O galo preto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Havia dantes em Penajoia — terra que ninguém é capaz de ver no
mapa geográfico de Portugal — uma aula regia de primeiras letras.
A aula era em uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no
meio de uma clareira, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam
do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.
Os alunos entravam às oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para
jantar; e voltavam depois às duas horas, para saírem às cinco da tarde. Alguns
deles vinham de longe, meia légua, três quartos de légua de distância. Eram
todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã de suas casas, com o livro
debaixo do braço, e a lousa das contas pendente de um cordão, lançado a
tiracolo. No caminho, os que vinham de mais longe, iam-se reunindo aos
condiscípulos que encontravam; jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos
castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e verdelhões.
O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um
velhote rabujo, de pelos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alunos,
que ensinava.
Um dia perguntei-lhe eu:
— Diga-me cá, Sr. Joaquim, que método adota?
— Que método?! — exclamou ele, estranhando a pergunta. E depois,
levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os óculos, fitou-me
desconfiado, e respondeu com ar solene:
— Adoto o método do Aquiles (do Axiles, foi como ele disse).
Mas, a despeito de tudo isto, era um tirano, como o são quase
todos os ignorantes.
A aula, como já disse, ficava ao rés-do-chão. A luz entrava por
duas frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem; porque assim
era preciso — explicava o mestre — para que os rapazitos se não distraíssem, a
olhar para fora. Ao fundo da sala ficava uma mesa de pinho e uma cadeira, que
era o lugar do mestre. Depois seguiam-se bancadas de pau, colocadas como uma
plateia, duas a duas, deixando ao meio um intervalo, por onde entravam os
alunos; e, quando todos tinham entrado, por onde passeava gravemente o
professor, com o livro em uma das mãos, e na outra um junco.
Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, empalideciam.
E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda
a repetirem a lição, trêmulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem de
subir a uma forca!
O Gabriel era ainda um pequenote de sete anos. Morava ao pé do
Abade. E o Abade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava a
lição. Por isso, e como o pequeno era esperto — ui! diziam os conhecidos, o
Gabriel? esperto como um alho! — era o Gabriel que quase sempre ensinava a
lição aos outros.
— Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me? — pedia-lhe de uma
vez o
João do moleiro.
João do moleiro.
— Soletra lá.
E principiou o outro:
— P-h-i, pi.
— Qual pi! Também
eu cuidava! P-h-i, fi — emendou o Gabriel.
— Fi! — exclamou o João,
— Fi! Peta! Tu enganas-me, Gabriel.
— Não engano, João; lê fi,
que foi como me ensinou o Sr. Abade.
Nisto, chegou à porta da aula o mestre.
Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas,
porque tinha dormido a sesta.
Chegou à porta e gritou:
— Canzuada, salta para dentro!
E lá entram todos de chapeuzinho na mão, cheios de medo, como um
rebanho de ovelhas a entrar para um matadouro.
Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a
palmatória, e depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silêncio lúgubre na
sala.
— Lê tu, João — principiou ele.
O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da
terrível palavra, ia-lhe faltando o ânimo.
Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Enfim continuou
irremediavelmente:
— E como a ciência chama… chama…
E ergueu suplicante os olhos para o verdugo.
O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:
— Lê para bai-xo, me-ni-no — acentuando as silabas com um sorriso
ameaçador.
— Chamada — continuou o
pequeno indeciso — chamada… e
terminou em tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que diz — Filosofia.
— Como? — bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas
orelhas. — Como?
O pequeno fechou os olhos, encolheu os ombros, e emendou a chorar:
— Fi-lo-so-fi-a.
O professor descarregou segunda juncada, e berrou:
— Filosófia,
burro, Filosófia!
— Filosófia, — repetiu o
pequeno.
Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do
seu lugar e declarou com a voz serena e com as lágrimas a saltarem-lhe dos
olhos:
— Senhor mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui
eu.
Oh! que escândalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os
discípulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam!
Pudera! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a bolaria,
não há dúvida.
— O que é lá? — gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa. — O
que é?
E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o
pavilhão da orelha direita.
— Fui eu que ensinei assim — repetiu o Gabriel assustado.
— Vem cá — chamou de afogadilho o mestre — já aqui, seu atrevido.
E bateu com a palmatória na mesa. O Gabriel pousou o livro no lugar e
aproximou-se.
— Aqui já.
O mestre descarregou-lhe nas mãozinhas tenras meia dúzia de
furiosas palmatoadas.
Foi muito bem feito! Apre! Ofender a sabedoria do seu mestre!
***
De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o Abade pela aula do
mestre régio. Fora ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o mundo ia
acabar.
À porta da aula estavam três pobres mulheres, cada uma com um
filhinho ao colo.
— Aí vem o Sr. Abade — disse uma delas. — Vamos pedir-lhe,
mulheres.
Aquilo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.
Aquilo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.
Abeiraram-se do Abade, e imploraram-lhe que fosse ele pedir ao
mestre que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.
— Então o que aconteceu? — perguntou o reitor.
— Quem sabe lá, Sr. Abade! Eles berregam, que parece que os matam!
— Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tão fraquinho!
— E o meu João, Sr. Abade, que tão doentinho tem andado.
— E o meu José! aquele que foi este ano à primeira confissão, Sr.
Abade; sabe?
O Abade dirigiu-se à porta e bateu.
— Quem é? — perguntou de dentro a voz áspera do mestre.
— Abra, mestre Joaquim, faz favor?
O Abade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providência.
— Então o que lhe fizeram estes mariolas, Sr. Joaquim? — perguntou
o Abade, olhando em roda para os alunos.
— O que me fizeram? Roubaram-me dois lápis!
— Oh! que grande pecado! — exclamou o Abade, arregalando os olhos.
— E é que nenhum confessa — explicou o mestre. E bradou, voltado
para os pequenos — nenhum confessa, mas eu ra a i xo-os, aqui, todos.
O Abade pôs-lhe a mão no ombro e serenou-o, dizendo-lhe:
— Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.
Espere aí que volto já.
Espere aí que volto já.
Saiu o Abade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de
uma rapariga.
Aproximou-se da mesa e disse:
— Põe tudo aqui em cima, Josefinha. Assim. Agora vai-te embora.
A pequena pousou uma panela de folha, e tirou debaixo do avental
um galo preto. O Abade meteu o galo dentro da panela, cobriu-a com o testo, e
principiou assim:
— Fez-se um grande pecado! Roubaram um lápis! Quem rouba um lápis,
é muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós cometeu o crime; e não o
confessa por vergonha. Ora, por causa daquele que roubou os lápis, vão padecer
todos os mais. Aí tem! Em vez de só fazer um pecado, que Nosso Senhor lhe
perdoava, se o confessasse e se arrependesse, vai cometer muitos: faltar à
verdade, que é tão feio, e depois deixar que os outros sofram injustamente.
Os pequeninos ouviam o Abade com religiosa veneração.
O Abade prosseguiu:
— Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta
panela. O galo preto há de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa
do que roubou o lápis. E fica assim conhecido o ladrão; o Sr. mestre Joaquim há
de castigá-lo, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer, se confessar está
perdoado.
Na aula, silêncio profundo.
— Nenhum se acusa? — disse o Abade. — Venha o número 1.
Foi o número 1 e pousou a mão sobre o testo. O galo não cantou.
Foi o número 2, foi o número 3 e chegou até ao número 4.
Antes de chegar a vez ao número 5, todos os olhares convergiram
para um canto da aula, de onde partiam uns soluços aflitivos.
— Quem chora aí? — perguntou o Abade.
Ergueu-se o Eusébio da Entrevada.
Era um pequenino de oito anos, muito pobrezinho, com um palmito de
cara que estava mesmo a pedir pão.
Era um cinco reis de gente, o Eusébio.
— É o da Empregada
— explicou o do Moleiro.
— Anda cá, menino — chamou o Abade — anda cá. Tu por que choras?
O pequeno aproximou-se para justificar as suas lágrimas, mostrou
ao reitor os dois lápis roubados.
— Ah! foste tu, Eusébio?!
E Jesus! O pequeno chorava que era um dó do coração! E nem podia
responder; apenas acenava.
— Então foste tu. E, olha, para que os tiraste?
— É que o Sr. mestre — balbuciou o criminoso — disse-me que
trouxesse eu um lápis, e eu não quis pedir o dinheiro à minha mãe, que
está empregadinha na cama,
e nem tem dinheiro para o caldo. E depois com medo de que o Sr. mestre me
batesse…
— Pegaste num lápis. Foi assim? — concluiu o pároco.
— Foi, sim, senhor.
— Mas tu tiraste dois!
O pequeno desatou a chorar.
— Para que tiraste dois? — insistia o padre.
— Era — explicou o Eusébio — para quando se acabasse um!…
O mestre estava já de palmatória pronta.
O Eusébio estendeu resignado a mãozinha trêmula.
— Basta — terminou o Abade. — Eu prometi que se perdoava a quem
confessasse. Para outra vez, querendo alguma coisa, vai-me pedir, ouviste? Que
eu não tenho tempo de saber o que vos falta. Ora vai para o teu lugar, e
promete que não tornas a fazer outra.
O mestre Joaquim sentiu
muito não aplicar o corretivo.
— Deixe lá, Sr. Joaquim — dizia-lhe o Abade. — É preciso muita
misericórdia para tratar as crianças. Lembre-se do que dizia Jesus: Sinite parvulos venire ad me.
O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quis
ocultar a ignorância, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:
— Et cum spiritu tuo!
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