
O ingênuo Dagoberto: Seu Dagoberto Piedade
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Diante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana
a maleta das fraldas. Nharinha segurava na mão do Polidoro que segurava na mão
do Gaudêncio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lázaro Salém veio correndo
do balcão e obrigou a família a entrar.
Seu Dagoberto queria um paletó de
alpaca. — A mulher queria um corte de cassa verde ou então cor-de-rosa. A filha
queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o pó-de-arroz. O menino de
dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapéu bem vermelho.
O de sete queria tudo.
É só escolher.
O menorzinho queria mamar.
— Leite não tem.
Não há nada como uma piada na hora
para pôr toda a gente à vontade. Principalmente de um negociante como Lázaro
Salém. Bateu nas bochechas do Gaudêncio. Deu uma bola de celuloide para o Quim.
Perguntou para Silvana onde arranjou aqueles dentes de ouro tão bem-feitos.
Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Não deixou os
outros falarem. Jurou por Deus.
Entre marido e mulher houve um
entendimento mudo. E a família saiu cheinha de embrulhos. Em direção ao Jardim
da Luz.
O pavão estava só à espera dos
visitantes para abrir a cauda. O veadinho quase ficou com a mão do Gaudêncio.
Os macacos exibiram seus melhores exercícios acrobáticos. Quando araponga
inventa de abrir o bico só tapando o ouvido mesmo.
Depois o fotógrafo espanhol se
aproximou de chapéu na mão. Seu Dagoberto concordou logo. Porém Silvana
relutou. Tinha vergonha. Diante de tanta gente. Só se fosse mais longe. O
espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma de
Garibaldi general italiano muito amigo do Brasil. Já falecido não há dúvida.
Acabou-se. Garibaldi sairia também no retrato. Nem se discute. A família deixou
os pacotes no banco e se perfilou diante da objetiva. Parecia uma escada. O
fotógrafo não gostou da posição. Colocou os pais nas pontas. Cinco passos
atrás. Estudou o eleito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atrás. Ótimo.
Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnífico. Ninguém se mexia. Atenção. Aí Juju
derrubou a chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi
para os braços da mãe. Soltou o segundo. O fotógrafo quis acalmá-lo com
gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a bengalinha. Soltou o quarto. O
grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo às ordens do
artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artístico. Silvana pôs a
mão na boca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciência de esperar
uns instantes. Pronto. Cravaram os olhos na objetiva. O fotógrafo pediu o
sorriso.
— O Juju também?
Polidoro (o inteligente da família)
voou longe com o tabefe nas ventas.
Depois da sexta tentativa o retrato
saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil-réis por meia dúzia.
A família se aboletou no primeiro
banco do caradura. Mas antes o Quim brigou com o Gaudêncio porque ele é que
queria ir sentado. Com o beliscão maternal se conformou e ficou em pé diante do
pai. O bonde partiu. Polidoro quis passar para a ponta para pagar as passagens.
Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da ideia. E foi
Seu Dagoberto mesmo quem pagou.
O bicho saiu de baixo do banco. Ficou
uns segundos parado na beirada entre as pernas do sujeito que ia lendo ao lado
de Seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho subiu no joelho
esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna.
Alcançou a barriga. Foi subindo. Tinha um modo de andar engraçado. Foi subindo.
Alcançou a manga do paletó. Parou. Levantou as asas. Não voou. Continuou a
escalada. Quim deu uma cotovelada no estômago do pai e mostrou o bicho com os
olhos. Seu Dagoberto afastou-se um pouquinho, bateu no braço de Silvana,
mostrou o bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho já estava no
ombro), achou graça, falou baixinho no ouvido do Gaudêncio. Gaudêncio deixou o
colo da Nharinha, ficou em pé, custou a encontrar o bicho, encontrou, puxou o
Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o bicho bem em cima da
gola do paletó do homem, não quis mais saber de ficar sentado. Então Nharinha
fez também um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou
umas risadinhas nervosas.
— Que é que você acha? Aviso?
— O homem é capaz de ficar zangado.
— É mesmo. Nem fale.
Na curva da gola o bicho parou outra
vez. Nesse instante o Gaudêncio deu um berro:
— É aeroplano!
Todos abaixaram a cabeça para espiar o
céu. O ronco passou. Então o Quim falou assustado:
— Desapareceu!
Olharam: tinha desaparecido.
— Entrou no homem, papai!
Seu Dagoberto assombrado examinou a
cara do homem. Será? Impossível. Começou a ficar inquieto. Fez o Quim virar de
todos os lados. Não. No Quim não estava.
— Olhe em mim.
Não. Nele também não estava.
— Veja no Juju, Silvana.
Não. No Juju também não estava. Ué.
Mas será possível?
O Quim avisou:
— Apareceu!
Olharam: apareceu no colarinho do
homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Eta. Eta. Passou para o pescoço. O homem
deu um tapa ligeiro. Todos sorriram.
Tinham chegado no Parque Antártica.
Polidoro não queria descer do balanço.
Não queria por bem. Desceu por mal. Em torno da roda-gigante os águias
estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam. Famílias de roupa
branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando dava uma
grelada para O moço de lenço sulfurino com um cravo na mão. Juju começou a implicar
com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchão ficou com os
duzentos réis e não pôs ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu
Dagoberto foi roubado no troco. O calor punha lenços no pescoço de portugueses
com o elástico da palheta preso na lapela florida. Quim perdeu-se no mundão que
vinha do campo de futebol. O moço de lenço sulfurino encostou-se em Nharinha.
Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da bolsa.
No bonde Silvana disfarçadamente
livrou os pés dos sapatos de pelica preta envernizada com tiras verdes
atravessadas.
Depois do jantar (mal servido) Seu
Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) palitando os dentes
caninos. Foi espairecer na Estação da Luz. Assistiu à chegada de dois trens de
Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a Rua José Paulino. Parou na esquina da
Avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de
folga. Dois homens bem trajados e simpáticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu.
— Muito gratos pela sua gentileza.
— Não tem de quê.
— Está fazendo um calorzinho danado,
não acha?
— É. Mas esta noite chove na certa.
Seu Dagoberto ficou sabendo que os
homens eram de Itapira. Tinham chegado naquele mesmo dia as onze horas. E
deviam voltar logo amanhã cedo e sem falta. Uma pena que ficassem tão pouco
tempo. Seu Dagoberto com muito gosto lhes mostraria as belezas da cidade.
Conversando desceram lentamente a Avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia
Pública Seu Dagoberto trocou três camarões de duzentos e mais um relógio com
uma corrente e três medalhinhas (duas de ouro) por oito contos de réis. E
voltou para o Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) que nem uma bala.
(Napoleão da Natividade filho tinha o
hábito feio de coçar a barriga quando se afundava na rede de pijama e chinelo
sem meia. A mulher — a segunda, que a primeira morrera de uma moléstia no
fígado — preferia a cadeira de balanço).
— Você me vê os óculos por favor?
O melhor deste jornal são os títulos.
— A gente sabe logo do que se trata. (Foi
Buscar Lã... Quem com Ferro Fere... Amor e Morte). Aquela miséria de
sempre. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de... (Mais Um!) Mas então os
trouxas não acabam mesmo.
Depois que ficou ciente da abertura do
inquérito a mulher concordou:
— Parece impossível!
— Nada é impossível.
(A dissertação sobre a bobice humana
foi feita com os óculos na testa.)
A indignação de Silvana não conheceu
limites.
— Seu bocó! Devia ter contado o
dinheiro na frente dos homens! Seu besta!
A filharada não dava um pio. Nem Seu
Dagoberto.
— Não merece a mulher que tem! Seu
fivela!
Seu Dagoberto custou mas foi perdendo
a paciência e tirando o paletó.
— Seu burro! Seu caipira!
Aí Seu Dagoberto não aguentou mais.
Avançou para a mulher mordendo Os bigodes. Nharinha aos gritos se pôs entre os
dois de braços abertos. Os meninos correram para o vão da janela.
— Venha, seu pindoba! Venha que eu não
tenho medo!
O pindoba se conteve para evitar
escândalos. Vestiu o paletó. Fincou o chapéu na testa. Roncou feio. Só vendo o
olhar. Bateu a porta com toda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o bengalão
que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta.
Tarde da noite voltou contente da
vida. Contando uma história muito complicada de mulheres e de um tal Claudionor
que sustentava a família. Queria beijar Silvana no cangote cheiroso. Chamando-a
de pedaço. E gritava:
— Também não quero saber mais dela!
Silvana deu um tranco nele. Ele foi e
caiu atravessado na cama. Caiu e ferrou no sono.
Quando chegou o dinheiro para a conta
do hotel e a viagem de volta Silvana pegou numa nota de cinco mil-réis,
entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto.
Depois chamou a Nharinha para ajudar a
aprontar as malas. À voz de aprontar as malas Nharinha rompeu numa choradeira
incrível. Já estava se acostumando com a vida da cidade. Frisara os cabelos.
Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando a língua nos lábios.
Comprara o último retrato de Buck Jones. E alimentava uma paixão exaltada pelo
turco da Rua Brigadeiro Tobías nº 24-D sobrado. Só porque o turco
usava costeletas. Um perigo em suma.
Mas a mãe pôs as mãos nas cadeiras e
fungou forte. Quando Silvana punha as mãos nas cadeiras e fungava forte a
família já ficava avisada: era inútil qualquer resistência. Inútil e perigosa.
Nharinha perdeu logo a vontade de
chorar. Em dois tempos as malas de papel-couro e o baú cor-de-rosa com
passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos.
A família desceu. Silvana pagou a
conta. A família já estava na porta da rua quando Seu Dagoberto largou o baú no
chão e deu de procurar qualquer coisa apalpando-se todo. A família escancarou
os olhos para ele interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito
acelerava as apalpadelas. De repente abriu a boca e disparou pela escada acima.
Voltou todo pimpão com um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na
mão. Silvana compreendeu. Ficou verde de raiva. Ia se dar qualquer desgraça.
Porém ficou quieta. Fungou só um instantinho. Depois intimou:
— Vamos!
Aí o proprietário do hotel perguntou
limpando as unhas para onde seguia a família. Aí Silvana não se conteve desviou
o nariz da mão do Juju e respondeu bem alto para toda a gente ouvir:
— Pro inferno, Seu Roque!
Aí Seu Roque fez que sim com a cabeça.
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