O homem e o cão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
A que horas e em que circunstâncias o poeta encontrou um amigo.
Quando
Paulo Maurício bateu à porta de sua casa soavam piedosamente em todos os
campanários as 12 pancadas de meia-noite. Uma chuvinha impertinente e fria
açoitava a atmosfera e vinha colar à fronte magra do poeta os negros cabelos
que a sombreavam.
A casa
era na rua da Misericórdia; uma casa de fúnebre aparência e velha como as três
virtudes teologais. Estava a rua silenciosa; a chuva enlameava as calçadas em
cujo passeio, ao longe, ressoavam monótonos os passos dum sonolento policial.
O poeta
mal comera durante o dia, e uma maldita febre — a febre da pobreza —, vós a
conheceis, miseráveis! Fazia latejar-lhe o pulso ardente, roçando-lhe nos
lábios pálidos a asa diabólica.
Dormia
o Cérbero daquele inferno, à hora em que o esfaimado inquilino levantava a
aldraba e propunha-se a safar-se da chuva cada vez mais perseguidora. Enquanto
pela quarta vez o poeta batia à porta do seu tugúrio, alguma coisa foi-lhe de
encontro às pernas e um hálito quente bafejou através das calças úmidas.
Voltou-se
Paulo Maurício e reconheceu na tal coisa um cão; um cão magro e trêmulo, com os
olhos cheios de dor e de meiguice como acontece a essa classe admirável. Paulo
Maurício curvou-se e roçou os dedos carinhosos no pelo hirsuto daquela
inesperada visita.
O cão
lambeu os dedos do poeta, grunhindo em sinal de festa.
Paulo
Maurício dizia entre si, contemplando os lacrimosos olhos do rafeiro:
— Pobre
diabo, pobríssimo-diabo! Condenam-te à fome, ao frio, às chuvas, até o dia em
que um espetaculoso e nédio fiscal te arremessar às goelas secas uma bola de
arsênico. O teu rival, esse gatinho traidor e voluptuoso, de gana escondida no
veludo, pronto sempre a dar o bote, possui tapetes flácidos, um ninho sobre o
piano da menina, e um berço agradável no cesto da costura. Tu, que és bom, ó
amigo! Tu, que és nobre, altivo, humilde e carinhoso — tu, à símbolo da
fidelidade — coisa em que a época não crê absolutamente —, andas por aí a
enlamear-te nas sarjetas imundas, a latir no meio da escuridão e do inverno, a
ladrar no céu torvo e insensível, sem que alguém se lembre de te oferecer uma
côdea de pão ou uma guarita para a noite. Estás com fome, eu o sei! Vejo nos
teus olhos desvairados e na rispidez febril de tua língua humilhada. Consola-te
comigo, ouviste? Ora vamos lá! Não gemas mais assim que me feres duplamente. O
mal de muitos consolo é, diz esse enorme e estúpido povo, o povo que faz
máximas durante o almoço, o jantar e a ceia. Olha para mim. Aqui estou eu
também com uma violenta falta de alimentos! E sou feito à imagem de Deus! E
penso, e cismo, e creio nas grandes aspirações do século e da humanidade. Tem
paciência. Basta, basta, não me faças cócegas na mão com a tua língua. Safa! A
porteira dorme hoje como qualquer empregado público. Afasta-te um pouco, meu
amigo, e deixa-me atordoar os sonhos dessa fera, que bebeu uma dose de ópio
hoje para atormentar-me!
Paulo
Maurício bateu de novo à porta. Responderam-lhe do fundo do corredor com uma
espécie de ronco ou de grunhido sinistro.
— Bom;
despertei o bruto — disse o poeta.
A chuva
engrossava. Por trás do nevoeiro o céu tempestuoso parecia uma barreira impenetrável
entre as consolações divinas e as decantadas angústias humanas.
Paulo
Maurício conchegou ao peito o fraque desmantelado e enterrou o queixo numa
gravata impossível. O cão encostado às pernas do poeta tiritava estendendo a
cauda enregelada e nua.
Rangeu
a porta sobre uns gonzos atroadores, e no vácuo mal aclarado pelas réstias dum
lampião, surgiu o focinho meio feminino e meio lupino duma parda
colossal.
— Ainda
um dia eu o deixo a patinhar aí pelas ruas, senhor Maurício — rosnou ela,
embrulhando-se na baeta, que a envolvia até os pés. — Isto são horas, meu
senhor, de vir acordar a gente! Vale muito a pena meu amo alugar quartos para
me enterrar mais depressa.
— Pois
já pensa em morrer, tia Angélica? — volveu o poeta sorrindo e afagando o ombro
da porteira. — Ora muito boas noites!
— Amém.
Então não entra, senhor?
— Entro
sim, tiazinha de minha alma, entro e em companhia.
— Quê?!
— Não
se agaste. Trago um pobre para passar a noite comigo. Temos que conversar
acerca do Asilo de mendicidade. Uma grande ideia do governo, tia Angélica!
O vento
começou a soprar com violência, e a chama da lanterna agitou-se como um
colérico em convulsões.
—
Deixemo-nos de brinquedos, senhor! Faça favor de entrar para dentro, que eu não
estou para apanhar uma defluxão de peito. Ora não se viram, e vosmecê ri-se!
— Com
licença. Permita-me que eu convide a minha visita a acompanhar-me ao quarto.
— Faça
favor... — E o monstro tentou impedir a entrada ao companheiro de Paulo
Maurício.
Era
tarde, porém. A um sinal do poeta, o cão faminto dera um arranco para o
interior da casa, em risco de lançar por terra a velha parda, a lanterna e
qualquer outra barreira que lhe interceptasse o ingresso.
— Um
cachorro, gente! — bramiu a velha, recuando assustada.
— Um
cachorro, sim, minha querida tia Angélica! Um cachorro honesto como o senhorio
desta casa, um cachorro ágil, atrevido e grato. Olhe, se vosmecê um dia por sua
desgraça cair no mar...
—
Credo!
— Ouça:
se tal acontecer, este amigo salvá-la-á, expondo-se à morte, unicamente, tia
Angélica, porque a sua caridade recebeu numa noite de chuva à porta de casa, e
deu-lhe um bocado de pão para matar a fome. Veja se há por este mundo de Cristo
muito fidalgo agradecido assim!
A velha
resmungou entre dentes:
— Veio
em má hora. Não há um pãozinho de rala para remédio!
O poeta
acudiu com um melancólico sorriso:
—
Experimente sempre; procure. Estou hoje com desejos de ceder-lhe, tia Angélica,
a cabeça de Jesus, que tenho no meu quarto... Aquela, sabe?
A
medonha careta da velha metamorfoseou-se num sorriso, que à força de tentar ser
delicado, fez lúgubre e fantástico.
— Está
bom, está bom. Não quero que as alminhas do céu digam que eu fui má um dia.
Vamos ver se há na cozinha algum osso ou pelanca para esse cachorro feio.
— Feio?
Repare bem, tia.
E o
poeta apoderando-se da lanterna aproximou-a ao rosto do cão.
O pobre
animal estrebuchava de frio, cosido com a parede esboroada. De suas pupilas
cobertas por tênue neblina escapavam-se reflexos metálicos como os que produz o
aço mal polido e o seio das ondas no mar alto ferido pelas estrelas.
— Olhe
como treme o infeliz, tia Angélica. Faz pena, não é verdade? Coitado, coitado!
Que patas frias! Andaste muito pelo meio da chuva, hein, meu camarada?
O cão,
como se compreendesse a linguagem piedosa do poeta, lambeu-lhe de novo as mãos,
uivando docemente.
—
Vosmecê ainda lhe há de acontecer alguma com os bichos — observou a velha. — Da
outra vez foi com o gaturamo, que entrou pela janela do seu quarto; agora é um
cachorro, que apanhou na rua. Cachorro de rua, então, que dana, enquanto o
tinhoso esfrega o olho!
— Verá
que se engana, tia Angélica. O que me pode acontecer por acaso? Chorar? Ora
viva! Chora-se por tantos homens e por tantas mulheres, quanto mais por um cão!
— Oh!
senhor! Vosmecê está doido! Cão e gente é o mesmo?
— O
mesmo, não, tia Angélica: estou pouco disposto a ofender a superior raça
canina, os animais mais perfeitos da criação. O cão é incapaz duma baixeza ou
duma traição. Bate-se-lhe e ele volta a receber de novo a pancada, humilde e
satisfeito. A sua ambição única é a de servir de sombra ao homem, que lhe
concede a suprema ventura de uma vez ou outra, cuspir-lhe no pelo ou pisar-lhe
a cauda com um pé amaldiçoado.
— Tá,
tá, tá! Vamos ao que serve. É tarde e eu quero me deitar. Leve o seu cachorro
para cima, mas Deus permita que ele não ladre, senão o senhor Gregório...
— O
senhorio?
— Sim,
senhor, é muito capaz de passar-me alguma sarabanda. Os vizinhos não
gostam nada de barulhos, nem eu, com a ajuda de Deus!
Paulo
Maurício chamou o cão; o animal ali ficou unido à parede sem mover as pernas. A
fome e o frio petrificavam-no.
—
Acenda o espírito de vinho, tia Angélica, e aquente-me um pouco de água. Hei de
pôr-te rijo como um fuzileiro, meu amigo! — acrescentou o poeta carregando o
cão nos braços compassivos.
— Santa
Mãe de Deus! — acudiu a velha, esbugalhando os olhos. — Vosmecê quer fazer
deste bicho um menino de peito?
— Não
pode andar, e então? Levo-o ao colo.
E o
poeta subiu ao seu quarto conchegando ao peito o cão agonizante.
CAPÍTULO 2: A FACA
O
espaço ocupado na casa da rua da Misericórdia por Paulo Maurício era uma
água-furtada, de telha-vã, e paredes mal caiadas, em cujas fendas o vento
estorcia-se às vezes como gritos dum bando de almas condenadas.
A vida
desse rapaz era um prodígio de bondade e de ternura. Nunca do fundo de sua
miséria arriscou ele um cartel ao mundo egoísta e brutal, que o encerrava em
seus círculos infernais, como os do Inferno do Dante, onde habitam os que
perderam de todo a esperança e a fé.
Paulo
Maurício estava ainda na época luxuriante da existência em que a dor desfaz-se
em gotas de lágrimas, e o espírito retempera-se, amianto divino, nas labaredas
do sofrimento e nas piras da amargura.
O seu
coração aspirava sempre, e as angústias de todos os dias e de todas as horas
eram as brancas asas com o auxílio das quais aquele ente peregrino e nobre
devassava os largos mistérios do infinito.
Órfão e
pobre, apresentara-se à sociedade, à madrasta implacável, armado apenas com a
túnica de sua mocidade e as crenças bebidas no regaço materno. Para que contar
mais este capítulo da inesgotável história dos miseráveis?... Paulo Maurício
tentou duas, dez, cem vezes ganhar o pão amargo como qualquer imbecil de
tamancos mas, faltando-lhe a principal qualidade para tão duro mister — a
insensibilidade —, teve de tocar em outro ferrolho e pedir agasalho em novo
tugúrio. A sua inteligência fenomenal atraiu as atenções dum honrado homem, que
o iniciou nos segredos das tricas comerciais, e proporcionou-lhe as proteções
de algumas casas de negócio, onde ele escrevia, conseguindo amontoar
laboriosamente o parco pecúlio de sua subsistência diária.
O que
porém o arrastava, o seduzia e o desorientava era esse místico arroubo das
almas privilegiadas, essa ascensão do espírito às paragens desconhecidas — a
poesia enfim, Oceano de diamantes e de lágrimas, em cujas ondas a mocidade se
afoga!
Era
poeta; poeta pela inspiração e pelo sentimento. Havia na sua vida uns traços da
existência fugitiva de Casimiro de Abreu, e descobria-se em sua fronte a
palidez doentia, com que Delaroche desenhou o suave contorno da cabeça de
Cristo.
O
honrado protetor morreu na véspera do dia em que Paulo Maurício foi dispensado
dos seus serviços de escrituração nas casas que lhe deram almoço cotidiano.
Quando
voltou para o seu quarto, vinha sombrio.
Beijou
repetidas vezes o retrato de sua mãe, e depois de estender a vista ansiosa pelo
horizonte impassível e tranquilo — desatou a chorar convulsivamente.
—
Ótimas tardes lhe dê Deus, senhor Maurício! — exclamou à porta uma voz trôpega
e surda.
Era
mestre Gregório, o senhorio da casa, caricatura de homem sério, olho de
usurário e sorriso de raposa velha.
O poeta
enxugou furtivamente as pálpebras e dirigiu-se ao senhorio.
— Boa tarde,
senhor Gregório; boa tarde. Vem cobrar o mês? Estamos a 24, parece-me.
A
raposa fingiu-se surpresa.
— Já
24, hein? Ora vejam! Nem me eu alembrava.
Paulo
Maurício abriu uma gaveta.
— Para
que tanta pressa, senhor Maurício? Deixe-se disso!
— Tanto
faz hoje como amanhã. Aqui tem, senhor Gregório; cinco e dois sete, e três dez,
e seis dezesseis...
—...Mil,
duzentos e quarenta; ainda faltam esses quebradinhos. Bom; bom; pegue lá o
recibo; trazia-o, por acaso.
A
caricatura de homem sério pôs a rir com todos os seus dentes de onça
sanguinária. Ia a sair quando o poeta pronunciou-lhe o nome.
—
Chamou-me?
— Estou
a propor-lhe um negócio, senhor Gregório.
O
homúnculo enfiou, e abotoado-se todo:
— Se é
para baixar o aluguel, não estou em casa.
Paulo Maurício
reprimiu um gesto de asco e:
— Pelo
contrário, é para pedir-lhe que não me o aumente. Fui despedido de Soares
Campos e da casa do Fabrício.
Mestre
Gregório estremeceu.
— Oh!
diabo! — disse ele. — Então como vive o senhor de hoje por diante?
— Quer
dizer: como pagarei os seus aluguéis, não é verdade?
—
Quase, quase. Mas afinal de contas o dinheiro é que é a vida, e quem não o tem
peça a Deus que o mate e o diabo que o carregue. Grande coisa é andar pelas
ruas de cotovelos rotos e barriga vazia! Safa! antes um estouro!
—
Ouça-me, senhor Gregório. Sabe que sou amigo do trabalho?
— E
depois?
—
Façamos um contrato. Deste momento em diante ocupar-me-ei com os seus livros de
escrituração, e o meu ordenado...
—
Acabe.
—
Resumir-se-á nos aluguéis que eu deva pagar-lhe mensalmente.
—
Dezesseis mil, duzentos e quarenta réis?
—
Justamente. Vossa senhoria come em casa...
— De
vez em quando.
— Come.
Se achar humano convidar-me para a sua mesa, basta-me.
— E o
senhor lidará com todos os meus livros, assentos, pagamentos etc., etc.?
— Tudo.
— Irá a
cobranças?
De
pálido que era tornou-se dessa vez purpúreo o rosto de Paulo Maurício, até a
raiz dos cabelos.
— Não —
respondeu ele com a voz vibrante e rápida.
— Está
feito. Há quem seja mais exigente do que o senhor. Vou pensar no caso.
O poeta
aproximou-se ao usurário, e cravando-lhe as pupilas irradiantes:
— Em 24
horas dê-me a resposta decisiva.
— Por
que em 24 horas e não em 30?
— Nada
mais simples. O senhor vai sair daqui por uma porta e eu por outra. Baterei em
mata duma aldraba a pedir trabalho. Mendigarei um emprego, um mata-fome, uma
espelunca em que derrame suor e lágrimas... em troca da importância duma camisa
lavada e duns sapatos que me livrem da lama. Eu possuo uma alma ousada, senhor Gregório!
O cansaço não me aterra, e a luta é para mim o meio único de um dia deixar no
mundo um nome digno de mim e de minha mãe. Bem vê que estou disposto...
— Mas o
que tem isso com as 24...
— Vai
ver. Se voltar sem ter encontrado um coração que me ampare e me compreenda,
esperarei pela sua resposta até o tempo do prazo fixo. Demos que vossa senhoria
me diga redondamente que não.
—
Demos!
— Nesse
caso — e nos olhos do poeta fulgiu a asa dum pensamento sinistro —, eu pedirei
perdão à sombra imaculada de minha mãe e...
O
usurário acompanhou automaticamente os movimentos precipites do moço.
Paulo
Maurício desalojou de entre os papéis, que povoavam a gaveta, uma excelente
faca mineira, de bainha de prata, e desembainhada, fê-la brilhar ante os olhos
espavoridos do senhorio...
— Que
diabo faz o senhor? — acudiu mestre Gregório procurando o chapéu e a bengala.
— Não
tenha receio. Está vendo esta lâmina? É magnífica; aço de primeira qualidade;
fura o ferro como se atravessasse a casca dum ovo. Pois, ilustríssimo senhor,
admitamos que ninguém me salve desta miséria, e que a resposta do senhor
Gregório vá de parelhas com a de tão cavalheirescas almas...
Mestre
Gregário estava fulo de terror; a faca fazia evoluções entre os dedos nervosos
do poeta, como um corisco.
—
Meto-me neste quarto, queimo os meus papéis, escrevo um bilhete de
agradecimento à sociedade fluminense, e mergulho este ferro até o cabo dentro
do coração. Aí tem!
Paulo
Maurício embainhou a arma, sorrindo com o ar semibárbaro e semidivino dos gladiadores
romanos. O senhorio cortejando até o chão, saiu do quarto a resmungar
grotescamente. No patamar esbarrou com a velha Angélica:
—
Diga-me cá, mulher, esse rapaz, esse senhor Maurício, é dado à bebida?
— Até
hoje, meu senhor, não viram nada estes olhos que a terra há de comer.
—
Salta! — continuou mestre Gregório, apalpando um por um os degraus da escada —
se ele em vez de meter em si a faca, desse para...
E um
suor de morte percorreu-lhe a espinha dorsal.
CAPÍTULO 3: DESPEDIDAS ETERNAS
Quando
Paulo Maurício viu-se órfão, estava num colégio, cuja mesa e cujas aulas
frequentava por caridade dos diretores. A mãe do poeta vivia nesse tempo em
companhia duma família generosa, saboreando com amargas delícias o pão da
esmola e a enxerga da mendicidade disfarçada. Desditosa mulher! Acalentava o
filho em braços alheios, sorrindo entre lágrimas, como um doloroso astro,
através das chuvas da tempestade.
Quem te
compreenderá, oh mãe, oh indescritível poema do amor e da castidade? Hás de ir,
solene vítima, hás de ir atravessando as almas e os séculos, de braços abertos
a todas as desventuras e olhos cheios de fé, erguidos ao céu, que muitas vezes
não te escuta nem te favorece sequer!
Concedeu-te
o Deus de Belém, a graciosa ventura de resguardares no seio o fruto dum
sentimento partilhado, e ainda hoje, querida, ainda hoje esperas aos pés da
cruz, as derradeiras gotas de lágrimas, as derradeiras lágrimas de suor,
daquele que geraste e concebeste em longas horas de aflitiva bem-aventurança!
Trazes
na cabeça a doce estrela do cristianismo, de cujas facetas caem os raios que
aclaram a família e iluminam o universo. Cornélia, mãe de heróis; Maria, mãe de
mártires; envolta neste ou naquele nome, passará a tua figura luminosa sobre a
face dos tempos, como um eterno beijo que jamais se apagará, pois que teve
origem na alma da criação e no resplendor da religião sublime.
Os
pecados da mulher são resgatados pela mãe; os prantos desta lavam as nódoas
daquela. Poder misericordioso de Deus! Como tu és admirável assim, e como nós,
os filhos agradecidos, te louvamos e bendizemos!
Ai
daqueles que não conseguem, depois dos primeiros tormentos da existência,
descansar a cabeça abatida no regaço tranquilo duma mãe!
Paulo
Maurício foi desses infelizes. Saindo do colégio para os braços do mundo; do
risonho preceptor para o severo, o astucioso, o cruel padrasto, que nada
desculpa, nem poupa. Nunca soube rir essa criança; nasceu coberta de névoas e
cresceu no meio da pobreza, que é o crepúsculo da vida.
O homem
generoso de quem já aqui se falou, amparou-o até certo tempo. De forma que, o
trecho que eu conto das memórias do poeta, refere-se justamente ao capítulo do
desamparo e do infortúnio.
O
talento perseguia-o, feria-o, acompanhava-o atrozmente. As quedas dos espíritos
superiores são mais terríveis que as outras; a consciência e o coração fazem um
peso às vezes quase insuportável.
Paulo
Maurício assistiu aos últimos momentos da vida de sua mãe. Ele tinha 16 anos
nesse tempo. Um portador azafamado entregou ao diretor do colégio onde assistia
o poeta, uma carta em que se reclamava a presença do menino.
O
diretor leu a carta e mandou chamar o discípulo.
— Vá se
aprontar depressa.
— Minha
mãe está muito mal; não está, José? — perguntou o menino ao portador.
— Pois
já o sabia? — indagou ansiosamente o mestre.
Um
fúnebre sorriso desenhou-se nos olhos e nos lábios do órfão.
—
Sonhei, senhor doutor — disse ele com voz profunda.
O
colégio era situado na rua das Marrecas; a casa em que agonizava a mãe do
menino, era na rua dos Beneditinos. O portador mal podia acompanhar os passos
nervosos e rápidos de Paulo Maurício. Ele voava como se fosse conduzido pelas
asas do pensamento. Entrou em casa enregelado até a ponta dos cabelos, e com o
suor a deslizar-lhe pelas fontes e faces, baga a baga.
Momentos
depois, estava ajoelhado à cabeceira da cama mortuária. A moribunda afastou da
vista as longas névoas que já a turbavam, e pondo as mãos sobre a cabeça do
filho, sorriu erguendo os olhos ao crucificado, cujo lenho resplandecia entre
duas velas, aos pés da cama.
— Meu
filho!
Uma
velha mulher chorava no fundo da alcova, e o padre ia a retirar-se pensativo,
depois de haver deixado num seio infeliz e puro pela última vez o alvo corpo de
Jesus. Paulo Maurício apertou aos lábios convulsos as dobras do lençol já
santificado pela morte.
A
moribunda tentando esforços quase sobre-humanos, disse ainda ao filho:
— Deus
te proteja. Sê homem honrado e faz tudo para não seres pesado aos outros.
Ela
tinha a boca seca e abrasada.
— Água!
— exclamou entreabrindo os lábios freneticamente.
A velha
fez um movimento, mas o menino antecipou-se-lhe. De um salto correu a buscar o
copo e duas lágrimas caíram-lhe confundindo-se com a água.
A
agonizante bebeu o conteúdo do copo em um trago sôfrego.
Uma
espécie de bem-aventurança iluminou-lhe os traços desmaiados, tal como os raios
do sol no poente ou os últimos vislumbres da estrela-d’alva.
—
Ouve-me, Paulo.
O
menino escondeu entre as mãos dela a face inundada de pranto.
— Não
chores, meu filho. A morte, em vez de separar, reúne. Lembra-te sempre de tua
mãe, que vai pedir a Deus por ti, e que será feliz no céu com a tua felicidade
neste mundo. Eu tenho certeza de ti; morro descansada. Dá-me um beijo, aqui, na
minha boca.
O
menino uniu os lábios aos lábios maternos e aspirou faminto a alma dolorosa,
que se despedia da vida. A velha a custo arrancou-o dessa posição horrível,
justamente no instante em que a moribunda estrebuchava no paroxismo final.
Durante
três dias, Paulo Maurício lutou com a morte. Os médicos desenganaram-no, mas a
juventude salvou-o.
Voltou
para o colégio, donde saiu protegido pelo homem, que pouco depois havia de
forçosamente abandoná-lo aos azares do mundo. As raras joias — joias! — que a
mãe lhe deixou e que lhe foram fielmente entregues, ele as cedeu à velha
enfermeira em sinal de religiosa gratidão. Um véu fatal desde então, coseu-lhe
em redor da alma, e quando ele declarou ao mestre Gregório que se mataria,
estava decidido a dar cabo de si.
O
espírito materno, porém, velava como uma divina sacerdotisa sobre os destinos
do poeta.
CAPÍTULO 4: MESTRE GREGÓRIO
A
oração de Paulo Maurício viera ao mundo à semelhança dessas flores melancólicas
e obscuras, que nascem à superfície das sepulturas cheias. Borrifavam-no, em
vez de orvalho, lágrimas, e a sua alegria era o luto que o amortalhava. O amor,
a festa, o prazer, todas essas teclas vibrantes que produzem as sinfonias da
mocidade eram-lhe desconhecidas e até adversas ao seu caráter altivo. A memória
de sua mãe enchia-o, completamente, e quando o poeta às vezes estendia a vista
pelo horizonte iluminado, cuidava distinguir através dos raios das esferas a
figura ideal daquela que única o amou em vida.
— És
tu, sim, meu santíssimo amor! Sempre pudibunda e bela!
As
musas da saudade e das aspirações sublimes eram as suas companheiras nas horas
do recolhimento profundo da alma. Longe dos trabalhos cruéis e brutais que,
durante o dia, lhe facilitavam os parcos meios do sustento habitual, o poeta
deixava-a voar na correnteza dos seus pensamentos, como um prisioneiro, a quem
se concede uma hora de ar livre, perante o mar e o céu.
Mestre
Gregório respeitava o seu hóspede, e os inquilinos da casa — uns oito
personagens pelo menos — sentiam irresistível simpatia por esse moço quase
incógnito, que passava a vida entre o
trabalho e a meditação.
A tia
Angélica, por sua parte, adorava o poeta pelo simples fato de ele possuir uma
bela imagem de Jesus, gravura de Calamatta, que lhe tocara por prêmio no
colégio. A velha, toda a vez que varria o quarto de Paulo Maurício, estacava
defronte da gravura, exclamando entre cinco sinais-da-cruz:
— Bento
nome do Senhor! Sempre aqueles judeus foram uns marditos do couro do diabo!
O poeta
pilhou-a num desses rasgos, certo dia em que voltara mais cedo para casa.
— Está
admirando a minha cabeça de Jesus, tia Angélica?
— Não
se me dava de trocar os meus brincos de plaqué
por este registro, senhor Maurício!
— Eu é
que o não troco por coisa alguma, tia. Quero-lhe um bem extraordinário.
— E gave-se disso, meu senhor, porque é uma
perfeição.
Contemplando a gravura, a
volumosa porteira murmurava ainda em despedida:
—
Bendito o ventre que te concebeu!
— Amém.
Até logo, tia Angélica.
— Já
quer que me vá hein? Oh! gente! eu nunca vi um moço como vosmecê, sempre só!
— Antes
assim que mal acompanhado, tia. Até logo.
— Cá
vou, cá vou. Até; fique-se com Deus.
Paulo
Maurício possuía uma ternura imensa para tudo quanto é fraco, inerme, e
geralmente espezinhado pelos pés maciços do gênero humano. Uma flor, um pássaro
uma formiga, valiam mais a seus olhos do que a árvore genealógica da raça dos
Bourbons.
As
andorinhas, que recortavam o seio azulado da tarde, mereciam-lhe olhares de
interesse e simpatia fraterna. Ele acompanhava-as no giro caprichoso, até
perdê-las de vista, e dizia consigo:
— Se eu
tivesse asas também, iria convosco, oh loucas! Até engolfar-me nas vagas
serenas do paraíso!
Entrou-lhe,
certa tarde, ia caindo o crepúsculo — um passarinho, um gaturamo pela janela.
A ave
estendia já debilmente as asas, e desprendendo festivos gritos, veio pousar
pouco distante do poeta no encosto duma cadeira.
Paulo
Maurício exultou com a visita, como esses meninos folgazões, que veem descansar
no poleiro da armadilha a desejada caça. Adiantou-se até o pássaro, com as mãos
abertas, receoso de o perder. O gaturamo agitou novamente as asas sem mudar de
posição, e desenrolou um rosário de melodiosos gorjeios.
O poeta
estava maravilhado. Prende delicadamente entre as mãos o fugitivo, e 20 minutos
depois, acondicionava-o dentro duma gaiola, gentil empréstimo da porteira de
mestre Gregório.
— Olhe,
tia Angélica; que graça! Ele vai cantar, espere!
— Que
é, senhor? Nem que eu não tivesse mais que lazer!
— Um
minuto só!
A alma
daquela criança inspirada ressoava como o piano de Thalberg.
O
prazer fulgia em seus olhos, e os seus ouvidos esperavam a primeira harmonia do
pássaro, à maneira do leitor quando espera o jornal do dia ou um telegrama
comercial.
O
gaturamo desfez-se em melodias em honra do poeta. A velha estendeu o beiço, e
ponderou conscienciosamente:
— Vale
quatro mil-réis, de olhos fechados. Depois de tal sentença, a esférica mulher
retirou-se orgulhosamente.
Esse
passarinho foi por algum tempo a predileta companhia do poeta. Despertava-o
cantando e cantando o adormecia.
Ao sair
para o trabalho, todas as manhãs, Paulo Maurício dizia à porteira:
— Bom
dia, tia Angélica; receba saudades do meu gaturamo.
Uma
certa manhã o poeta saiu sem cumprimentar a velha.
— E
então, ó senhor Maurício? E o gaturamo?
O moço
voltou-se com semblante pensativo e articulou entre dentes:
—
Morreu; morreu há pouco, tia Angélica. Reze-lhe por alma.
Tentou
sorrir, mas confrangiu-se-lhe o rosto angustiosamente.
A velha
subiu ao quarto e arrecadando gaiola e pássaro morto:
— Ora
aí tem o que são amizades por estas coisas à-toa. Mais vale comer um prato de
arroz.
Foi a
oração fúnebre que a respeitável matrona cedeu ao harmonioso companheiro de
Paulo Maurício.
Era
pois um coração terno e bom o desse órfão da fortuna e dos homens. A desgraça
havia-o por assim dizer purificado, e a sua alma, alheia aos gozos turbulentos
da existência, pendia para o que é humilde e fraco, para as venturas calmas e
ignoradas, como os cálices das flores dum cemitério que se debruçam sobre a
terra silenciosa.
Mestre
Gregório, por terror ou por compaixão — quem pode sondar o charco desses
espíritos baixos e mercantis? – dirigiu-se ao poeta no dia seguinte ao do
episódio da faca, e disse-lhe entre duas respeitabilíssimas caretas:
— Venho
trazer-lhe a resposta. Antes, porém, faça o favor de me dizer o que arranjou.
— Nada
— respondeu Paulo Maurício. — Estou sem emprego e sem pão.
Depois
de olhar desconfiado para a gaveta em que dormia a arma, o usurário
acrescentou:
— Pois
eu sou mais humano do que os outros. O senhor de hoje por diante tratará dos
meus papéis e comerá à minha mesa. Pode acontecer alguma vez que eu não jante
em casa, mas não faz mal; a Angélica já está prevenida para não o deixar morrer
à fome.
Um
feroz sorriso adelgaçou os lábios de mestre Gregório.
— Tanta
generosidade, Sr. Gregório! — acudiu o poeta sorrindo entre o desdém e o pudor
ferido.
— Quero
— agora pedir-lhe uma coisa.
— Diga,
meu caro patrão.
— Eh!
eh! eh! Patrão! Já me chama patrão! Queria pedir-lhe que me vendesse aquela...
— A
faca? Impossível, Sr. Gregório. Foi uma lembrança de amigo. Herdei-a de meu
pai. Tenha paciência.
— Não
falemos mais nisso. Então, está convencionado?
—
Perfeitamente. Mande-me hoje os seus livros.
—
Pronto. Até logo.
— Até
logo, Sr. Gregório.
O
usurário, antes de sair, contemplou ainda a gaveta como os selvagens o gatilho
misterioso duma espingarda.
A tia
Angélica entrou nesse momento na alcova do poeta.
—
Bravo! — exclamou a megera saudando grotescamente Paulo Maurício; — que bom
vento foi esse! O amo está com vosmecê pelo beicinho. Verá que homem aquele de
truz! Quando gosta deveras de alguém não há quem lhe chegue!
Uma
nuvem de sarcasmo amortalhou o semblante heroico do órfão.
CAPÍTULO 5: O HOMEM E O CÃO
Na
gaveta em que se escondia a faca tão contrária à índole oscilante de mestre Gregório, guardava o poeta o seu
tesouro. Um tesouro! A riqueza que não se vende nem se compra, a opulência
acumulada com lágrimas e com sorrisos, brilhante sempre e sempre abençoada pelo
destino!
No
silêncio da noite, à luz mortiça da vela, Paulo Maurício abria um grande livro
manuscrito, em cuja primeira página lia-se em largos caracteres a palavra Ideal. Era o título do poema.
Todas
as noites, em hora de inspiração, o poeta depositava no receptáculo de seus
pensamentos o óbolo do coração e da mocidade. O Ideal simbolizava a luta do homem com a natureza e com a sociedade.
Vibrava naqueles cantos resplandecentes e enérgicos ora a lira arrogante do Ashaverus, ora o mavioso arrabil da Messiada.
Um
pesar no entanto oprimia a alma ingênua do poeta. Onde achar um juízo imparcial
sobre a sua obra? A quem recorrer? A quem pedir conselho e lição?
Repetidas
vezes os dedos nervosos rasgavam um canto começado, e Paulo Maurício embebendo
os dedos entre os cabelos perdia-se num silencioso e morno abatimento.
O nome
e a imagem de sua mãe ocupavam quase todo o poema. Eram as bússolas e as
âncoras da inspiração febril; presa a essas santas amarras, a alma do poeta
ganhava forças, ganhava coragem,
ganhava luz, no meio das sombras e desalentos que a perseguiam.
Paulo Maurício pouco saía de casa
depois do seu contrato com o senhorio. Era o seu passeio favorito uma livraria
menos frequentada, onde, graças à proverbial bondade do livreiro, o poeta
conseguia examinar alguns volumes, e mais de uma vez, trazê-los consigo por
empréstimo.
O seu
ânimo recluso e desconfiado separava-o do mundo e dos moços como ele. Receava
molestar os mais com a sua desgraça, e sabe Deus a angústia que o oprimia, ao
partilhar as magras refeições de mestre Gregório.
Começa
esta história num dia em que Paulo Maurício, voltando à casa tarde, perdera o
jantar. Subiu ao seu quarto, leu cinco páginas da Imitação de Jesus, e quando anoiteceu, saiu a espairecer. A velha
Angélica — rendamos-lhe o merecido preito! — viera oferecer ao poeta alguma
coisa "para aquentar o estômago", mas o moço recusara com um doce
sorriso.
O
horizonte estava um pouco tempestuoso, apesar de não chover ainda. Paulo
Maurício foi até o Passeio, onde ficou três horas, a cismar por entre as
árvores, e a contemplar pensativo a marcha dos cisnes e das irerês no lago
adormecido.
— Ó
minha mãe — murmurava ele com a sua alma —, acaso me vês tu lá de cima, da
misteriosa guarida, ninho e glória do teu espírito imortal? Responde-me,
inefável essência! Consola-me e dá-me forças para caminhar nesta negra rua da
amargura!
Soprava
a brisa do mar. Paulo Maurício cuidou sentir o carinho de uma asa invisível
entre os seus cabelos esparsos.
Havia
baile no Cassino, essa noite. Eram dez horas os cupês e os trens faustosos
estacavam ruidosamente à porta do opulento edifício.
As
luzes do salão resplandeciam como num festim oriental. Os lacaios da casa
imperial, os curiosos e os ramalheteiros enchiam a calçada junto ao portão.
Paulo Maurício instintivamente moveu os panos até lá e esgueirou-se entre a
multidão. Aproximava-se um carro; aberta a portinhola, desceu, ágil e elegante,
uma moça envolta em cambraias diáfanas. Luziam-lhe na cabeça os diamantes, e o
seu ombro nu, desfazendo-se da capa, que o cobria, cintilou como o dorso de
Vênus.
O poeta
fechou os olhos resistindo à fascinação. A elegante desapareceu abandonando ao
indiscreto vento da noite uma espiral de violetas e de cravos.
Paulo
Maurício vagou até meia-noite por quase todas as ruas da cidade, meio
alucinado, com aquela figura de ninfa ou de arcanjo a segui-lo como a sombra do
amor. O seu estado de fraqueza e a comoção que o abalava faziam-no vacilar como
um homem quase ébrio.
A porta
de casa encontrou o cão. A sua alma ansiosa precisava transbordar, e quando ele
carregou ao seio até o quarto o corpo do animal moribundo, ia reconhecido ao
destino por lhe haver enviado uma criatura em quem empregasse o mundo de amor e
de simpatia que surgia esplêndido do seu coração extasiado.
A velha
Angélica cumpriu a promessa baseada na oferta da cabeça de Jesus. Momentos
depois o cão, acalentado e saciado, punha os olhos úmidos no seu novo amo.
Paulo Maurício fechou a porta da alcova e chegou-se ao cão.
— Posso
contar com a tua amizade, que dizes, amigo?
O
rafeiro estendeu a cabeça agradecida grunhindo em surdina.
O poeta
sentia-se cambalear. Tentou varrer as nuvens que lhe obscureciam a vista, mas,
faltando-lhe as pernas, caiu sobre a cadeira ao pé da mesa.
Recuperou
os sentidos ao romper do dia. A primeira coisa que viu foi o cão, na mesma
atitude da véspera, de olhos presos nele com a persistência infatigável de um
irmão ou de um amigo.
Banharam-se
de lágrimas as faces do poeta.
— E é
um cão! — murmurou pensativo.
CAPÍTULO 6: A LEITURA
Gregório
ia às mil maravilhas com o seu novo
guarda-livros. Paulo Maurício, além de ser uma inteligência rara, era a
dignidade personificada. Na fronte daquele moço distinguia-se esse toque solene
que a experiência deixa gravado na cabeça encanecida do ancião.
E que
melhor escola do que a da necessidade e a da miséria? É aí que se estuda a vida
e se descobre o fio de Ariadne para os meandros inacessíveis da sociedade
mundana. Paulo Maurício educava o seu espírito entre as lágrimas e os
sofrimentos. Desse choque fatal surgia-lhe a alma cheia de irradiações, como
Minerva do cérebro de Júpiter e a namorada de Marte do meio das espumas.
No dia
seguinte ao do encontro com o cão esfaimado, desceu o poeta até a sala de
jantar, a hora do almoço, amparando-se ao corrimão e encostando-se às paredes.
As sombrias visões da febre dançavam uma sarabanda infernal ante os seus olhos
turvos.
O
usurário esperava-o à mesa em companhia de um sujeito que Paulo Maurício não
conhecia.
— Ora
viva o Sr. Maurício! — exclamou mestre Gregório. — Não nos quis ontem aparecer?
O poeta
saudou com um leve sinal de cabeça o desconhecido, e apertando a mão do
senhorio:
—
Estive fora ontem — disse ele. — Passei mal o dia!
— E é
verdade. O senhor está com as mãos como uma brasa!
Paulo
Maurício tomou lugar à mesa, sorrindo dolorosamente.
Mestre
Gregório incumbiu-se das apresentações.
— O Sr.
Paulo Maurício! O Sr. Mendes, rico fazendeiro de Baependi!
— É
filho do Rio de Janeiro? — perguntou Mendes ao poeta.
— Sim,
senhor. Aqui nasci e creio que aqui morrerei.
— Um
moço da sua idade não pensa em morte! Mas, agora reparo... O que tem? Sente
alguma coisa?
O poeta
mal chegara o alimento à boca; um suor frio derramou-se-lhe pela testa e
faltou-lhe a luz de repente.
— Não é
nada — acudiu ele, dominando-se. — Fraqueza talvez!
O
fazendeiro apiedou-se do estado do moço, e com a voz comovida;
— Para
que trabalha tanto? Disse-me o Sr. Gregório que o senhor leva as noites em
claro. Também, não vai a matar; nem aqui o amigo é tão exigente assim!
— Oh!
não. Os trabalhos de que me incumbe o Sr. Gregório pouco me atropelam. O meu
mal, senhor, é dos piores e dos que não têm remédio.
Mendes
sorriu com brandura paternal.
—
Alguma paixão, hein?
— Por
minha mãe. Amo-a e hei de morrer desse amor.
Mestre
Gregório olhou de esguelha para o fazendeiro, movendo os ombros quase
imperceptivelmente.
Mendes,
porém, era uma alma romana, um desses distintos caracteres cuja missão no mundo
é as mais das vezes compreender e aliviar as desgraças alheias. Rara avis.
— O
senhor é órfão, não?
— De
Deus e dos homens, senhor! — respondeu Paulo Maurício com uma pungente
dignidade.
— Oh! —
sussurrou o usurário a modo de censura.
Mendes
contemplou lentamente o poeta.
— Não
fale assim. A criatura deve esperar sempre uma felicidade, embora tardia. O
céu, mais hora, menos hora, ampara aqueles que o imploram com sinceridade e
crença. Quer fazer-me acreditar talvez — veja lá se pode! — que não tem o menor
vislumbre de ambição e que a nada aspira no mundo?
—
Mentiria, se tal dissesse! — acudiu Paulo Maurício elevando o busto com um
sentimento de nobre orgulho. A minha ambição, porém, é alheia aos caprichos
dessa riqueza bastarda cimentada com bilhetes de banco e moedas cunhadas.
Aspiro às coisas ideais! Meu coração estremece feliz à ideia de que um dia, no
futuro, mais de uma boca cite-me o nome com entusiasmo e amor. Eu prefiro a
glória de Tasso à de Rothschild, e de bom grado trocaria, se os possuísse, os
tesouros dos contos arábicos por uma estrofe de Lamartine.
—
Poesia! Poesia!
— E
então! Não será uma virtude, diga-me, e uma grande virtude, ser poeta no meio
das brutalidades, da fome, das misérias e dos insultos da existência terrestre?
Qual merece mais: o sibarita que se chafurda até o pescoço nos pântanos, ou o
infeliz que, para não manchar a túnica de sua alma, agarra-se a quanta pedra, a
quantos espinhos e tojos encontra às mãos, morto de fadiga e de torturas?
— Gosto
de ouvi-lo, moço; isso é belo, é cheio de abnegação e de sentimentos elevados.
Dê, porém, ao coração a sua parte, ou por outra, o seu inestimável quinhão
entre todas as vicissitudes da vida. É preciso admitir que há na terra quem
mereça ainda simpatias e amor.
— Há,
sim. E eu conheço alguém...
—
Bravo!
— Veja.
O poeta
fez um sinal, e um cão, deitado por baixo de sua cadeira, estirou o colo, as
pernas e o pescoço, pousando em seguida a cabeça festiva nos joelhos de Paulo
Maurício.
— Oh!
oh! — exclamou mestre Gregório. — Não sabia desse novo inquilino!
—
Esqueci-me de lho participar — volveu Paulo Maurício afagando o cão. — É tempo
ainda.
— Com
que então — disse o fazendeiro — é esse o tal alguém tão preconizado?
—
Justamente; é este cão.
—
Tem-no há muito?
— Desde
ontem à meia-noite. Chovia quando o encontrei à porta desta casa; o coitado
tiritava de frio e de fome. A desgraça possui o imparcial condão de nivelar
todos os animais. Compadeci-me deste miserável órfão e dei-lhe abrigo. Hoje de
madrugada surpreendi-o com os olhos fitos em mim como um sublime enfermeiro.
Quero-o deveras e dói-me não ser rico para nomeá-lo meu herdeiro universal.
— O
senhor sempre anda com umas ideias! — observou mestre Gregório, rindo
parvamente.
— É de
raça este cão?
—
Parece que roçou pela genealogia dos Terra Nova; mas que olhos! Que cabeça
inteligente! A natureza é uma ingrata na extensão da palavra. Nega a voz a um
animal como este, para outorgá-la copiosamente a quanto barbeiro estupidarrão e
usurários há por aí.
Mestre
Gregório dilatou as ventas e esfregou a vasta orelha.
— O
senhor não frequenta a sociedade? — perguntou Mendes.
— Não,
senhor. Ia uma vez ou outra, enquanto minha mãe vivia, à casa em que por
caridade lhe davam um travesseiro e um lugar à mesa. Tive um protetor, que
morreu, há pouco tempo, e desde então só à imensa bondade do Sr. Gregório devo
a ventura de conversar com o Sr. Mendes, a esta hora e nesta sala.
—
Acredita na espontaneidade da simpatia?
— Por
que não?
—
Saiba, pois, que deve contar-me no número dos que o estimam.
Paulo
Maurício agradeceu modestamente.
Quando
subiu para o seu quarto, ia mais lento e senhor de si. O cão, à maneira do
homem, também movia melhor o corpo, aventurava ziguezagues caprichosos, sacudia
a cauda e estendia a cabeça aos raios do sol, que iluminavam a alcova. O céu
estava azul; soprava um vento frio e agradável: no quintal de uma casa próxima,
duas lavadeiras cantavam alegremente.
Paulo
Maurício apoiou-se à janela e respirou com delícias os aromas do dia. Estava
mais alegre, mais forte, mais esperançoso e por que não mais feliz? Mais feliz
também; as palavras do fazendeiro haviam-lhe sido gotas de ambrosia e um
bálsamo para as feridas de sua alma atribulada.
É fácil
na mocidade transformar-se o sentimento e dar abrigo às musas da esperança e da
fé o coração, ondas, a todas as pérolas e a todas as tempestades da vida. O
fazendeiro jantou ainda em casa de mestre Gregório. Vendo-o de novo, estremeceu
de júbilo o poeta. Ao despedir-se, disse-lhe Mendes:
—
Lembre-se de mim.
—
Sempre.
— Hei
de vir com a família passar uns meses na corte. Dar-me-á o gosto de aparecer
por minha casa?
Paulo Maurício
guardou silêncio.
— Vai,
sim senhor, vai! Tinha que ver! — interrompeu o usurário. — Pode-se gabar, Sr.
Maurício! que ainda não ouvi este nosso amigo falar de ninguém como de vosmecê.
O poeta
apertou entre as suas as mios do fazendeiro.
— Deus
lhe pague.
— Vai?
— Vou.
Terminada
uma pequena escrituração de mestre Gregório, Paulo Maurício entregou-se ao seu
poema, de corpo e alma. As ideias jorravam-lhe do coração em borbotões
revoltos; anavalhe o peito, e a inspiração, à semelhança dessa terrível
serpente do Amazonas, enroscava-se-lhe na alma em milhares de círculos
gigantescos.
O cão
parecia compreendê-lo, seguindo-lhe os movimentos, os gestos, os acenos e os
olhares.
Suave,
a noite abria no regaço das nuvens todos os seus irradiantes tesouros. A lua,
fraca ainda, franjava o horizonte de uns leves tons de opala, que se
multiplicavam de floco em floco.
O herói
do poema de Paulo Maurício, como o Ashaverus, como o judeu amaldiçoado pelo
Cristo, vagava cercado das mais cruciantes dores e pesadas aspirações, à cata
do ideal. Uma diferença, porém, distinguia os dois tipos: um era perseguido
pela profecia de Jesus, o outro pela ingratidão dos homens.
O
talento de Paulo Maurício obrara prodígios naqueles cantos repassados de
entusiasmo e nervosa eloquência. Por vezes o delírio da própria inspiração o
dominava profundamente, a ponto de o poeta arremessar ao chão a pena e recitar
em altas vozes as estrofes que lhe irrompiam do coração deslumbrado.
Nessa
noite subiu à meta o sentimento que se poderia chamar a febre do ideal.
Ofegante, trêmulo, com a fronte úmida e os lábios abrasados, o poeta declamava
as últimas páginas do seu livro. Era um furacão. Era uma tempestade! Era uma
maravilha!
O cão
eriçava o pelo e grunhia arrebatado naquela torrente impetuosa. Revelavam as
palavras um quadro de horror ou de angústia; o animal confrangia-se todo, e mal
conseguia suster-se nas patas vacilantes. A inteligência do homem o fascinava,
e as chamas do poder criador como que o elevavam até a essência da alma humana.
No
momento em que o herói do poema alcançava enfim o bem supremo, o amor
partilhado, e as coroas do triunfo na imortalidade, a voz de Paulo Maurício
despedia notas de uma música divina; seus olhos fulguravam como a racha de uma
aurora boreal, e uma espécie de torpor místico veio paralisar-lhe num êxtase a
boca inspirada. O poeta correu à janela e voltou-se em cheio para as nuvens
estreladas.
De um
salto o cão foi-lhe no encalço, e, suspendendo-se até o peitoril, acariciou as
mãos queridas, latindo de prazer e de palpitante ventura.
Paulo
Maurício, com um movimento frenético, debruçou-se sobre o animal e
prendendo-lhe a cabeça entre os dedos nervosos:
— Tu me
compreendes, tu me compreendes, amigo! — articulou ele.
Em
seguida, apoderando-se do manuscrito, mostrou-o ao cão.
— Já
que o destino determinou que fosses tu a única testemunha das minhas secretas
mágoas e alegrias... Olha! Isto aqui será o berço da minha glória ou o túmulo
das minhas ilusões.
O cão
veio humildemente deitar-se-lhe aos pés.
CAPÍTULO
7: AS VIOLETAS
No fim do mês, mestre Gregório
dirigiu-se à água-frurtada do poeta.
— Viva
o meu amigo e guarda-livros! — exclamou o usurário entrando no aposento.
— Oh! O
Sr. Gregório! Muito bom dia!
O
senhorio parecia pisar brasas; ia de um lado a outro do quarto, sem tomar uma
resolução qualquer. Respirava alto; puxava os colarinhos — uns colarinhos fora
do alinhamento —, esfregava a barba, o queixo, os olhos etc. Estava em crise o
homem, infalivelmente.
— O que
tem o senhor? Vejo-o preocupado.
O
usurário de chofre estacou defronte do poeta.
— Eu cá
não entendo de papas na língua. Um homem é um homem e um gato é um gato. Aqui
está o que aqui me trouxe!
Dito
isto mergulhou a mão no bolso do amplo casaco e descobriu uma carta volumosa.
Passando-a a Paulo Maurício, fez menção de se retirar, quando o moço o deteve
por um gesto:
—
Perdão. Deixe-me primeiro ver de que se trata.
— Nada,
nada. Nesses negócios não me quero eu meter. Desenrole a meada por si mesmo!
E
retirou-se às pressas como um malfeitor perseguido.
O poeta
abriu intrigado a carta, de dentro da qual caíram algumas notas do Banco do
Brasil. Lançou os olhos para a assinatura. Leu Mendes. A carta dizia assim:
“Meu
amigo, ou antes, meu filho. Que o seu orgulho não se sobressalte com a minha
ousadia. Eu o estimo como pai e admiro-o como homem. Perdoe-me, novamente lhe
rogo. Vá ao Garnier e muna-se de bons livros com a bagatela que inclusa achará.
Para tão bom emprego destinei essa lembrança, que o seu coração não me
criminará pelo atrevimento. Far-me-á relevante serviço de aceitar, e, maior
ainda, e incomparável ventura, se quiser
o vir à
noite à nossa casa, rua das laranjeiras nº... onde acomodei minha família. É o
dia dos anos de uma filha adorada. Como eu exultarei com a sua presença, meu
grande espírito! E como seria para mim inefável contentamento se meu filho, um
rapaz da sua idade, conseguisse ser seu amigo e discípulo desse raro caráter!
Venha abraçar quem se presa de ser seu admirador e agradecido amigo."
P. Mendes.
O poeta
leu três vezes a carta. Da segunda vez amarrotara-a convulso; da última sorriu
com ar triunfante, colheu no chão as notas esparsas, e, acenando ao cão, desceu
à rua.
Esbarrou
na escada com a velha Angélica.
—
Faça-me um favor, tia. Mande-me lavar e engomar para esta noite aquela camisa
bordada.
— A que
está na gaveta?
— Sim,
e não se há de enganar, porque é a única da espécie.
Durante
o jantar, Paulo Maurício mostrou-se jovial e parlador contra o costume. Mestre
Gregório espreitava-o sorrateiramente, rindo-se por baixo da barba. À
sobremesa, o usurário passou ao moço uma carta.
— Ainda
outra? — perguntou o poeta franzindo o sobrolho.
— Isto
agora é comigo acudiu de pronto o usurário. — Aumentei-lhe o seu ordenado; e
entrego-lhe a demasia, descontando o aluguel.
Paulo
Maurício guardou com a maior serenidade o dinheiro.
—
Aceito e agradeço.
Às dez
horas da noite entrara o poeta no salão principal da casa do fazendeiro.
Ressoava a música e os pares entrechocavam-se, no meio dos perfumes e das
luzes.
Mendes
correu-lhe ao encontro, de braços abertos.
— Bem
vê que não faltei.
— Se
soubesse como me alegra a sua presença! Vou lhe apresentar minha família.
Venha.
O
fazendeiro conduziu Paulo Maurício à sua mulher, em primeiro lugar, logo depois
ao filho, à filha mais velha, e finalmente à dona da festa, uma menina formosa,
toda envolta em gazes e margaridas.
— Esta
é a minha Cecília — disse ele.
— Se o
Sr. Mendes me permitisse... — aventurou o poeta.
— O
quê?
— Que
oferecesse uma lembrança do dia de hoje. É uma ousadia que a generosidade de
vossa excelência — continuou ele dirigindo-se à menina — me relevará decerto.
O
fazendeiro contemplou intencionalmente o poeta.
— Algum
tesouro? — perguntou com a voz indecisa.
— Não:
são flores. Violetas. Perdão, minha senhora!
E Paulo
Maurício abrindo o lenço entregou um gracioso ramo de violetas à menina.
O filho
do fazendeiro tomou o braço do poeta, e entrelaçaram-se aquelas duas almas
generosas, presas de uma mútua e viva simpatia. De uma ocasião, o filho do dono
da casa, obrigado a acudir não sei a que urgência social, deixou por alguns
instantes o companheiro.
Quando
voltou não o viu mais. Paulo Maurício havia abandonado o sarau.
Cecília
procurava o pai por todos os cantos.
— Ah!
Até que o achei, papai!
— Que
temos?
— Olhe
as artes do seu amigo Paulo Maurício.
O
raminho de violetas trazia meio oculto por filigranas de papel-cambraia um rico
porte-bouquet de ouro, cravejado de
turquesas e diamantes.
O
fazendeiro, depois de examinar de perto a joia, entregou-a à filha, sorrindo
amargamente.
—
Indomável orgulho! — disse ele entre dentes.
CAPÍTULO 8
O poeta examinava as contas de
mestre Gregório. Era a hora do trabalho; eram cinco horas da tarde. A velha
Angélica, rotunda e misteriosa como a lua cheia, entreabriu mansamente a porta
da alcova.
— Dá
licença?
— O que
quer, tia?
— Está
aí um moço seu amigo. Pode entrar?
Paulo
Maurício mal teve tempo de abotoar o paletó.
O filho
do fazendeiro, afastando a criada, penetrou no aposento.
— Oh! O
Sr. Mendes?
—
Eduardo, Eduardo é o meu nome! Venho brigar muito com você, ilustre desertor!
O filho
do fazendeiro em um belo rapaz, formoso de corpo e formoso de alma; coisa rara
numa época em que a matéria anda tão hostil ao espírito. Tinha 22 anos e
cursava as últimas aulas da Escola Central.
—
Desertor?
—
Desertor, sim! Mas, antes de tudo — prosseguiu o moço ao ouvido do
poeta — põe no olho da rua esta velha imensa!
A tia
Angélica, a um sinal de Paulo Maurício, saiu do quarto resmungando
sinistramente.
— Meu
caro Maurício — prosseguiu Eduardo Mendes —, você é um ingrato, e além de tudo
um traidor!
— Um
traidor, eu?!
— Pois
o que significa o mimo que deu à minha irmã?
O poeta
corou até as pálpebras, e a palavra suspendeu-se-lhe nos lábios enleados.
— Olha
— acudiu o outro, forçando-o a sentar-se e apoderando-se de uma pequena mala
carunchosa que metamorfoseou em cadeira —, minha família é simples como as
plantas e desconfiada como um caipira.
— Mas...
—
Espera. Das duas, uma: ou você está a fingir-se nababo, ou é na realidade um
milionário, que viaja incógnito.
Paulo
Maurício tentou cortar em meio o pensamento do camarada.
— Pelo
amor de Deus, meu querido! Favoreça-me com a sua preciosa atenção. Meu pai o
adora e eu adoro meu pai; logo, você é para mim um ente adorabilíssimo.
Compreendo todo o orgulho dos talentos superiores; respeito o melindre dos
corações nobres, porém, rogo-lhe, que veja de hoje em diante naquela casa das
Laranjeiras uma espécie de cabana de Bernardim de Saint— Pierre, pronta a
abrigar a amizade, e não um palácio de duques, marqueses, condes, valetes, et reliqua!
O poeta riu-se e apertando a mão
do amigo:
— O
senhor é uma encantadora alma! — disse ele.
—
Outra! O senhor! Parece-me, meu caro, que nunca chegaremos a um acordo, e
portanto...
O filho
do fazendeiro dirigiu-se à porta, de chapéu em punho.
Paulo
Maurício sentiu-se arrastado por tanta graça e espontaneidade. Prendendo nos
braços o amigo, exclamou com a voz comovida:
—
Perdoa-me, Eduardo; eu sou um urso!
— Ora,
graças! — volveu o moço com todos os ímpetos do prazer juvenil — Je te retrouve, mon chéri!
Meia hora depois, o filho do
fazendeiro despediu-se.
—
Sabes, Paulo Maurício; quero-te um bem enorme. Se fosses mulher casava-me
contigo.
O cão
pôs-se a acarinhar os pés de Eduardo Mendes.
— Não
sabia que eras amador do gênero. Hei de oferecer-te um galgo soberbo.
— É
inútil. Basta-me este leal e inteligente amigo.
—
Queres-lhe muito?
—
Muito; se a teoria de Pitágoras não é uma asneira, a alma deste cão pertenceu a
algum mártir romano.
— Sim?
—
Palavra!
— Pois
bem — exclamou o filho do fazendeiro, com um ar meio cômico e meio sério —,
juro pela cabeça do teu cão que serei teu amigo eternamente.
— Que
palavra comprida!
— Com a
condição, já se sabe, de não seres mais?... ajuda-me!
— Urso?
—
Apoiadíssimo; urso!
Entre
gargalhadas separaram-se os dois rapazes.
Paulo
Maurício sentou-se de novo à mesa do trabalho.
O cão
humildemente veio enroscar-se ao pé da mesa. O poeta afagou-o com a mais
fraternal meiguice:
—
Descansa, meu amigo. Ninguém ocupará o teu lugar.
O
animal cerrou os olhos, agitando a cauda amorosamente.
CAPÍTULO 9: COMO SE PAGA UMA
DÍVIDA
Graças
à proteção de Mendes, de quem mestre Gregório dependia como todo o usurário dos
homens dinheirosos, a existência de Paulo Maurício viu-se transformada de
repente; entre os espinhos de sua jornada laboriosa brotam algumas flores
peregrinas.
O filho
do fazendeiro forçara o poeta a receber um ou outro mimo das mãos do pai, e ele
próprio rara vez deixava de visitar, depois da aula, o modesto aposento da rua
Misericórdia.
Embalado
por tão inesperadas carícias, a alma do poeta, contrária à dos sibaritas,
agitou no ar chamejante da mocidade as suas asas diáfanas, e o talento de Paulo
Maurício com mais ânsia entregou-se às conquistas da inspiração e do futuro. O
poema limado e concluído esperava apenas a hora da publicidade, esse mar
tormentoso em que, segundo una frase célebre, navegam quase sempre sem perigo
os batéis e soçobram as grandes esquadras.
O filho
de Mendes surpreendeu uma noite Paulo Maurício na leitura do seu amado
manuscrito. O poeta, à vista do amigo, ocultou o livro.
— Tens
medo de que eu te roube algum pensamento?
— Que
ideia!
—
Sorriram os dois e saíram braço aqui, braço acolá, com direção à praça da
constituição. O cão seguia-os como uma sombra.
Havia
festa na cidade essa noite; uma festa nacional. A praça da constituição, toda
embandeirada e iluminada, mal continha a multidão que a atravessava de lado a
lado.
—
Sabes, Paulo, que eu chego a invejar a sorte deste quadrúpede que nos
acompanha?
—
Explica-te!
—
Decerto. É o teu único confidente, parece-me. Para mim tens segredos, caro mio!
Paulo
Maurício contemplou lentamente o companheiro:
— Um
dia será divulgado esse segredo.
— De
forma que só no supradito dia é que
este teu humilíssimo servo entrará na confidência geral?
— Olha,
Eduardo. Eu sou como um desgraçado joalheiro cuias mãos tímidas e assustadas
gastam noites, meses e anos na confecção de um tesouro, destinado a fazê-lo
rico ou a abismá-lo de todo na miséria. Enquanto não estiver completamente
terminada a obra, o silêncio e o mistério devem cercá-la como sentinelas
constantes. Perdoa a perífrase e admira a estátua do primeiro imperador.
Discutiram
e conversaram sobre mil coisas ainda. As aspirações da mocidade e os sonhos
dessa fulgurante quadra da vida voavam pousando sobre as duas esperançosas
almas, como um bando de pombas no topo de uma palmeira. Às dez horas da noite o
poeta quis voltar à casa. Eduardo Mendes conseguiu demorá-lo mais tempo, e,
apesar de inúmeras negativas da parte de Paulo Maurício, entraram os dois num
café.
— É
preciso habituar-te um pouco à vida, meu guaicuru — observou, rindo, o filho do
fazendeiro.
O licor
produz uma série de indiscrições e confidências, que fora ocioso catalogar
aqui. À meia-noite, já Eduardo Mendes conhecia o título e o assunto do poema de
Paulo Maurício.
— É o
tesouro do joalheiro — disse o poeta. — Se eu o perdesse, morreria!
Iam a
sair do café quando ouviram badaladas fúnebres em várias freguesias e algumas
pessoas do povo a correrem azafamadas.
— Oh!
diabo! — exclamou o filho do fazendeiro; é fogo!
Os dois
amigos foram instintivamente conduzidos na mole sussurrante, que o mesmo
pensamento atraía.
Os
bombeiros corriam arrastando as pesadas máquinas, cujas rodas reboavam como um
agouro pelas calçadas e ruas. Ao longe um clarão sinistro avermelhava o
horizonte.
— Tens
medo? — perguntou Eduardo Mendes graciosamente.
— Por
quê?
— Senti
teu braço estremecer.
O cão,
perdido entre o povo, deu um arranco ouvindo o poeta chamá-lo, e não os deixou
mais, acelerando a corrida um pouco febril. Por vezes o animal estacava de
súbito e espreitava o horizonte aclarado pelo incêndio.
Próximos
à rua da Misericórdia, Paulo Maurício e Eduardo Mendes foram forçados a
diminuir os passos. O povo engrossava, e os gritos dos bombeiros, o estalido do
incêndio, o próprio calor do fogo, não punha mais em dúvida o lugar do
desastre.
— É na
minha rua! — gritou Paulo Maurício, e arrastando o amigo cortou as ondas
tumultuosas do povo. Um cordão de policiais e de curiosos circulava a casa de
mestre Gregório. Era lá o incêncio. As labaredas enroscavam-se pelas janelas,
as faíscas subiam vertiginosamente, enovelando-se no ar como um repuxo
sibilante; desabavam com estrondo as paredes, e a água das bombas mal podia
cortar aquela muralha rubra e vaporenta. Paulo Maurício, lívido, ofegante,
alucinado, quis arremessar-se ao fogo, arrancando-se dos braços de Eduardo
Mendes.
— Paulo
Maurício!
—
Deixa-me pelo amor de Deus! — bradou o poeta estendendo as mãos para as chamas
convulsivas. — Não vês que eu perco ali a minha felicidade, o meu sangue, a
minha glória?
E
desprendendo-se do amigo lançou-se à porta da casa. Os policiais impediram-no a
custo.
O poeta
quase exânime, com os dedos cerrados entre os cabelos úmidos, foi cercado pelo
povo e sentiu-se preso entre as mãos nervosas de Eduardo Mendes.
Nesse
momento fez-se um vácuo nas chamas; a onda rubra entreabriu-se de súbito, e um
cão, um cão com o pelo incendiado, e o corpo aberto em chagas, de um salto
miraculoso, passou sobre o povo e sobre a tropa, caindo aos pés de Paulo
Maurício. Na boca do animal vinha um rolo de papéis.
O poeta
desprendeu um grito de angústia e de prazer, reconhecendo o seu poema, salvo do
incêndio.
Foi
difícil arrancar das presas espumantes do cão o manuscrito. Paulo Maurício,
seguido por Eduardo Mendes e algumas pessoas do povo, vibrantes de curiosidade
e de pasmo, correu à primeira botica onde em vão tentou restituir à vida o seu
heroico e sublime amigo.
O poeta
de joelhos, junto ao animal agonizante, chorava como uma criança.
—
Pagaste cedo a tua dívida, meu leal companheiro! — articulou ele através dos
soluços que o abalavam. — E a providência te abandona! E Deus não me concebe a
suprema ventura de te salvar!
O cão,
cravando o derradeiro olhar no rosto pálido do seu amigo, esforçou-se por mover
ainda a cauda, como nas horas da passada alegria e, estendendo a cabeça
mutilada sobre a mão do poeta, expirou gemendo.
Publicou-se,
seis meses depois, o poema de Paulo Maurício.
A
primeira página, tarjada de negro, era consagrada à memória de um cão.
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