, mulas
brancas trazendo mulheres embiocadas em ponches... jumentinhos de trabalho com
gente que tossia... e até numa espécie de esquife, um vulto entre roupas dava
grandes gemidos, quando os portadores oscilavam mais bruscamente a padiola em
que o traziam.
Muito embuçado na
capa, eu ia-me aproximando da turba, corcovado e arrastando os passos como os
outros; e já sem medo, pois não podia ser capitania de ladrões aquela gente
assim misturada de inválidos. Quando de repente, patas de cavalos fizeram
estrupida nas lajes, e eu vi fazer-se um movimento simultâneo
em todos os magotes, para acorrerem ao encontro dos cavaleiros. Eram quatro. E
dois deles, que porventura seriam os juvenis da cavalgata, a julgar pela
ligeireza com que apearam, tinham vindo ajudar o que ficara sobre a cela,
aguardando que o desmontassem da mula branca onde viera escarranchado.
Era este um grande
velho de cabelos compridos, em ligeiros flocos por baixo de um chapeirão de
eclesiástico, envolto numa capa com romeira de lontra, e de quem todo o mundo
se acercava para lhe beijar a mão. Caminhando, espargia bênçãos sobre as
cabeças curvadas à sua passagem. Aprumava com esforço a grande figura bíblica e
severa, em cujas linhas fulgurava como um relâmpago genial de estatuária, e em
cujos gestos calmos rescendia a solenidade de um apostolo enviado a remir de um
cativeiro.
Tinham aceso
entretanto algumas tochas, cujos clarões deixavam ver a fisionomia de aquela
assembleia extravagante. Oh minha cabeça esvaída de cansaço! Eu não posso
afirmar lucidamente se acaso era sonho o que se estava passando: tão
extraordinárias visões me tiveram estarrecido na formidável sombra do templo. Lembro-me que o sino tocou de novo. Era um som
fúnebre e longínquo de gong,
espargindo na noite um terror de evocação; alguma coisa como a voz do tempo,
chamando os homens a um ajuste de contas definitivo.
Pelas arcarias do
claustro, que eu avistara por entre a derrocada de um muro, vinha marchando uma
procissão de monjas lentas, mirradas, pequeninas, cambaleantes, e tão brancas e
diáfanas à luz das tochas, que elas pareciam ter acordado naquele instante dos
seus sepulcros, transpondo os séculos à voz expiadora do gong. Entre os véus caíam-lhe os
cabelos, mais alvos do que a neve, e das suas sandálias batendo as pedras do
claustro, vinha um som baço de sepulturas vazias, sepulturas com fome, chamando
por aqueles destroços de santas, de onde a alma parecia ter voado, através das
divinizações augustas do martírio.
Poucas eram: mas
vagarosamente a procissão ia crescendo no percurso, ao clarão bruxuleante das
luzes; porque a todo o instante a turba se abria para deixar passar uma
velhinha segurando uma tocha entre as mãos descarnadas. Alguém lhe tirara o
capote de cima dos ombros, e da cabeça o bioco de
burel que a encapuchava. E surgia assim, daquela lúgubre crosta, uma monjazinha
branca de Santa-Ágata, cingida na estamenha da ordem, o véu de nodosa e rude
grosseria... e que a pequeninos passos de centenária, oscilando a trêmula
cabeça, lá ia enfileirar-se no préstito, com as suas rugas cheias de
eternidade.
A esse tempo, a
enorme basílica rompia violentamente da sombra, ampla, majestosa, cheia de
mistérios e esplendores, mesmo assim na ruinaria das suas esculturas e rendas
ogivais. E prolongava-se em crepúsculos doces, além das naves, pelos rasgões da
derrocada, ondeava à oscilação das luzes, parecendo expandir-se, como outrora,
num grande hausto de unção fervorosa e fé cristã.
Em cada recanto, cada
arco, por todos aqueles nichos, pelas capelas, diante dos baixos-relevos e das
estátuas, agora bruxuleavam lâmpadas, círios, fogueiras, luzes bizarras de
fachos, cuja vermelhidão tingia de sangue os caprichos manuelinos da
arquitetura.
Em face a gigantescos
lampadários de prata e ouro, pendentes da cúpula arruída em cachos de lumes
lívidos, o altar-mor apareceu de súbito numa aureola de pompas, damascos,
flores e vasos de ouro cravejados de pedraria. O
frontal todo de lhamas, faiscava entre a fumarada dos turíbulos, as grandes
flores de púrpura emaranhadas no estofo, em cuja trama buliam bruscos
formigueiros de diamantes, safiras e esmeraldas. E por cima na abóbada,
a noite errava, espavorida dos fogos que oscilavam cá embaixo, nas inquietações do vento. E ao rumor das rezas acordavam
as aves noturnas nos seus ninhos: pombas e francelhos voejando de friso em
friso, grandes corvos sinistros partindo em bandos das rosáceas, encandeados
com a luz, tornando a vir, tornando a ir... Pensaríeis que regressavam das
tumbas, os espíritos das monjas, e se iam familiarizando às ruínas, e
conhecendo nelas o maravilhoso santuário doutro tempo.
— Meu senhor, disse
uma voz.
A vista das monjas, a
multidão caíra de joelhos, tocada de veneração por aquelas criaturas celestes,
múmias da fé católica, que a oração transfigurara até à inocência ideal dos
serafins.
Tosca e triturante, a
estamenha lhes cingia a esqualidez das ossadas: vinha na frente a Abadessa, de
báculo e mitra, com uma capa de brocado, sob o palio
de uma riqueza estonteadora. As mais seguiam duas a duas, acocoradas quase pela
idade, e guardando não obstante uma espécie de aérea graça da infância, através
da caricatura daquele cerimonial complicado. Em todas, o olhar extinto, como um
brasido nas cinzas, perdera a incandescência entre as macerações da vida
ascética. E dentre a mortalha alvacenta das vestes, cada vulto seco vos
lembraria um violoncelo com todas as cordas partidas, de haver tocado, longos
anos, a sintonia patética da dor.
O que dissera, meu senhor, puxou-me de banda: era um
embuçado e pequena, gestos aduncos, e botas moles.
Levou-me para detrás
da escadaria de um púlpito. Engolfamo-nos por um portelo baixo e tenebroso, em
cujo trevo marinhava, lutando, na frialdade limosa da pedra, uma caterva
horrível de grotescos. E como transpúnhamos o portelo, o homem tirou da capa
uma lanterna. Vi então diante de mim um velhito lesto, pequeno, azougado, os
olhos debruados de púrpura, e com um grande nariz pendido como um monco, até
encontrar a aresta de um queixo arqueado como a proa de um saveiro. Diríeis que
as duas pontas iam tentar brava guerreia: a do nariz
embirrando com a do queixo, a do queixo não sentindo lá grande simpatia pela do
nariz. Mas felizmente interpunha-se a boca, sentinela vigilante daquela
discórdia de apêndices, e que mesmo sem dentes, intervinha, mordendo o que
primeiro rompesse as hostilidades.
— Que quer dizer toda
esta mascarada? disse eu.
O velho olhava para
mim com um riso estúpido de bobo. Tinha um barretinho de seda no crânio,
grandes orelhas espalmadas aos lados dos olhos, a boca em meia lua e um colar
de barba dura, direita, branco sujo, prestava-lhe a caricatura demoníaca de um
bode, à luz fumosa da lanterna. Foi pelo corredor aos saltinhos, e eu seguia-o
tomado de um espanto sem saber por que.
Ao fundo começava uma
escaleira aberta na muralha, tortuosa, falhada nos degraus, e obstruída por
grandes pedregulhos. E o velho começou a subi-la, levando a lanterna na mão.
Como a escadaria era de volta acanhada, e o passo de espira excessivamente
baixo e deprimido, forçoso nos era de subir corcovados, porque não fendêssemos
o crânio de encontro ao rebordo dos degraus superiores. Fomos tropeçando assim nas pedras soltas e aluídas, partindo as
unhas nas junturas da muralha — ele sinistro, lesto, arqueado, escorregando,
pulando certo quatro e cinco degraus de uma vez; eu agarrado às pregas da sua
capa e à morna viscosidade das suas mãos, cujas unhas se me cravavam na carne,
como os dentes metálicos de uma pinça.
— Afinal não me
explicou que diabo vem fazer aqui toda esta família.
Ele sorriu-se. Também
desta vez não fizera caso da minha pergunta.
E eu começava a não
vê-lo com olhos lisonjeiros.
A escada não tinha
fim, caracolando sempre nas trevas úmidas, onde passava o voejar dos morcegos,
os guinchos dos ratos, e toda a sorte de sopros e risadas maléficas.
O último trago de
aguardente acaba de se me sumir nas profundezas da goela. E valha a verdade, eu
ia perdendo um pouco a noção justa das coisas. Formas, rumores, simples ideias
e sugestões me lançavam de roda, numa sarabanda de incoerências.
Dir-se-ia nos íamos
sequestrando, pouco a pouco, ao mundo normal e quotidiano, com os seus fenômenos
e leis eternamente as mesmas, para invadirmos não sei
que exótica região onde tudo era diverso: a atmosfera e a luz, as figuras, as
sensações, e as naturais afinidades de ser a ser.
Por instantes, quando
o homenzinho passava na luzerna do luar lançada por alguma fresta da torre, eu
ia jurar que ele mudava de figura, à proporção que ia subindo. Já não tinha na
cabeça o solidéu de seda preta. As suas orelhas avantajavam-se aos lados dos
olhos despegando-se-lhe do crânio como as dos morcegos, em grandes pregas
cobertas de cabelos. E deixei de ouvir o rumor dos seus passos, entanto que a
subida se tornava vertiginosa, inquietadora, embriagante. Cada vez os degraus
me pareciam mais estreitos, o passo de espira mais apertado, e o caracol de
pedra mais asfixiante. E nas trevas da torre, enquanto eu ouvia os resfôlegos
do velho saltando os degraus com fúrias de possesso, um ar denso e gorduroso
forçava-me o cavername do peito a centuplicar de inspirações, como num
paroxismo de sincope. — Ar! Ar!
A minha cabeça rolava
entre vertigens: via moscas de fogo saltarem-me por diante dos olhos. E era
como se cada um dos meus sentidos, estando separado de mim, não pudesse ou não quisesse procurar-me sensações nítidas e exatas — tanto
as coisas que eu tocava me pareciam diferentes. Larvas de gelo, escorregadias,
sem forma, tocavam-me nas mãos shake-ánds bruscos.
Abria então a boca para gritar que me acudissem: e percebia que ele voltava
logo a cabeça, porque sentia, positivamente eu sentia na cara o cáustico dos
seus olhos dilatados nas trevas, acobardando a minha alma varada de um
inexplicável calafrio. Até que enfim chegamos a uma espécie de sala rasgada de
pórticos, por onde a lua entrava. E rompemos nela como o estampido de uma
granada: o velho indo cair de bruços no pavimento, e eu por cima dele, numa
exaltação furiosa — a ponto de por cinco minutos rolarmos no chão corpo a
corpo, engalfinhados, como se algum de nós pretendesse esquartejar o
companheiro. Prestes porém o lesto demônio se me escapulira das mãos, e sem uma
palavra, deixando a capa, correra aos varandins da torre a debruçar-se.
A sala era grande,
com varandins de escultura aberta, que pareciam bordar uma antiga renda de
cruzes de Malta e folhagens, sobre o azul pálido do céu.
Uma floresta de
cordas, mastros, travessões e guindastes, emaranhava o
ambiente e corria de banda a banda. Pendiam sinos dos pórticos, negros,
imóveis, suspensos, como aves de rapina dormitando... mil tamanhos, mil
formatos, uns grandes, outros pequenos, bojudos estes, aqueles campanulados...
E na cúpula toda aberta de lucarnas até à flexa, a zunida do vento fazia uma
espécie de coro em surdina, instrumentado a risadas e pequenos silvos de
mangação.
O velho fizera um
gesto. Uma badalada profunda sacudiu de chofre a ruinaria inteira, dos alicerces
às grimpas, e foi-se alargando pela cordilheira, atenuando, extinguindo, numa
vibração magnífica de sonoridade.
Terrífico e supremo
era o acento daquela língua de ciclope, que o pulmão de bronze insuflara, no
seu vagar profético, e que retalhava o silêncio da noite como um eco da vida
eterna, soado através da impenitência dos homens.
Outra badalada mais
forte, e outra, e outra ainda. Crucitando de assombro, os bandos de corvos
fugiam por todos os lados. E as massas de sonoridade precipitavam-se nos ares,
desgrenhando uma procela de bramidos, e como um
apocalipse pregado ao universo estarrecido a nossos pés. Para fazer dobrar
alguns daqueles grandes sinos, o velho trepava aos varandins e suportes,
desdenhando as vertigens da altura: e eu via-o marinhar então pelas cordagens,
correr como um gato ao longo dos cabrestantes, suspender-se, desaparecer,
cabriolar, sufocado, e insistindo, e voltando, num jogo macabro de esforços,
que ainda mais lhe acentuava a contornadura demoníaca que ele tinha.
A cada manobra do
velho, era como se as badaladas me fossem batidas em cheio, no coração,
derramando-se-me em crises de angústia por toda a rede dos nervos
convulsivados. Foi neste estado que eu corri direito a ele, e pude agarrar-lhe
as pernas no momento em que o maldito se preparava a descrever nos ares uma
arrojada espiral, como Quasimodo, abraçando pela cinta o reboleiro maior do
carrilhão.
Ao mesmo tempo,
começava a produzir-se um fenômeno extraordinário. Seria ilusão dos meus
sentidos?... efeitos da minha sensibilidade doentia, que perdendo o caráter
próprio, se mutilara, exaltara, para rolar depois nas
fantasmagorias verdes da loucura? Mas afigurava-se-me que uma espécie de vida
magnética ia atravessando as ruínas, como se a fala dos sinos houvesse
ressuscitado no edifício o gênio hostil que ali reinava, e este agora reagisse,
contra o gérmen cristão que os noturnos visitantes todos os anos insistiam em
replantar no santuário.
Aquilo era evidente,
pulsava na pedra, rumorejava na esfuziada dos ventos, caía em gotas das arestas
e das folhagens parasitas.
A princípio
disse comigo — é uma vertigem do meu espírito exasperado pelas extravagâncias
da viagem, uma perturbação do álcool que eu ingeri em doses abusivas... O velho
fizera-me frenético... Os meus nervos estavam carregados de fluido... Porém já
na igreja me ferira esta percepção de movimentos disfarçados, esta matinada
oculta da sombra contra a luz, esta suspeita de bruxaria latente.
Tinha-me rido daquilo
— Ora adeus! Estou sonhando. E agora, Jesus! não era engano. A sarabanda
macabra rompia.
Muros e escaninhos
começavam a debater-se numa luta misteriosa de encantamentos.
Em
cada molécula, em cada penumbra, em cada voo, a energia decompunha-se em
fluidos antagônicos; um que tinha saudades do velho culto, e era mesquinho em
quantidade; outro que assoberbava o primeiro, e se declarara no campo
adversário. Mesmo, esta sombria batalha toldava-me a cabeça, estava patente à
minha alma, obscurecia-me a razão; e o meu próprio corpo vibrava dela, e eu
sentia em mim os dois guerreiros buscando derribar-se a golpes de espadão. Não,
não era engano! Andava tudo, falava tudo, mexia tudo, e tudo parecia sentir,
deliberar e ter vontade. Dos baixos relevos brotavam gestos, mímicas, sumulas
de diálogos...
Iam falar as bocas
das estátuas. Os velhos doutores ressuscitando os velhos cismas. Velhos
demônios trucidando as ingenuidades da fé no carnaval das velhas ironias.
Muitos santos pretendiam mesmo disputar com os demônios.
Num baixo relevo
da Ceia, a figura do Cristo
ergueu-se e bateu com força na mesa, colérico por um apostolo se rir, quando
ele, sagrando o cálix, disse do vinho — este
é o meu sangue!
E uma circulação
impetuosa girava nas artérias da pedra, insuflando vida às colunatas, fazendo
palpitar as rendas das ogivas, e dando apoplexia às faces das cariátides.
— Velho! Velho!
exclamei eu fora de mim, deitando-lhe as mãos às goelas. Quem és tu? Fala! De
onde vens? Que queres de mim?
Já a raiva me
escumava nos cantos da boca. A minha gana seria esmagar-lhe a cabeça de
encontro às pedras da muralha. Porque eu via nele o médium da farandola macabra
que ia na igreja. Eram obra sua os trejeitos dos monstros esculpidos nas
colunatas, o riso mau dos demônios-morcegos nos frisos manuelinos do coro;
enfim, o exaspero do Cristo, no baixo relevo da Ceia — e todos os frêmitos, todos os sopros, todas as opressões,
todas as desconfianças, todas as risadas, que eu ouvia, que eu sentia, e
passavam por mim o visco do seu contato asqueroso.
À sua voz obedeciam
aqueles milhões e milhões de forças ocultas e satânicas: e ele tinha o dom de
arrastar na espira lôbrega dos seus malefícios, o desgraçado que se lhe
aproximasse.
Oh,
não era ausência de energia física que me impedia de o acabar — ele era magro,
ossoso, quase decrépito... Mas a sua vista dava-me um embaraço! Com o mais
ligeiro impulso eu poderia derribá-lo. Mas um assombro terrível, um pavor
inexplicável, uma fascinação que eu não sabia definir, amordaçavam-me, faziam
de mim um destroço de cativo em pôs daquele tenebroso e fantástico vencedor.
A essa hora, na
igreja, tudo estava a postos. Pela abóbada caída, eu pudera ver, a nossos
pés, o coro profundo, sobre uma massa amarelenta de pilastras fasciadas de
relevos. Dali surgiam à luz dos brandões, as primeiras bancadas de carvalho,
com lugares separados, onde cada figura de monja aparecia dobrada sobre a
estante do livro de rezas.
Na grande cadeira
gótica da Abadessa, a meio do coro, duas velas faziam brilhar o báculo de ouro,
uma mitra mexia às vezes sobre uma cabecinha pelada de centenária — e para traz
a sombra invadia tudo, e via-se na parede uma rosácea sem vidros, por onde
entrava, poeirenta e diáfana, uma grande cheia de luar. Depois a igreja enorme,
com as esculturas mutiladas, as rendas em bocados pelo
chão, os nichos, muitos, desertos, e os jogos e caprichos da luz e da sombra,
forjando efeitos de cenografia formidável, de cujo tumulto, ao fundo, o altar
mor destacava numa apoteose de magnificências, entre a fumarada do incenso, e
os voos dos pombos espavoridos.
O velho reacendeu a
lanterna. Havia ao centro da casa uma espécie de grande cravo de castanho, com
teclas de cobre oxidado, aonde vinham ter as cordagens de toda aquela
sinalhada. Com gesto plácido ele conduziu-me ao teclado, sobre cuja arca
depusera a lanterna escancarada. E desenrolando um grosso manuscrito de música,
pô-lo na estante, e fez-me sinal a que me assentasse num monte de cordas que
estava perto.
A música era
torturadamente escrita, coberta de emendas, intercalada de referências à margem.
É obra sua? perguntei
eu. Ele fez que sim com a cabeça. E começou; já o arcebispo ao altar dizia
o orate, e soava nos mosaicos da
basílica o rumor dos que ajoelhavam.
Aí começa o velho a
fazer soar o carrilhão, e eu já sinto outra vez os meus pavores tomarem forma, e as minhas angústias irem cavalgando
extravagantes bruxarias. Cada vez mais à roda dos meus sentidos, fosforeja e
zumbe esta encarniçada luta dos dois fluidos antagônicos, que a pouco e pouco
se depuram, quando a minha percepção lhe consegue fixar a transcendência.
Um revindica o culto
das florestas, das águas e dos rochedos. É a grande alma pagã da natureza, que
impulsiona os mundos de uma vida extraordinária, e tem voz, no bramido das vagas,
e faz as flores e os arquipélagos, e chispa das rochas que o ferro morde, e
chora lágrimas de leite nas folhas arrancadas da figueira. É o mais antigo, é o
mais forte: e a todo o transe ele tenta reconquistar o solo, com a audácia
heroica de um régulo expulso de domínios seus. Tem a simbólica dos antigos
mistérios, o outro. E bisonho e tenebroso, desceu do outeiro onde uma noite uns
soldados estavam crucificando um vagabundo. Pregando jejuns e penitências,
enquanto ia fazendo da cobardia uma virtude, e não sei que refrigério da morte,
gritava ao mundo — venho destruir a obra da Mulher. E por entre o uníssono das
harpas, no coral dos serafins, ouve-se o alarido dos que na fogueira escruciam, e os latins do inquisidor que os manda morrer em
nome da misericórdia celeste.
— Velho!
Repara bem, como até
na gralhada dos sinos parece evidenciar-se a batalha das duas legiões. Aqueles
sinos além são pela igreja; mas aqueles outros apostasiaram e insurgiram-se.
As mesmas tuas mãos
de maestro ferindo o teclado, parecem obedecer a dois músicos diversos,
digladiando-se sem quebrança de ritmo, numa espécie de sabat artístico, alternativamente piedoso e diabólico. Por
momentos, tudo isto se me afigura sintoma de alguma psicopatia bizarra,
evolucionada no exaspero mental que esta noite em mim produziu.
Faço esforços de
reaver a minha antiga serenidade, ponho-me a ver se coordeno as minhas
faculdades de análise e de crítica, e se restabeleço a limpidez do meu juízo, a
sangue frio.
— Eu é que sou talvez duplo, e não a maneira de ser
das formas que me circundam.
As minhas operações
mentais é que estão fracionadas e desparalelas, como se a foice do cérebro
me não dividisse o esferóide em dois óvulos estritamente iguais, senão o
houvesse desigualmente bipartido, lóbulo maior, lóbulo mais pequeno... e cada
um derivando em modos de ser incompatíveis.
Porém esta hipótese
eriça-me os cabelos. Adeus harmonia de funcionalismo mental! Falta de
obediência a uma mesma força coordenadora e dirigente! Para cada metade do meu
corpo, uma contenção vital diversa da outra, energia diferente, outro caráter,
outra impulsão...
Atividades parciais,
cerebrações avulsas, acordariam nesses vários distritos do meu encéfalo sem
rei, nem roque, chocando as suas índoles sobranceiras, como pequenos déspotas
em grãs-ducado rivais. A dualidade surgiria por fim desse caos encefálico, como
uma terrível dupla vergôntea de loucura: venho a dizer, dois indivíduos num
corpo, discutindo, acotovelando-se, perseguindo-se, um contrariando a vontade
ao outro, anulando este os esforços daquele: e nenhum deixando dormir nem
descansar o companheiro. Mas é isto. Positivamente é isto — estes dois maus
irmãos que juraram aniquilar-se de um golpe:
fratricidas que a mesma impulsão vai arrastando de roda um do outro, à espera
do instante em que possam beber-se o sangue. Um deles fraco, cheio de
misticismos poéticos e visualidades atravessadas de inquietações. Tímido,
nasceu comigo, é filho de minha mãe, uma devota. Mas o outro foi crescendo nos
livros, o estudo inoculou-lhe audácia, a arte agigantou-lhe as dimensões, neste
momento eles barafustam, e eu cuido que estremece pela basílica toda, este
trágico drama que apenas se me debate nos nervos, e ensanguenta os músculos da
cabouqueira que eu trago sobre os ombros.
Por consequência
estou doido. Um pavor gelado invade-me o peito.
Estendo para o altar
os braços suplicantes. E o velho continua a sua música grandiosa, indiferente a
tudo o mais, enquanto no altar celebra missa o arcebispo.
A execução dessa
música parece absorvê-lo e mirrá-lo como um galope de anos desgraçados.
A primeira investida
é confusa, o velho treme de medo, correm-lhe lágrimas na cara, quatro e
quatro, e murmura não sei que palavras cabalísticas. Ei-lo se endireita e
recomeça.
E pouco a pouco a
minha alma abre as asas e suspende-se num país lilás de supremos êxtases
acústicos.
Já a riqueza dos
timbres e a gracilidade dos motivos me fazem esquecer que seja um carrilhão de
sinos que eu escuto. Alguma coisa da potência orquestral do órgão, profunda,
gótica, litúrgica, mas mais unida, mais colossal, mais grandiosa, se evola
dessas campânulas de bronze que faz soar no meio das serras o mais prodigioso
maestro do mundo. O carrilhão faz-se voz da arquitetura de repente, e o
desdobramento na música dos caprichos floreteados na pedra pelo cinzel — tanto
os meios de expressão se centuplicam e vão fasciando de originais melodias,
arrancos trágicos e indomáveis rouquejos de paixão.
A voz de cada sino
presta uma inflexão, uma emoção à voz da catedral que desperta e vive como um ser
perplexo e gigantesco: e daquelas ressonâncias que a mão do artista humanizara,
como interpretando um estado da alma doloroso, a angústia de uma raça, caíam
tristezas, desprendiam-se adeuses, voavam recordações...
recordações de vozes ouvidas em outro tempo, na boca de alguém que eu, valha a
verdade, já não sabia dizer quem fosse.
Vamos ao Credo. O carrilhão centuplica o enxame
instrumental de grupos harmônicos, e é o momento em que o universo une a boca à
poeira, para afirmar essa fé que ele tanta vez terá sentido esmorecer no
coração. Oh, a música do velho era uma grande ópera de efeitos supremos, onde a
alma se banhava aspirando ao mistério de um ideal celeste e inacessível. Vinha
dela uma intensidade de dor heroica que dava soluços à melodia unânime dos
motivos sinfônicos; desencadeando-se em rajadas no badalar dos grandes sinos. A
princípio era uma coisa lenta, que se apagava como um ritmo de reza,
de nave em nave.
Era uma grande
litania de humildes, cortada por algum soluço aflitivo, e em cuja penumbra se
apercebiam círculos da almas cada vez mais vastos, numa paisagem de balada,
lívida e noturna.
Outros soluços vão
repercutindo o dobre daquela angústia suprema, num coro trágico de sessenta
séculos de sofrimentos.
Já o efeito cresce,
desencadeia-se, rebenta. Há gritos fúnebres, insurreições apenas sufocadas,
roucas ladainhas que chegam de longe pedindo socorro...
Ai! nessa apoteose de
crença espiritual, por vezes a estridência dos brados faz suspeitar o terror em
vez da luminosa confiança que deita a cabeça no regaço da fé, e a imposição
feroz de um credo absurdo, em vez de simples doutrina conciliante ao caráter, e
inteiramente suave ao coração. E o ofertório passa, a campainha do acolito
anuncia o Sanctus, e o
sacrifício da missa principia.
Entanto que no meio
daquelas instrumentações picturais do carrilhão, de onde o mistério da missa se
enubla e desenvolve, sempre o pensamento musical podia seguir-se, com a pureza
de um salmo; tão límpido, que eu cerrava os beiços de medo que o meu hálito
embaciar pudesse, a cristalinidade daquele adorável motivo.
Mas da boca dos
sinos, como de uma cornucópia emborcada, vão golfando inumeráveis turbilhões de
espíritos fátuos, silfos de carrilhão, vibrações tornadas forma que vão e vem,
sobem e descem, cabriolam, zigzagueam, rolando, partindo, tornando a ir, e
difundindo-se nos longes em grandes círculos
concêntricos, onde as figuras se perdem enfim, numa bruma cor de cinza. Todos
são excessivamente pequenos, com uma multidão de caras diferentes, pequeninos
braços, pequeninas pernas, que se agitam numa quantidade de mímicas pitorescas.
Apenas escapados dos sinos, ei-los correm uns ao encontro dos outros, larvas do
medonho, embriões do pesadelo, conforme a imanação sonora de onde procedem: e
agarrando-se pelos ombros, continuam nos ares a fantástica batalha que eu
assinalara já para cada átomo das ruínas. Cada vez mais, cada vez mais, esses
milhares de anões parecem recrudescer das sinistras gargantas do bronze, e bem
depressa eles foram tantos, que faziam uma espécie de exalação fumosa
interposta aos meus olhos e os objetos, que se alongava depois numa grande
língua, rápida e turbilhonante, ascendendo na flecha audaz do campanário.
Já a torre estava
cheia daquelas larvas cúpidas do som, sedentas de luta, frenéticas de movimento,
em cuja carcaça podiam ver-se todas as espécies de caras, idades, sexos e
configurações. Tinham umas a cor verde das folhagens; eram as mais numerosas e
as que mais robustamente cabriolavam. Mas outras eram pardas, alongadas,
notiluzentes, com a vibratilidade dos vermes e a cabeçorra disforme dos
peixes-sapos. Havia-as corcundas, havia-as tortas, havia-as barbudas.
Encarquilhadas, hidrópicas, leprosas.
Em figura de rato, em
figura de sapo, em figura de morcego... e mesmo certas pareciam esqueletos de
aves antediluvianas, marchando aos pinchos, com um grande bico maior que o
corpo, direito, espesso, que não podiam erguer da melancólica postura em que o
levavam pendurado. Tinham asas quase todas; algumas eram armadas de espinhos,
outras traziam capuzes sobre os olhos, o breviário na manga e camandulas à
cintura: e até muitas, brandindo fachos, corriam através da batalha, pondo um
clarão de sangue em todo esse pavoroso arraial de malefícios.
E as que nasciam iam
empurrando as que já eram adultas.
Crescia a chusma
atropelando-se, comprimindo-se: até que não cabendo na torre, caíam pelos
varandins, aos milhares, ou esmagadas contra a parede aí secavam e por fim
desapareciam. Na debandada, um pânico lhes convulsionava ainda mais os pequeninos membros, e de rustilhão precipitavam-se, agarradas
umas às outras, e dispersando-se em círculos, quando já as suas figuras
pareciam ganhar de aptidão o que iam perdendo em nitidez de contornos. Pelo
céu, aqueles circuitos simulavam fortes migrações de pássaros cinzentos, cerrando
os seus exércitos até aos confins do horizonte.
E mal os sinos
paravam, havia um claro turbilhão de mostrengos... só um ou outro mirrava, numa
asfixia de silêncio, lentamente, pingando às gotas no chão que o consumia, ou
ficava cabriolando nas cordas em piruetas de acrobata, ou pousado num ferro,
aresta, teia de aranha, entrava a balouçar-se monotonamente, até agonizar de
todo e desfazer-se.
— Oh Deus! Deus
grande, Deus onipotente e misericordioso! ampara, por quem és, a minha fé, e
não deixes apagar na loucura a bruxuleante luz da minha razão.
Quando o arcebispo
ergue a hóstia, e soa em côncavo pela igreja, o bater das mãos contrito sobre
os peitos, porque é que este músico soluça, errando a vista pelos ângulos da
torre, à procura de alguém que ali não está? E a sua figurinha de sátiro
arrepela-se, lúgubre e grotesca, como a de um macaco que tivesse por
dentro a alma contrita de um cristão. Já as pombas volitam de novo sob a
cúpula, brancas, puríssimas, adejando outra vez pacificadas, quando os últimos
turbilhões de mostrengos se despregam dos sinos mudos, esfuziando pelas ogivas,
sob os látegos da unção celeste que se irradia da hóstia, feita carne, e do
vinho do cálix, feito sangue.
No momento, o benedictus segue, e o carrilhão
murmura de mansinho, como num uníssono de violinos e harpas, a mais suave preghiera que o perdão do Senhor
haja inspirado a um penitente. Manso e manso, os serafins de pedra unem as
mãos, batendo as asas de júbilo, com os seus tipos frustes de crianças, em cujas
cabeleiras se acende um ouro fosco de aureolas; e das partidas liras arrancam,
com os seus dedos, vagos prelúdios de um misticismo fluido, vaporoso, que
embriaga de êxtase, e em equivalência aproximaríeis dos mais recatados perfumes
de jasmim e de nardo, violeta e rosa branca, vaporizando-se de corolas abertas
no claro-escuro de um claustro, e que à noite espargissem sugestões de
bem-aventurança, na cela virginal de uma noviça.
Sim!
nesse prelúdio do velho, chora talvez a imploração de um crime antigo, expiado
em anos de súplicas nunca ouvidas, e centuplicando de eloquência, através do
tempo, até que afinal a tortura do músico excede os limites de expressão
concedida ao homem, e iguala e imita a eloquência de Deus, para, confundida
nela, coagir o Monarca dos céus a perdoar. Tudo neste supremo instante a
solicita, os fiéis que voltam a face para o carrilhão que os arrebata, as
esculturas, as pombas, e o arcebispo enfim que ao dar a bênção, estende para a
torre o braço trêmulo, e absolve de um gesto o estranho músico.
Limpo de névoas todo
o céu de dezembro esmaecia, de uma pureza elísea incomparável — e argêntea a
lua rola, espalhando ao redor madeixas claras, como uma cabeça morta de babi, à procura do tronco, pelos vales,
antes que o galo da missa solte o seu primeiro apelo, para o batismo de Jesus
feito criança.
Na poeira do luar,
pelos rasgões da rosácea, um turbilhão de serafins rompe na igreja, brancos de
mármore, nascendo da nuvem como uma geração espontânea de caritas bochechudas,
bocas em flexa, olhos de safira, e o tom clorótico,
translúcido, que participa do Paraíso e da tumba, e no qual poderá ler-se, mau
grado a espiritualização da eterna estância, essa infinita nostalgia dos
pequeninos seres arrancados ao calor dos seios maternais.
Por um instante,
palpita sobre o coro alada tromba, como uma emigração de pássaros radiosos,
pirilampos, borboletas, que oscila e se desloca na fumarada argêntea do astro,
turbilhonando em rodopios de apoteose: depois do que converge à torre, e pelos
varandins enfia, numa espiral de sonho alvinitente. Mas é um exército que
lentamente baixa o voo, silencioso, rufado apenas, no frou-frou das asitas
quase imperceptíveis. A alguns mal se lhes lobriga a cabeça, envoltos como
voam, nas suas camisotas de nuvem; outros inquietos, não podem estar pousados
muito tempo em qualquer ponto, e num frenesi de movimento, mexem, debicam,
bolem no teclado dos sinos, nas esculturas, chamando-se, vindo em chusma rir de
um monstro ou cariátide, arrepelando-se os cabelos uns aos outros, jogando as
escondidas por traz das heras que abraçam a muralha, de roda dos varandins,
pelas cordagens — e até um que escorregou nas lájeas,
ficou de bruços, choramingando, com birra, à espera de que alguém o fosse
levantar.
Os mais robustos
então descolam do pavimento uma das lájeas, a um canto, e acocorados na terra,
escavam com as unhas uma toca.
Pela segunda vez, o
galo da missa gritou da cúpula, e eles, que o escutam, precipitam com fúria o
seu trabalho, a fim de que a tarefa esteja pronta antes que a ave solte o seu
terceiro grito de alarme.
Bem depressa há um
buraco fundo no chão da grande sala, e — oh surpresa! — aparece um pé, um
microscópico pesito de criança roxo de frio, inteiriçado: e logo depois do pé
uma pernita, o tronco, uma cabeça... Já a curiosidade empertiga a pequenada,
que se achega e acocora, em circuito cingindo-se pelos pescoços, numa profusão
de momos espantados.
O pequenino cadáver
está descoberto, e cada qual nele procura insuflar o ligeiro filete vital que
em si conduz. Uns lhe aquecem as mãos com seus beijitos leves como abelhas,
outros lhe sopram das pálpebras a vilíssima terra que lhas come, enquanto muitos lhe fabricam uma samarra, com os pedaços que arrancam
às suas próprias vestimentas.
Enfim, a criancita
ressurge, esfrega os olhos — dois ou três calafrios passam de manso à flor da
sua epiderme opaca e equimosada — e a vida nasce, há movimentos, pequenos
haustos, suspiros... mas sempre à roda do pescoço um vergão negro estrangula-a,
estigma de infâmia paterna, que o velho encara estralejando os dentes, num
terror confuso de assassino. Pela terceira vez o galo canta, e triunfante, o
turbilhão de serafins levanta voo, ascendendo pelo céu, numa espiral de névoas
cor de rosa.
Porém de repente, o
pequenito recorda-se, volta a cabeça, estende os braços para o músico que de
rastos avança, desesperado, por não lhe poder tomar as mãositas protetoras. Oh,
era tempo! há já cem anos que ele assim vagabundeia nas ruínas, sem repouso
esse sineiro que amara uma Abadessa; e anos e anos desfilam, e sempre a terra a
recusar sepultura ao amante, e sempre a cólera de Deus a expungir da sua
glória, o monstro que assassinara o filho, no próprio dia em que ele foi
nascido. Anos e anos o miserável tentara apaziguar a
cólera do Eterno, vindo à missa do galo da abadia, interpretar pela música do
carrilhão fantástico as escruciadoras angústias da sua alma lassa, atormentada,
mas ainda no fim destes esforços o céu que redimia a criança, como se não
julgasse bastante a expiação do pai, abandonava-o!
Surdo, maldito, o
desespero começa a babar-lhe da boca, imprecações incoerentes. De novo o
carrilhão blasfemo, vomita das campânulas de bronze, a sua bruxaria macabra de
mostrengos. Os últimos fiéis arrastam as sapatas no adro, e pela montanha as
luzitas descem ondulosas, hesitantes, como um bailado de pirilampos.
Agora um, outro ao
depois, os lampadários se extinguem diante das capelas: o altar-mor não
fosforeja mais as suas ritilâncias destofo e pedrarias: o arcebispo foi-se, as
monjas voltaram talvez aos seus sepulcros, porque as procuro em balde nos
cadeirões do coro, pela igreja e nos claustros, à chama dos últimos archotes
que lambem de sangue os gestos das estátuas, as arcarias confusas, os baixos
relevos e os nichos.
Deito os meus olhos
de roda, espavoridos, e há risadinhas, voejos, as heras trepam em grossas lianas, que se abraçam nos colunelos da torre, e
prolongadas, tenazes, numa luxúria contorcida de serpentes, alastram as suas
pernadas entre as pedras, como uma avançada de exército que em nome da
natureza, toma posse do terreno que lhe havia sido usurpado. O terror dá-me
epilepsias de fuga, de uma vertigem, de uma raiva! e precipito-me na escada, às
escuras, sem mais ouvir os queixumes do músico, que as vegetações vão sugando,
assimilando em si, absorvendo, numa troncagem monstruosa de figueira.
Chego à igreja,
quebrado pelas brutalidades dessa queda espiral de oitenta metros. E atrás de
mim não ouço mais que a floresta a esbravejar, tomando posse da ruína, e os
estalidos da cantaria que rebenta, escarvada pela violência das raízes que
esconjuntam a arquitetura a punhaladas de ciúme. Agarro um facho, em bramidos,
delirante de um medo que centuplica as minhas ânsias de vida livre, em meio dos
campos: e ao acaso, entre os ciprestes, pelo claustro, os risos guiam-me: bem
depressa descubro uma luz vaga, coando-se por baixo de uma porta baixa e
carcomida. Dentro há rumores, leves frou-frous de seda que se acamam, tinir de pratos... E
no frenesi medonho que me agita, deito os ombros à
porta — a porta voa, e uma orgia de espectros patenteia-se, numa luz glauca em
que as figuras mergulham, confundidas, alongando as roupagens pardacentas. A princípio
eu não pude destrinçar as lúgubres carcaças, uma a uma, mas já a minha vista
insiste sobre as formas... Há um festim servido sobre a mesa, flores que se
desfazem em poeira; e num brilho de enterro as tochas ardem, mostrando à roda
esqueletos de monjas, a devorar com as mandíbulas descarnadas, e cardeais,
marquesas, gentis-homens, que entre si permutam toda a casta de motetes
dulcerosos.
E mais distante, à
luz do fogo que enrubesce na chaminé de pedra armoriada, o senhor arcebispo
tange um violão, meneando a calva enquanto a Abadessa ergue os seus vestidos
veneráveis, para esboçar o primeiro passo do minuete, acordado nas cordas do
instrumento.
— Rompe a manhã!
grita o criado aos meus ouvidos.
Esfrego os olhos.
A névoa esfarrapa
chuveiros na montanha. É dia claro. Uma caleça nova nos aguarda. E o sineiro da
abadia? A gente sempre sonha cada asneira!
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