O patriota Washington: Doutor Washington Coelho Penteado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O sol ilumina o Brasil na manhã escandalosa e o Doutor Washington Coelho
Penteado no rosto varonil. Há trinta e oito anos Deodoro da Fonseca fundou a
República sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do
chofer:
— Toca pra Mogi das Cruzes!
Minutos antes arrancara da folhinha do
EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado pelos filhos escrevera a lápis
azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha a tirar o gorro
marinheiro porque ainda não sabia fazer continência.
Muitíssimo bem. Agora segue de
Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo ia se viu uma manhã
tão linda assim?
Eta Brasil.
Eta.
Na lapela uma bandeirinha nacional.
Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande conflagração. Ou bem que
somos ou bem que não somos. O doutor é de fato: brasileiro graças a Deus. Onde
desejava nascer? No Brasil está claro.
Ao lado dele a mulher é assim assim.
Os filhos sabem de cor o hino nacional. Só que ainda não pegaram bem a música.
Em todo o caso cantam às vezes durante a sobremesa para o doutor ouvir. A
bandeira se balançando na sacada do Teatro Nacional lembra ao doutor os
admiráveis versos do poeta dos Escravos.
— Sim senhor! É bem a brisa de que
fala Castro Alves.
— Que brisa, Nenê?
— Nada. Você não entende.
Ele entende. E goza a brisa que beija
e balança.
— O Capitão Melo me afirmou que não há
parque europeu que se compare com este do Anhangabaú.
— Exagero...
— Já vem você com a sua eterna mania
de avacalhar o que é nosso! Pois fique sabendo...
Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a
senhora sabendo que o que é nosso é nosso. E vale muito. E vale mais que tudo.
Vá escutando. Vá escutando em silêncio. E convença-se de uma vez para não dizer
mais bobagens.
— Veja o movimento. E hoje é feriado,
hein! Não se esqueça! Paris que é Paris não tem movimento igual. Nem parecido.
— Você nunca foi a Paris...
Isso também é demais. O melhor é não
responder. Homem: o melhor é estourar.
— Meu Deus do céu! Não fui mas sei!
Toda a gente sabe! Os próprios franceses confessam! Mas você já sabe: é a única
pessoa no mundo que não reconhece nada, não sabe nada!
Guiados pelo fura-bolos do doutor
todos os olhares se fixam na catedral em começo.
— Vai ser a maior do mundo! E gótica,
compreenderam? Catedral gótica!
Na cabeça.
Gostosura de descer a toda a Ladeira
do Carmo e cair no plano do Parque D. Pedro II.
— Seu professor, Juquinha, não lhe
ensinou que D. Pedro era amicíssimo, do peito mesmo, de Victor Hugo, gênio
francês?
Juquinha nem se dá ao trabalho de
responder.
— Pois se não ensinou fez muito mal.
Amizades como essa honram o pais.
O chofer não deixa escapar um só
buraco e Dona Balbina põe a mão no coração. Washington Coelho Penteado toma
conta do cláxon.
— São um incentivo para as crianças.
Quando maiores procurarão cultivá-las também.
O vento desvia as palavras do doutor,
dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita bonde nem nada. Pomba só
levanta o voo quando o automóvel parece que já está em cima dela.
— Este Brás! Este Brás! Não lhes digo
nada!
Dez fósforos para acender um cigarro.
Dona Balbina olha a paineira. Mesma
coisa que não olhasse. Juquinha vê um negócio verde. Washington Júnior um
negócio alto. O doutor mais uma prova da pujança primeira-do-mundo da natureza
pátria.
Interjeição admirativa. Depois:
— Reparem só na quantidade de
automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro de boi!
60 por hora.
O Chevrolet perde-se na poeira. Dona
Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.
— Pó quer dizer progresso!
Palavras assim são ditas para a gente
saborear baixinho, repetindo muitas vezes. Pó quer dizer progresso. Logo surge
uma variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente progresso. Na
antiga Grécia... Mas uma dúvida preocupa o espírito do doutor: a frase é dele
mesmo ou ele leu num discurso, num artigo, numa plataforma política? Talvez
fosse do Rui até. Querem ver que é do bichão mesmo? Engano. Do Rui não é. Do
Epitácio, do Epitácio também não. Não é nem do Rui nem do Epitácio então é dele
mesmo. É dele.
Washington Júnior com o dedo no cláxon
esta torcendo para que apareça uma curva.
Velocidade.
— O Brasil é um gigante que se
levanta. Dentro em breve...
Era uma vez um pneumático.
— Aquele telhado vermelho que vocês
estão vendo é o Leprosário de Santo Ângelo.
É preciso ser bacharel e ter alguns
anos de júri para descrever assim tão bem os horrores da morfeia também
cognominada mal de Hansen, esse flagelo da humanidade desde os mais remotos
tempos.
Dona Balbina se impressiona por
qualquer coisa. Mas agora tem sua razão.
Altamente patriótica e benemérita a
campanha de Belisário Pena. A ação dos governos paulistas igualmente. Amanhã
não haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há mas isso de ter morfeia
não é privilégio brasileiro. Não pensem não. O mundo inteiro tem. A Argentina
então nem se fala. Morfético até debaixo d'água. E não cuida seriamente do
problema não. Está se desleixando.
É. Está. Daqui a pouco não há mais
brasileiro morfético. Só argentino. Povo muito antipático. Invejoso, meu Deus.
Não se meta que se arrepende. Em dois tempos... Bom. Bom. Bom. Silêncio que a
espionagem é brava.
As casas brancas de Mogi das Cruzes.
— Qual é o número mesmo daquele
automóvel que está parado ali?
— P. 925.
—
Veja você! P. 925!
Uma volta no largo da igreja. Parada
na confeitaria para as crianças se refrescarem com Mocinha. Olhadela disfarçada
em quatro pernas de anjo. Saudação vibrante ao progresso local.
Chevrolet de novo.
— Toca pra São Paulo!
Primeira. Solavanco. Segunda. Arranco.
Terceira. Aquela macieza.
— Não! Pare!
— Pra quê, Nenê?
— Uma coisa. Onde será o telégrafo?
Onde será? Que tem, tem.
— O patrício pode me informar onde
fica o telégrafo?
Muito fácil. Seguir pela mesma rua.
Tomar a primeira travessa à direita. Passar o largo. Passar o sobradão
vermelho. Virar na primeira rua à direita.
— Primeira à direita?
Primeira à direita. Depois da terceira
é o prédio onde tem um pau de bandeira.
— Pau, não senhor. Bandeira
desfraldada porque hoje é 15 de novembro. Muito agradecido.
Faz a família descer também. Puxa da
caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: Exmo. Sr. Dr. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil.
Palácio do Catete. Vale a pena pôr a rua também? Não. O homem tem que ser
conhecido por força. Bem. Rio de Janeiro.
Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado uma hora dezessete minutos
magnífica rodovia enviamos data tão grata corações patrióticos efusivos quão
respeitosos cumprimentos erguendo viva República vossa excelência. Que tal?
Ótimo, não? Só isso de República vossa excelência é que está
meio ambíguo. Parece que a República é de sua excelência. Não está certo. A
República é de todos. Assim exige sua essência democrática. Assim sim fica
perfeito: República e vossa excelência Bravo.
Dr. Washington Coelho Penteado, senhora e
filhos.
—
Quinze e novecentos.
— E eu que ainda queria pôr uma
citação!
Não precisa. Como está está muito
bonito.
— É bondade sua. Uma coisinha ligeira,
feita às pressas...
Enquanto o telegrafista declama os
dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa os quinze mil e
novecentos réis.
Em plena rodovia de repente o doutor
murcha. Emudece. Dona Balbina que estava dorme-não-dorme espertou com o
silêncio. O doutor quieto. Mau sinal. Procurando adivinhar arrisca:
— Que é que deu em você? O preço do
telegrama?
O gesto deixa bem claro que isso de
dinheiro não tem a mínima importância.
Dona Balbina pensa um pouquinho (o
doutor quieto) e arrisca de novo:
— Medo que o chefe saiba que você usa
o automóvel de serviço todos os domingos? Domingos e dias feriados?
O gesto manda o chefe bugiar no
inferno.
O Chevrolet corre atrás dos marcos
quilométricos.
Só ao entrar em casa o doutor se
decide a falar.
— Esqueci-me de pôr o endereço para a
resposta!...
— I-DI-O-TA!
Olhem só o gozo das crianças.
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