O isolamento
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Ergui-me com a
estrela d'alva, esta manhã.
Opresso pela
atmosfera pesada do aposento, saí logo ao terraço, a receber em cheio na face a
brisa que, desde o interior da casa, eu ouvia sacudir valentemente as grandes
árvores da floresta, ali perto.
Logo bebi, sôfrego,
esse ar embalsamado que enchia o ambiente.
Uma alegria sem par
empolgou-me o espírito, sem dúvida suscitada pela grandiosa beleza circundante.
Embrenhei-me na mata, seguindo uma azinhaga. Começava a amanhecer. Havia no ar
esse murmúrio das aves que despertam, — bulício tépido que só podem avaliar os
madrugadores na roça, — um como roçar voluptuoso do frouxel suavíssimo que
exorna as inúmeras legiões canoras do Amazonas.
Não sei o tempo que
andei quase às apalpadelas, ao longo do carreiro. Interessava-me tanto pelo
duplo acordar dos ninhos e das plantas, que só reparei em mim mesmo quando, já
dia claro, encontrei-me no cantro de uma bela clareira. Por cima de mim,
balbuciava a brisa dulcíssimos rumorejos, agitando as copas verdejantes. Em
derredor, porém, era, às vezes, absoluta a tranquilidade das coisas. Por
intermitências, nem mesmo um ciciar de passarinho, ou esse misterioso,
farfalhante correr de lagarto, que parece suscitar não sei que estranhos
sobressaltos nas florestas do meu país.
Formava a clareira
como um salão circular preparado pela natureza para receber-me. E, para que
nada faltasse, havia, ao fundo, estendido como um lutador exausto, um grande
tronco secular, que alguma tremenda tempestade derribara. Amplo, coberto do
limo que arremedava a fofa disposição dos estofos valiosos, esse gigante
vencido oferecia-me cômodo assento rústico. Entretanto, não utilizei-me dele:
sentindo-me bem, sentindo-me feliz, estava longe da fatiga. Por insensível
movimento de domínio orgulhoso, apenas pus-lhe o pé no dorso, vencedoramente.
Na mesma ocasião,
porém, penetrou-me o pavor: uma grande ave, um inhambu graciosíssimo
emergiu dentre as touças de verdura fresca, de sob o tronco abatido e ergueu o
voo para o interior do mato, num largo ruflar de asas com indubitáveis
entonações zombeteiras, intoleravelmente escarninhas.
II
Quedei-me ali muito
tempo, a seguir esta ordem de pensamentos.
No entanto, o céu
fora devassado pelo hilariante clarão com que este bendito sol da minha terra
doura todas as coisas, em sua munificência de soberano insuplantável. Por
toda a parte, só uma coisa via: luz, luz, luz, esse alastrar de claridade que
penetra tudo, que dá aos objetos uma aparência de alegria, de intenso júbilo
paradisíaco!
Pelo ar, cantavam
sempre a brisa e as aves, estas menos talvez do que aquela, comprometida a
fazer a larga harmonia da alígera volata.
A clareira formava
agora um salão redondo alcatifado de veludo esmeraldino, iluminado de uma orgia
de raios, vibrante da deliciosa bacanal dos passarinhos.
Minha alma
dilatava-se mais no gozo, até ali inexperimentado, de tamanha quietude, de tão
profunda sensação do que é grato na liberdade.
O isolamento! Quanta
paz na situação que esta frase traduz! Que suaves delícias que meigo
langor frui o espírito no sossego completo, divorciado dos cuidados da vida
comum, senhor enfim de sondar a consciência própria, com a qual anda, às vezes,
semanas inteiras sem ter um só instante para escutar-lhe as impressões, para
confabular com ela, extremado dos seres banais e falsos que formam a nossa roda
habitual!
Haverá porventura
alguém que não preze esses momentos de silêncio, nos quais a alma fala consigo
própria, dizendo coisas há muito sentidas e que, entretanto, parecem-lhe, —
quando examinadas, — estranhas novidades jamais ouvidas?
Lembro-me agora da
atenta concentração em que surpreendo, algumas vezes, no alto das ramarias,
esses folgazões alados que garganteiam a todo instante cristalinas fiorituras
sonoras. Dir-se-ia monologarem, resolvendo ponderoso assunto, tal a
profunda gravidade com que pendem a cabecinha, como recolhidos ao mais íntimo
de si mesmos.
Conheci um canário ao
qual este gênero de melancolia era habitual. Valente cantor, adorado em toda a
vizinhança pelo talento com que desferia os seus belíssimos gorjeios, valia a
pena vê-lo, quando espanejava-se ao sol, muito arrepiado e gracioso, revolvendo
com o bico, em rápida imersão, a água do pequenino tanque de cristal da gaiola
doirada onde vivia.
Tirava horas inteiras
para cantar, saltitante e feliz! Podia dizer-se que empenhava-se em fazer um
impossível, ou que pretendia matar-se num excesso melódico e genial, superior
às forças de seu mesquinho ser de passarito delicado!
Porém detinha-se de
repente, entre um trinado e um silvo: detinha-se, interrompendo os elegantes
pulinhos e, imóvel na travessa principal, ficava ali demorados momentos, a
curvar a loira cabeça para um e outro lado, com uma seriedade que poderia fazer
sorrir a quem, superficial e leviano, não ponderasse no mistério daquele
inesperado recolhimento em que uma alma sonhadora e romântica parecia despertar
nele com intercadências fatais.
Terão também os
pássaros o prazer do solilóquio, a volúpia da meditação? Terão também a
percepção dos gozos inebriantes que provem da certeza de estarmos sós, —
absolutamente sós, que ventura! — enfim libertados da tirania das convenções,
capazes de desafivelar a máscara que atam-nos à face os respeitos
mundanos?...
Bem quisera crer na
existência, neles, de um poder de reflexão, pois de outro modo não sei explicar
aquela postura tão estranha, aquele ar filósofo, essa expressão quase humana, —
tão humana, que surpreende!
É que, de certo,
sentem o valor do sossego, da paz completa, do tranquilizador influxo da
solidão, cujos inefáveis encantos fascinam, penetram o organismo de uma tepidez
emoliente, dão este bálsamo incomparável: — a alegria de viver!
E como assim não
acontecer, visto que as aves são as dominadoras do espaço, os habitantes da
mata, onde é de todo sensível o poder do isolamento, desta situação, que pode
ser considerada egoísta e destruidora, porém que o meu espírito acaba de
começar a compreender, a reverenciar, a amar com descompassados
entusiasmos, porque vai-lhe perscrutando os largos arcanos de poesia e alento
filosófico, o vigor que insufla a mente para aprofundar-se no estudo subjetivo,
no conhecimento do eu, a
desilusão a que arrasta-nos em relação às pequenas misérias odientas do mundo
postiço dos falsos e dos pretensos civilizados?...
Glória ao isolamento!
Bendita sejas, ó grande floresta amazônica, osculada pela ardente paixão do
sol, toda sonora dos folguedos da passarada chilreante, rica de estranhos
mistérios e de misteriosas riquezas inestimáveis!
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