O sermão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era um dia de festa e de grande romaria.
Desde madrugada, que eu estava debruçado no muro do meu quintal, à
sombra de uma acácia, onde trinava um rouxinol, para ver passar os romeiros,
que se dirigiam, em bandos, para o arraial.
Antes de chegar ao adro, passava-se por dois arcos de murta com
flores, dos quais pendiam bandeiras e galhardetes de cores garridas.
Às onze horas da manhã ouvia-se o murmurinho surdo do ajuntamento
no lugar da romaria. Pela estrada já pouca gente passava; e a que ainda vinha à
festa, caminhava devagar, fatigada, rente dos muros das quintas, para se
abrigar do calor ardente e abafadiço de julho.
De repente, na curva que a estrada faz, junto do pinheiral,
apareceu a carruagem da Sra. Viscondessa, que era, nesse ano, a juíza da festa.
Os transeuntes paravam, encostados aos muros, e voltavam-se para
ela, com os chapéus na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma rainha.
A carruagem descoberta era tirada por duas éguas inglesas, que esbofavam com
ruído, batendo as patas a compasso na areia fina e reluzente da estrada. O
cocheiro vinha aprumado na almofada, com as pernas esticadas, e na mão direita
levantada suspenso o pingalim. Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem,
a Sra. a Viscondessa sorria afável para os lados, agitando levemente a cabeça.
Uma marquesinha cor de
pérola abrigava-a do sol. No lugar da frente ia o Sr. Abade, um Abade ainda
novo, muito escanhoado, vestido com batina lustrosa, cabeção de renda, barrete
de cetim levemente inclinado na coroa da cabeça. Levava as mãos cruzadas sobre
o ventre e os olhos fitos no vestido da Viscondessa, um vestido verde-mar, com
guarnições de renda, que se abria diante dele, como um leque.
Os romeiros, só depois da carruagem passar, é que continuavam o
caminho, e, olhando entre si de um lado e de outro da estrada, sorriam
gloriosos.
Quando a Sra. Viscondessa apeou à porta da igreja, estalou no ar
uma girândola de foguetes; e eu, que não tencionava assistir à festa, acendi um
charuto, e dirigi-me vagarosamente para o lugar da igreja, antes que
principiasse o sermão.
***
Estava a igreja armada com sanefas e cortinas de damasco
escarlate, onde as luzes das tocheiras de prata do altar punham reflexos
vermelhos.
Fora da teia gradeada do altar-mor, via-se o povo, de pé,
apinhado, com o olhar espantado e perdido na decoração ostentosa do templo. A
pedra do altar-mor estava revestida com toalha franjada de rendas. Um tapete
largo de variegadas cores cobria o estrado do altar, descia os três degraus
preso por varões de metal lustroso, e estendia-se na capela-mor até à grade.
Três padres velhos, avergados sob o peso das capas de asperges com brocados de
ouro, estavam sentados ao lado, com os pés unidos e estendidos para a frente.
Sentia-se um cheiro forte a incenso; e, no coro, soavam as últimas notas
plangentes das rabecas acompanhadas a órgão e rabecão.
A Sra. Viscondessa entrou apressada pela porta lateral, que dava
para a sacristia, e ajoelhou-se em frente do altar, com a cabeça muito
levantada e os olhos pregados na imagem do Cristo crucificado em meio de luzes
e ramos de flores. Depois de rezar, com as mãos postas em súplica junto do
seio, persignou-se lentamente e sentou-se.
Nesse instante, houve um rumor vago entre os fiéis, que enchiam o
templo.
O pregador aparecera no púlpito. O seu rosto oval de uma palidez
maviosa, fronte larga, barba escanhoada e azulada no queixo, destacava-se da
alvura da sobrepeliz de cambraia bordada.
As suas mãos estreitas e brancas saíam dentre as rendas aniladas
das mangas, que lhe chegavam até à raiz dos dedos.
O Abade olhou atentamente o auditório, e ajoelhou. Ergueu-se
depois, arrepanhou os canhões da sobrepeliz, ajeitou a estola, espigarrou com
tom solene e passou à flor dos lábios o lenço, que depôs cuidadosamente ao
lado. Em seguida, fincando a palma das mãos no parapeito do púlpito, adiantou o
busto para a frente e principiou com voz débil:
— “Mulierem fortem quis
inveniet? Proverb. 31” .
Era o sermão de Santa Isabel, rainha e mártir. O pregador
historiou a vida da santa, desde o tempo em que, menina e moça, nos seus
palácios de Aragão, o seu principal divertimento era a oração e o exercício da
caridade. Desposada por el-rei de Portugal, D. Diniz, em breve as leviandades
amorosas do esposo lhe amarguraram o coração traído.
— “Por que — exclamava o pregador, alçando o braço — quantas vezes
o
manto de uma rainha esconde um coração atribulado!? Em meio da
ostentação de um palácio, cercada de todas as magnificências reais,
filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemônia, quae
Regis filia, Regis uxor, a princesa santa não tinha o sossego, o
descanso, a alegria da mulher humilde de um mecânico!
manto de uma rainha esconde um coração atribulado!? Em meio da
ostentação de um palácio, cercada de todas as magnificências reais,
filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemônia, quae
Regis filia, Regis uxor, a princesa santa não tinha o sossego, o
descanso, a alegria da mulher humilde de um mecânico!
Era rainha, Regis uxor, era poderosa, era rica; mas
a principal
riqueza era a da sua alma.
riqueza era a da sua alma.
O ouro copioso dos seus
cofres não tinha o grande valor do ouro
de alto quilate do seu coração, — ouro de lei, puríssimo, sem liga,
que se não gasta e consome com o uso, antes se acrisola e
engrandece com o exercício das boas ações!”
de alto quilate do seu coração, — ouro de lei, puríssimo, sem liga,
que se não gasta e consome com o uso, antes se acrisola e
engrandece com o exercício das boas ações!”
Algumas mulheres soluçavam comovidas; e a Sra. Viscondessa, que o
ouvia com atenção, fechava os olhos em sinal de concordância, e acenava
afirmativamente a cabeça.
Prosseguia o sermão. O pregador falava da santa, quando acudia
pressurosa aos infelizes. Referiu o milagre da transformação dos pães em
flores, sendo surpreendida pelo rei, quando ia esmolar aos pobrezinhos!
Depois, adiantando paralelas as mãos, como se quisesse atrair num
braçado o auditório estupefato, dizia:
— “Vede para que serve o ouro!
Não vos julgueis desgraçados, se vos não assistem grandes riquezas! Não deixeis
que a inveja se enrosque, como serpente ardilosa do inferno, em vossos
corações”.
E, apontando o indicador para o
céu, prosseguia com voz mais solene:
— “É aí que se vê a previdência
de Deus! Concedeu o ouro aos ricos, para que o distribuíssem pelos pobres!
Pedir não é humilhação nem vergonha! Deu-nos o exemplo Jesus, o Divino Mestre,
que ensinou aos discípulos a pedir com humildade!
E que maior consolação —
continuava o pregador — que maior consolação do que socorrer com a esmola
àqueles que a fortuna fez menos abastados!? Apagar a fome, saciar a sede,
vestir os nus, enxugar as lágrimas das viúvas, amparar a orfandade, dar arrimo
à velhice!”
E exclamava:
— “Oh! santa caridade! Oh! flor
sacrossanta do altar de Deus! A caridade…”
E retraindo-se no púlpito, arqueando os braços à frente, aproximando
as mãos com as cabeças do indicador e polegar delicadamente unidas, recitava
com voz untuosa, repassada de mimo:
À noite a virgem modesta,
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hinos da festa,
E envolta em cândidos véus,
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hinos da festa,
E envolta em cândidos véus,
Desce a escada suntuosa,
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
Foi de um efeito surpreendente! O auditório sentia calafrios:
passava nele a corrente magnética do entusiasmo!
O pregador rematou em tom familiar, com voz mais baixa,
aconselhando aos pobres, que seguissem o exemplo de Jesus, que andou a pedir
pelo mundo; e aos ricos, que se amoldassem pela Rainha Santa, que distribuía
pelos desgraçados as riquezas do seu palácio.
— “Amen.”
E saiu do púlpito açodado, vermelho, anelante, a enxugar com o lenço
o suor copioso, que lhe corria da testa.
***
Nesse dia, jantou o Sr. Abade com a Sra. Viscondessa. Quando eu
cheguei, tinham-se já levantado da mesa, e estavam sentados no terraço, à
sombra do toldo listrado.
Defronte da Viscondessa, o Abade, refestelado em uma larga cadeira
de vime, sorvia o café a pequeninos goles.
Cumprimentei o pregador pelo sermão; e a Sra. Viscondessa,
levantando entusiasticamente a cabeça, confirmou do lado:
— Admirável! admirável! Diga-me, Sr. Alberto — continuou ela,
batendo-me familiarmente no joelho — não acha que o Abade recitou a poesia com
mais mimo e mais sentimento do que a Emilia Adelaide, em D. Maria?
— Ah! — exclamei eu, espantado do confronto — sem dúvida!
O escudeiro entrou com uma bandeja de prata para receber as chávenas.
Aproximou-se da Sra. Viscondessa, e disse-lhe a meia voz:
Aproximou-se da Sra. Viscondessa, e disse-lhe a meia voz:
— Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola a vossa excelência.
— Que impertinência! — exclamou ela, carregando o sobrolho com
gesto de enfado. — Pois dê-lhe lá uma esmola, Francisco.
O Sr. Abade, que ia para beber o último gole de café, ouvindo
aquilo, suspendeu a xícara no ar, e acudiu do lado, com modo insinuante:
— Isso! Costume-os, Sra. Viscondessa — dizia ele, meneando
pausadamente a cabeça — costume-os mal, e verá que lhe não largam a porta!
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