O juramento da Condessa Ester
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Tenho consultado
tudo, tudo! A homeopatia, o sistema Brugrave, o Raspail, tudo! Mas os alívios
poucos, nenhuns mesmo. É esta dorzinha vaga no peito, esta tosse seca, pouca
vontade de comer, ventre preso... Quando se chega à minha idade, é esperar pela
morte, bem o sei.
— Qual!
— Ah! eu não a
receio, meu bom amigo. Somente me afligiria a saudade dos que amo, e o amor da
minha filha... — Baixava a voz para dizer-me — Tem-me perseguido a ideia de
consultar um enfermeiro. Ouço que entendem muito de doenças... Morrer, deixar
Ester, seria o último castigo.
Em resposta, eu ria.
A condessa ia começar a narrativa de uma cura estrondosa, feita numa senhora das suas relações, por um dos tais.
— E está hoje gorda e
alegre, que não faz ideia.
— Faço, faço.
— Depois, os remédios
que me receitam os médicos, repugnam-me. Tenho horror à magnésia, horror ao
cheiro da cânfora, horror às pílulas, que bem podem ser manipuladas por
sujeitos pouco limpos. Alguns dos medicamentos nem os tomo.
— Eis porque se não
cura, condessa. As águas de Loeches são suaves...
— Horríveis! E tão
prosaicas...
— De certo, de certo.
Tanto mais que vossa excelência tira efeitos poéticos da doença que diz sofrer,
confesse.
— Aí vem a sua má
língua, doutor. Na minha idade a poesia é o amor dos filhos. Eu sofro muito,
sofro, palavra de honra. E se fosse um aneurisma, meu Deus!...
— Aí, está vossa
excelência poetando com hipóteses de martírio, simples achaques a que todos
estamos sujeitos. Que diria então eu, que vossa excelência vê na flor da vida e
na aparência da mais radiosa saúde? O meu estômago!
— E o meu, doutor, o
meu?
—
A condessinha Ester tem a paixão das begônias; a Sra. duquesa de Serpa
adora os cães d'água; a Sra. marquesa de Vale de Perdizes esculpe; a
esposa do negociante Domingues trabalha em creches e prêmios de escolas. E cada
uma faz destas predileções a sua aureola de poesia, de que se circunda no
mundo. Vossa excelência tem os seus sofrimentos. É uma compensação.
— Já vejo que está
hoje pior, Conde! gritou ela para a mesa do jogo onde quatro homens faziam whist, à luz de uma serpentina. Um velho
calvo e magro severamente abotoado e de bigodes altivos, ergueu-se
respeitosamente e veio junto de nós.
Por detrás dos
óculos, luziam-lhe aguçadas as pupilas de míope: andava com ares majestosos de
ministro, gesticulando sobriamente.
— Que é? disse ele
firmando as mãos nos gomos do divã da condessa mãe.
— Pode falar-me da
sua pré-história, porque o meu amigo doutor teima em satirizar os meus
padecimentos. Vamos, sente-se aqui.
— Mas a partida...
— O doutor vai substituí-lo,
sim?
— Será por pouco
tempo. — Fui. Ester não viera ainda. As senhoras começavam a chegar em pequena
gala, com bournous de
casimira branca forrados a cetim e peles. Eram os convivas certos daquelas
pequeninas soirées,
tão íntimas, tão aconchegadas e tão doces, que os ditos e
excentricidades da condessinha animavam, e a rabeca de Zebedeu Kebler,
israelita louro como Jesus e tão casto como ele, enchia de frêmitos estranhos e
infinitas harmonias. Kebler adorava a condessinha com uma paixão supersticiosa
e ardente. Estava sempre onde ela estava; em São Carlos, a sua cadeira era
defronte da frisa dela; aparecia nos bailes a que ela ia, melancólico e pálido,
uma elegância fina de gentleman;
e nas conversações mais frívolas, em podendo, metia, sem quase dar por isso, o
nome dela. Ester era trigueira e alta, de uma distinção única e de uma
elegância sem rival. O esmalte dos seus dentes destacava fresquíssimo no
vermelho das gengivas, como um adereço rico num estojo de veludo cereja. Nada
mais esplêndido que a linha do seu busto nervoso e cinzelado, e a redondeza das
suas espáduas reais, surgindo de espumas de renda na
fervilhação opulenta dos bailes. Fui ter com o judeu. De pé, junto da banca de
jogo, ele olhava sem ver coisa alguma. Tomei-lhe o braço e fomos para o vão de
uma janela. E antes que eu falasse, ele disse:
— Já penetrei no
mistério.
— Qual?
— O da condessinha.
— Vamos a ver como.
— Ela é muito
supersticiosa. Não admira, sangue judeu...
— Sangue judeu! Ela? —
Kebler baixou a voz e contou-me:
— Que certo vendedor
de tâmaras, freguês assíduo de uma hortaliceira, chegara a amar esta. Do amor
dos dois, fermentou um garoto que se meteu cambista, de onde mais tarde surgiu
uma obesidade milionária que um governo endividado fez Barão e par.
— Que perspicácia
audaz empregou o meu amigo para saber tanto? Caramba!
— Ouça: implantada
por esta forma, a nobreza foi subindo de um grau de filho para filho. Até que
um dia, o pai de Ester apareceu conde.
— A esposa era muito
formosa então, para poder alcançar tudo. Seria duquesa
até, se o houvesse querido, disse eu sorrindo.
— Língua danada!
— Adiante. É então
supersticiosa, hein?
— Não imagina.
— Eis o meio de
sustar-lhe a golfada de sarcasmos de que às vezes nos cobre. Em ela me ferindo,
quebro um espelho da sala, verá. Mas vamos ao mistério. Creio que foi mistério, que disse.
— Foi. Ester teve uma
grande paixão!
— Como a da
hortaliceira golegã, sua avó, pelo vendedor de tâmara e sabonées. Fermentou alguma
coisa de?...
— Olhe que me zango
seriamente, e fica sem saber nada.
— Está bem; estou já
calado.
— Uma paixão fatal!
Amou...
— Essa reticência
traz um padre ou um trintanário.
— Infelizmente. Amou
um primo, doutor em teologia, que já dissera missa.
— Bem dizia eu!
— Dizem que bela
figura.
— Não me custa a
crer, pois que o afirma. E o primo amou a prima? Sacrilégio no último ato,
suicídio ao cair do pano. Adivinhei?
—
Quase. O primo era um homem digno; além disso não chegou a saber toda a verdade
da boca dela. Desconfiou apenas que era amado e fugiu para as missões do
ultramar.
— Oh incomparável
levita! Eu não fugia para tão longe. E ela?
— Ela jurou que não
amaria mais ninguém na vida.
— E como não lhe
fosse permitido professar...
— Não seja leviano.
Ester adora as begônias, como sabe.
— Paixão que acarreta
ao meu amigo uma despesa séria. Cada dia lhe traz uma espécie nova, numa corbeile admirável.
— Essa adoração tem a
seguinte história. À hora da partida o missionário mandou à condessinha num
vaso da China, uma esplêndida begônia rex-isis,
espécie do mais belo efeito decorativo. É um vaso amplo, de figurinhas em
relevo e pequenas azas de ouro, representando dragões engalfinhados.
— Conheço bem essa
preciosidade! Vale a olhos fechados cem libras. E depois?
— A begônia durou
pouco. A estufa para onde a transportaram, e a convivência das mais plantas abreviaram-lhe os dias. Já entrou na estufa da
condessinha?
— Muitas vezes. O
vaso está ao centro, sobre um pequeno pedestal de mármore branco e debaixo de
uma redoma de cristal em gomos.
— É isso, com a
begônia seca.
— Tal qual! Muitas
vezes perguntei à condessinha a história daquele esqueleto de planta. E agora
me lembro — ela ficava triste e suspirava. Era a teologia do primo adorado.
— Ontem vim
visitá-las de manhã. Trazia-lhes um eufórbio raro do México, que os franceses
chamavam Poinsetie,
exemplar soberbo. Conhece?
— Dos livros. A minha
clínica modesta não me permite despender sem proveito o que ele custa. Folhas
oblongas bordadas de verde, envernizado e vivo. Centro canário raiado de
verduras sanguíneas. Envolvendo as flores, uma coroa de grandes brácteas ovais,
do tamanho de folhas, e do mais belo escarlate, dando o efeito duma grande
flor. Uma opulência, em resumo.
— Pois bem. Eu mesmo
fui colocá-lo na estufa, permissão graciosa da condessinha.
— Mau!
— Está bom: curvo a
cabeça. Venha o resto.
— Quando nos achamos
na estufa e em meio das folhas de mil desenhos que ali há, ela tomando-me as
mãos, disse-me comovida:
— Como hei de eu
agradecer a sua solicitude, Zebedeu?
— Ela disse: Zebedeu?
— Disse.
— Meio caminho
andado, então. Mais dois minutos, e tinha-a pendurada no pescoço. Que gata,
essa trigueira tentadora!...
— Eu nem podia falar!
— Oh castidade loira
de vinte anos!
— E apertava-me tanto
as mãos...
— Sim? Depois, um
beijo... ou dois... ou três...
— Fale com franqueza,
disse-me ela. O senhor ama-me. — Eu estava a tremer como um poltrão. — Ouça,
tornou Ester; fiz um juramento.
— Qual? perguntei em
voz baixa.
— A não ser?...
— Que aquele vaso de
pedestal aparecesse em pedaços um dia, sem ninguém lhe tocar.
— Mas isso é
impossível.
— Então veja se posso
amá-lo. Ela estava tão triste!... Talvez não creia: chorei! — Calamo-nos,
porque naquele instante, uma voz fresca deu uma risadinha à porta, e as
senhoras correram para uma rapariga de branco, que vinha entrando. Era Ester.
— Zebedeu Kebler, meu
incomparável artista, um pouco da sua rabeca, disse ela em voz alta, antes de
beijar ninguém.
— Bom sinal!
resmunguei ao pobre rapaz.
O judeu deixou-me
logo, alegre por ser lembrado, e foi abrir o estojo do instrumento.
— Que ridículos são
estes sentimentos! pensava eu. Apertam-lhes as mãos numa estufa e a sós, muito
e muito, e desatam a chorar. Grandíssimo tolo! Não o pode amar? Fez ela muito
bem. Amar um homem que em lugar de cobrir de beijos uma mulher lindíssima que
se rende, fica a tremer, seria uma vergonha: apre! Fui ter com a condessa,
enfastiado e murmurando:
No dia seguinte,
tinha eu acabado a consulta quando chegou Kebler.
— Vem acabar-me a
história de ontem?
— Venho solicitar a
sua presteza de atirador.
— Chegou o teólogo?
desafiou então um ministro do altar? Bárbaro! Cruel! Desalmado!
— Qual! Tenho um
projeto.
— Aceite este
charuto, aqui tem lumes, sente-se e conte-me o projeto.
— O alvo do irmão de
Ester fica perto da estufa; pois não fica?
— Creio que sim.
— O senhor vai ali exercitar-se
muitas vezes, segundo me disse o Álvaro.
— Vou.
— Ouça. Eu levanto um
caixilho da estufa...
— Mas é preciso a
chave que abre todos esses caixilhos. Talvez não pensasse em tal?
— Tenho-a aqui;
roubei-a agora mesmo. Posso guardá-la por estes dias. O tempo está chuvoso e
frio, de modo que não ventilarão a estufa por agora.
— Então?
— O senhor ganha o
prêmio, e eu fico a chuchar o dedo.
— Quê? Ama a
condessinha?
— Eu amo toda a
gente; que diabo!...
— Estou esperando a
sua resposta.
— Que eu parta aquele
vaso da China porque daria tudo? Está louco!
— Olhe para mim. Se o
não fizer...
— Dá um tiro no
crânio; dá?
— Qual! fico solteiro
toda a vida.
— Bem, essa
simplicidade enternece-me. Esteja amanhã aberto o caixilho, e a bala
esmigalhará o vaso. Mas como entra o senhor no jardim?
— Saltando o muro que
o separa da casa em que habito.
— O senhor é o diabo.
— Se a adoro!
Na noite seguinte,
havia reunião em casa da condessa. Os grupos das mais noites. Ao fundo do
salão, a banca de whist, onde o
cultor da pré-história se notava de lunetas altas, sob que as pupilas
fuzilavam. No divã amarelo, a condessa queixando-se-me da falta de apetite e de
tosse seca. Ester radiosa, no meio das suas amigas.
Zebedeu Kebler muito pálido e muitíssimo preocupado, ferindo de um modo
inteiramente magistral as cordas da rabeca.
— Meus senhores,
disse a condessa em voz alta, erguendo-se. Tenho a honra de lhes anunciar o
casamento de minha filha Ester com o senhor Zebedeu Kebler.
Ouviu-se o estalido
de uma corda de rabeca, subitamente quebrada. O conde das lunetas erguera-se,
aprumando a alta estatura. Ester confessava ruborizada que... Deus o queria. Tinha aparecido em
pedaços o vaso da China, sem que lhe tocassem. E de mais amava aquele rapaz,
tão elegante e tão distinto, de cujo braço seria um encanto pender coroada de
flores de laranjeira.
— És meu padrinho!
disse-me com um abraço de reconhecimento, o judeu.
— Já agora...
respondi.
O meu presente nupcial,
foi um vaso chinês inteiramente igual ao que aparecera esmigalhado. Crescia
nele um hibiscus do Japão,
trepadeira da mais rendilhada contextura, folhas exóticas e flores em
grinaldas.
— Eis porque eu daria
tudo pelo vaso quebrado, disse a Kebler, com uma vaga saudade de amador. Se o conseguisse adquirir, completaria o mais belo
par europeu. Guardem esse vaso no lugar do pobre esmigalhado, e que ele seja o
talismã de um amor, fecundo em bébés de
olhos azuis, menos romanesco que o amor do primo, e mais durador por isso
mesmo.
Um frou-frou de saias
fez-me voltar a cabeça; à porta, a cabecinha de Ester assomara curiosa, e os
seus dentinhos brancos de gata contente brilhavam, sorrindo de um modo
encantador.
Nunca fui piegas,
palavra de honra — mas inda hoje tenho calafrios pensando nos dentes daquela
mulher.
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