10/23/2017

O jantar do Natal (Conto), de Alberto Braga


O jantar do Natal

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Até a natureza se enfeita para festejar também o Natal do Deus-Menino!
Ao meio dia, quando o sol parece estacionar no zênite, como um viajante que para no viso de uma montanha, para resfolegar da caminhada, estava o firmamento azul, de uma limpidez cristalina, tépido o ar, e dentre as flores silvestres dos prados e das encostas ascendia uma tênue vaporização, como se a terra fosse um enorme turíbulo a incensar para o céu!
As vacas descansavam nos currais, os rebanhos nos redis; e, à sombra das arribanas, viam-se os carros com os cabeçalhos caídos, os arados com as rabiças por terra, e as cangas, os ensinhos, todo o utensílio da lavoura deposto a um canto, como armas valentes do trabalho nas feriadas e alegres horas do descanso.
As moças iam colher arregaçadas de violetas e rosas para inflorar o presepe. Nas cozinhas andava tudo em uma roda viva! Tirava-se da arca a melhor toalha de linho, a melhor louça da copa, e punha-se na mesa que nem um palmito! Até o balaio do pão estava aberto e franco; porque não havia de haver pobrezinho que fosse da porta sem a consoada!
E o presepe? Aquilo podia-se ver! à frente, deitado sobre as palhas de um estábulo, via-se o Menino, de barriga para o ar, nuzinho em pelote, a sorrir para Nossa Senhora, que o contemplava, de joelhos, com o radiante júbilo das mães. Da outra banda estava São José com a enxó e o martelo de carpinteiro postos ao lado. Mais atrás, uma vaca malhada fitava no Infante os seus grandes olhos redondos; e um jumento lanzudo, de orelha empinada, aproximava cobiçosamente o focinho, dilatando as ventas ao cheiro fresco da palha. Pelos atalhos da encosta, desciam à frente das bailadeiras, os pastores de Belém, um a soprar na gaita de foles, outro a rufar no tambor, outro a bater as castanholas. No cabeço do monte, apareciam já os três reis magos, São Baltazar, São Belchior, que é o rei preto, e São Gaspar; e todos eles cobertos de capas de arminho, com as coroas reluzentes, e montados em cavalos baios e russos, ajaezados de ouro e pedrarias. No cimo de tudo, entre nuvens, surgia uma pomba branca, de cujo bico cor de rosa se espargiam raios de luz celestial, que vinham aureolar o berço do Deus Menino! Era uma coisa rica!
Em volta do presepe, a pequenada cantava alegremente:
Ó Infante suavíssimo
Vinde, vinde já ao mundo…


E interrompiam o cântico para correrem à porta a ouvir as raparigas da vizinhança, que entoavam em coro:
Vimos dar as boas festas
à senhora morgada
E pedir-lhe que nos mande
Já a nossa consoada.
Pois não? Lá entra aquela tropa fandanga na cozinha para ajudar a fazer os mexidos e a apurar as rabanadas com mel e vinho quente! Uma folia, que era mesmo um regalo ver!
Antes de se ir para a mesa, contaram-se os convivas; que não fosse chegar-se ao número treze, e não houvesse mais alguém! Credo! O número treze é número aziago! Estando treze pessoas ao jantar, no prazo de um ano, tem de morrer uma. E deixem lá falar quem fala, e quem diz que são histórias! Até Alphonse Karr confessa que não gosta de jantar em mesa de treze pessoas!
— Também esse? — pergunta circunspectamente a Sra. morgada, sem ter o gosto de o conhecer.
— Pudera, minha senhora!
— Então, vá vendo!
— Mas — atalha o cético — diz que não gosta de estar à mesa de treze pessoas, quando o jantar chega só para doze.
— Ah! — exclamou a companhia — olha o demo do homem!
Quando todos procuravam o seu lugar respectivo, exclamou alguém:
— E o tio Simão?
— Ai! que falta o tio Simão!
E cada um se desculpava com o próximo.
— Esta gente trás a cabeça a juros! — exclama a senhora.
— Já viram? Ir-se jantar sem o velhinho!
— Quem chega aos açudes chamar pelo Simão?
— Vou eu.
— Eu vou.
— Eu também.
Afinal, vai tudo.
As raparigas ergueram-se todas de uma vez e deitaram a correr! Parecia mesmo uma revoada de pombas mansas, que ouvissem estourar ali perto um tiro de espingarda! Fugiu tudo!
***
Morava o tio Simão da outra banda do rio. Tinha uma casita de telha vã, com o seu palminho de terra plantado de horta. Contava 75 anos, mas rijos, e tão rijos, que o deixavam ainda atravessar as poldras, todos os domingos, quando vinha jantar a casa da Sra. morgada. Fora ele casado, e tivera três filhos; mas chamou Deus a si os três filhos e a mulher, e deixou-o sozinho neste mundo, a viver da caridade dos seus benfeitores.
De uma vez que estava sentado ao sol, que — como diz o outro — é a roupa dos pobres, viu aproximar-se um cão amarelo, pequeno, feio, rabudo, com duas malhas na cabeça. O Simão atirou-lhe pão; e, tanto que lhe foi dando de comer, conservou-se o cãozito junto dele. Depois já ninguém o retirava dos pés do seu benfeitor.
Para quem vive sem companhia vejam lá que alegrão é encontrar junto de si um pequenino animal, que nos vê com olhos cheios de desinteressado carinho! Ficou o cãozito sendo o companheiro do tio Simão. Como viesse sem nome, que é como aparecem os enjeitados, o tio Simão batizou-o.
— Fiel! — exclamou ele — Fiel, anda aqui.
E aproximava-se o Fiel do velhinho, com a obediência afetuosa de um filho amado. Para onde fosse o Simão ia o Fiel.
Assim que o sol lhe bateu no postigo — que era ao meio dia que tinha lugar a visita — o Simão enfiou a jaqueta melhor que tinha, pegou no cajado a que se arrimava, chamou pelo Fiel, deu volta à chave e encaminhou-se para a residência da morgada. Quando ia a pousar o pé na primeira pedra, viu o Fiel, que ia na frente, resvalar na pedra escorregadia, e cair ao rio!
O Simão recuou cheio de susto, de aflição, com as mãos postas em súplica. O cão principiou a nadar para o seu dono; mas ia tão grossa a levada, que o não deixava vencer a corrente. Depois de muito esforço, conseguiu afinal abordar; mas todo alagado, a tremer, a ganir, com o corpinho coberto das contusões, que tinha recebido do embate das pedras.
— Anda, Fiel, anda, meu filho — dizia o pobre velho a chorar.
Tomou o cãozito nos braços, achegou-o do seio, e desandou para casa. No caminho ia dizendo:
— É o mesmo! Farei eu o caldito, que há de chegar para nós ambos!
***
As raparigas, que tinham saído da casa da Sra. morgada, iam já perto do sinceiral do rio, e não tinham ainda visto o Simão. Desceram por uma vereda; e, quando chegaram à margem, gritaram algumas:
— Ó tio Simão! eh! tio Simão!
Ninguém lhe respondeu.
— Vamos topá-lo em casa — propôs a mais expedita.
Arregaçaram as saias; e, pé aqui, pé ali, atravessaram cautelosamente para a outra banda.
Ao chegarem a casa do tio Simão, aldrabaram à porta; e a que bateu não ouvindo o ladrido do cão, exclamou para as companheiras:
— Querem vocês ver que o tio Simão já foi? O Fiel não dá sinal!
Ao cabo de um instante, porém, apareceu o velhinho a abrir-lhes a porta. E Jesus! que gritaria! Falavam todas a um tempo, e ninguém as entendia.
— Aposto que estava a ajanotar-se! — dizia uma.
— Ora, já viram? acudia outra. Como vai para o meio das moças, o tio Simão enfeitou-se que nem um altar-mor!
— Hoje deita os rapazes todos a um canto! Olha, véstia nova, hein?!
E enquanto lhe diziam isto, uma ajeitava-lhe a gola da jaqueta, outra laçava-lhe o lenço do pescoço!…
Quando conseguiu que elas o ouvissem, o velhinho respondeu:
— Digam vocês à Sra. morgada que hoje não vou lá.
— Como não vai, tio Simão? Dia de Natal e não há de ir? Isso tem lá lugar!…
Ele então contou-lhes o que tinha havido.
— Ora, adeus. O Fiel o mais que tem é nada! É um mimalho, é o que ele é. Deixe que eu lá vou.
Entraram todas para ver o que tinha o Fiel. O cão estava deitado na enxerga do Simão, abafado com o cobertor da cama, a tremer.
Uma das raparigas tirou-o para fora, enxugou-lhe o pelo com jeitoso carinho, embrulhou-o no avental e disse:
— Eu levo-o comigo, coitadinho!
Na lareira já cantava a panela, que estava sobre quatro achas acesas.
O tio Simão, que assistia a tudo aquilo com lágrimas nos olhos, disse:
— Deus vos pague no céu, minhas filhas, os benefícios que fazeis a este pobre velho.
Tornou a pegar no cajado, que tinha ao canto, e foi com as raparigas. Como ele ia alegre, direito, valente no meio delas!
Os vizinhos diziam-lhe:
— Ó Simão, deram contigo as moças, estás arranjado!
E ele fartava-se de rir como um perdido!
Outros, quando viram o Fiel no colo da moça, perguntaram com malícia:
— Ó menina, onde é o batizado?
***
Ao cair da tarde, o velhinho voltou para casa. Vinha vermelho, e caminhava depressa, aprumado, como um rapaz. Como até vinha a cantarolar pelo caminho:
Eu entro já na lapinha
Pois me não posso conter,
Porque a sua formosura
Me enche de gosto e prazer.
Um vizinho que o viu passar, disse consigo:
— Hoje o Simão leva o seu grãozito na asa!
À frente, o Fiel, ia seguindo pela estrada, voltando-se constantemente para trás, com medo de que o dono lhe fugisse, e se deixasse ficar com as raparigas!
E, então, o Fiel ia tão alegre, tão bom, tão esquecido do banho, que até já ladrava às pernas dos transeuntes! Era um tirano!

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