O naufrágio do Purus
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Este é o sítio em
que, há vinte anos quase, afundou-se o Purus,
arrastando para o leito do rio algumas dezenas de cadáveres colhidos de
surpresa.
O Amazonas aqui, como
conservando ainda a triste memória do lutulento sucesso, rola silencioso as
suas águas, cobre-se eternamente com o intenso crepe, acentuado e mesto,
do vasto rio Negro.
Têm as margens a
aparência de um recinto de funeral: sossegadas e desertas, monotonizam o quadro
com a ininterrupta ostentação das suas ramalhudas verduras densíssimas.
Nenhum gorjeio de
pássaro percebo na larga mudez circundante.
No alto, o céu,
apinhado de nuvens escuras, encobre-me aos olhos a risonha alegria do seu
puríssimo azul, adorável como as pupilas de uma imagenzinha da Virgem, que
minha Mãe, em pequenino, ensinou-me a reverenciar com o contemplativo respeito
das crianças absortas!
Passamos neste mesmo
instante sobre o lugar onde atufou-se a elegante embarcação aventureira.
Um pensamento de
saudade assalta-me o espírito, agora que deslizei rápido por cima do
líquido sapulcro de tantos infelizes.
Relembro, com a
forçosa evocação do meu passado, as confusas recordações da primeira idade e
reproduzo na mente, consoante às narrações da época, o pasmoso entrecho do
hórrido espetáculo.
Vejo pessoas de todos
os sexos e idades, em meio à densa escuridão da noite, bramindo apavorados
gritos, impetrando o auxílio do céu impassível, amaldiçoando o momento final
com o torvo desespero das grandes aflições.
A bracejar contra a
correnteza, lobrigo um ou outro náufrago naquele pego, quase tão vasto como o
do mantuano cantor. Uns, redobrando de esforços, conseguirão alcançar a margem
anelada; a mor parte, porém, certo fraquejará impotente na violência das
águas e rolará inanimada aos profundos antros dos caimões!
Num camarote,
vencida, dominada por tredo sono, uma jovem mulher angelical, esposa
estremecida e extremosíssima, é surpreendida pelas águas em sua descuidosa
seminudez inconsciente e logo sufocada sem haver tempo de reconhecer o perigo
por que passa com os seus, — com os parentes afetuosos e com o infeliz marido,
o comandante austero, de quem separa-a, sem transigências, a compreensão do
cumprimento do dever.
E ali morre, com o
pobre coração retalhado de angústias e amaríssimas saudades, uma valente mulher
de temperamento e atividade viris, guia e ama de muitos daqueles náufragos. É a
heroica exploradora de uma parte do rio Madeira, a veneranda mãe de um
punhado de homens honrados e de honestíssimas mulheres, — a idolatrada mãe
daquela excelsa criatura que deu-me luz aos olhos e piedosos sentimentos ao
coração!
II
Compreendo agora
perfeitamente a dor que rasgou-te os puros seios d'alma, querida Mãe, quando
correram a referir-te o hórrido sucesso.
Criança quase
irresponsável, eu não tinha a percepção completa daqueles afligidíssimos
desesperos em que te lançaste, com os olhos amarados de lágrimas
adamantinas.
Entrei a brincar-te
com os longos cabelos pretos, minha adorável amiga, e um beijo tão sincero como
a tua dor depuseram-te na fronte ensombreada meus lábios deslaçados em simples
frases sem valor.
Hoje, porém, ó Mãe,
avalio com justeza a aflição que em ti causou tão desumano flagício da sorte
inclemente. Sondo, linha por linha, todos os arcanos do teu seio, ausculto-lhe
as precipitadas palpitações soluçantes e lamentosas.
Choravas,
inconsolável e dolentíssima, porque deixaras de ter mãe.
Sinto conhecer-te a intensidade
das penas, porque também perdi-te para sempre e só minha alma pode saber a
força de toda a violenta dor que, há seis anos, confrange-a impiedosa, minuto a
minuto, persistentemente, tantas são as vezes que de ti me lembro, inolvidável
mulher que foste a guia da minha infância e a amiga insubstituível da minha
adolescência!
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