O filósofo Platão: Senhor Platão Soares
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que havia fechado com
uma volta só. Voltou. Deu outra volta. Então se lembrou de que havia esquecido
a carta de apresentação para o diretor do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu
uma volta na chave. Nada. É verdade: deu mais uma.
— Nhana! Nhana! Nhana!
Nhana apareceu sem meias no alto da
escada.
— Estou vendo tudo.
— Ora vá amolar o boi! Que é que você
quer?
— Na gaveta do criado-mudo tem uma
carta. Dentro de um envelope da Câmara dos Deputados. Você me traga por favor.
Não. Eu mesmo vou buscar. Prefiro.
— Como queira.
E foi buscar. Saiu do quarto e parou
na sala de jantar.
— Ainda tem geleia aí, Nhana?
— No armário debaixo de uma folha de
papel.
— Obrigado.
Escolheu cuidadosamente o cálice.
Limpou a colherinha no lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas não
se conteve.
— Platão, Platão, você não vai falar com
o homem, Platão?
— Calma. Muita calma. Glorinha
entregou o ordenado?
Nhana sacudiu a cabeça:
— Sim senhor!
Fingiu que não compreendeu. Raspado o
fundo do cálice lavou meticulosamente as mãos. E enxugou sem pressa. Dedo por
dedo. Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros. Esperou.
Agora o ônibus. Esperou. Agora um automóvel do lado contrário. Esperou. Olhou
bem de um lado. Olhou bem de outro. Certificou-se das condições atmosféricas de
nariz para o ar. Marcialmente atravessou a rua.
O poste cintado esperava os bondes com
gente em volta. Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja.
Todos olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes
vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na calçada e
foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.
— Boa tarde, Platão.
— O mesmo, Argemiro, como vai você?
— Aqui neste solão esperando o maldito
19 que não chega!
Platão cavou um arzinho risonho.
Acendeu um cigarro. Disse sem olhar:
— Eu espero o ônibus da Light.
— Milionário é assim.
Primeiro deu um puxão nos punhos
postiços. Depois respondeu:
— Nem tanto...
O 19 passou abarrotado. Argemiro não
falava. Platão sim de vez em quando:
— Esse é um dos motivos por que eu
prefiro o ônibus da Light apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois é um Patek.
Mas era só para moer.
Argemiro deu adeusinho e aboletou-se à
larga num 19 vazio. Então Platão soltou um suspiro e pongou o 13 que vinha
atrás.
Ficou no estribo. Agarrado no
balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste.
Escapando do primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma sacudidela
do bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana casaria de novo?
— O senhor dá licença?
— Toda.
Não tinha visto o lugar. Pois a mulher
viu. Que danada. Toda a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava
cocaína. Ora que bobagem.
— Ó Seu Platãozinho!
A voz do Argemiro. Enfiou o rosto
dentro do bonde.
— Ó seu pândego!
O cavalheiro do balaústre foi amável:
— Parece que é com o senhor.
— Olá, Argemiro, como vai você?
— Te gozando, Platãozinho querido!
Resolveu a situação descendo.
— Não tem nada de extraordinário, Argemiro.
Não precisava lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado
a andar de ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado
no bolso? Homessa agora! Homessa agora!
— Até outra vez, seu bocó!
Profunda humilhação com o sol assando
as costas.
Mas não é que tinha de descer ali
mesmo? Praça da República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de
primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande? Um
grandérrimo.
Para a satisfação consigo mesmo ser
completa só faltava abrir o guarda-sol. Você não quer abrir, desgraçado? Você
abre, desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu
italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é pior.
Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez mais três
tentativas. Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira na calçada de
quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas já estão fumegando. Depois
asfalto foi feito ES- PE- CI-AL-MEN-TE para aumentar o calor da gente. Platão
parou. Concentrou toda a sua habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não.
Vamos ver se vai com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem?
Com delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho? Está bem.
Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro cabide. Cabide é o
braço. Que coisa mais engraçada.
Rua do Ipiranga. Eta zona perigosa.
Platão não tirava os olhos das venezianas. Só mulatas. Eta zona estragada.
— Entra, cheiroso!
— Sai, fedida!
Que resposta mais na hora, Nossa
Senhora. É longe como o diabo esse tal de Serviço Sanitário. Pensando bem.
— Boa tarde, Seu Platão, como vai o
senhor?
— Ó
Dona Eurídice, como vai passando a senho...ora que se fomente!
Olhou para trás. Não ouviu. Que
ouvisse. Parou diante da placa dourada. Sem saber se entrava ou não. Não será
melhor não? Tanta escada para subir, meu Deus.
O tição fardado chegou na porta
contando dinheiro.
— O doutor diretor já terá chegado?
— Parece que ainda não chegou, não
senhor.
Aí resolveu subir.
— O doutor diretor ainda não chegou?
O cabeça-chata custou para responder.
— Chegou, sim senhor. Quer falar com
ele?
— Ah, chegou?
O cabeça-chata papou uma pastilha de
hortelã-pimenta e falou:
— Agora é que eu estou reparando... o
Seu Platão Soares... Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o senhor teve sorte
mesmo: encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.
Platão deu uma espiada na sala.
— Xi! Tem uns dez antes de mim.
— Paciência, não é?
Platão se abanava com o chapéu-coco.
Triste. Triste. Triste.
— Que é que você está chupando?
— Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!
Platão deu um balanço na cabeça.
— Sabe de uma coisa? Aai!... Eu volto
amanhã...
— O senhor dá licença de um aparte,
Seu Platão? Eu se fosse o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio
aqui umas dez vezes?
— Não tem importância. Eu volto
amanhã.
— Admiro o senhor, Seu Platão. O
senhor é um FI-LÓ-SO-FO, Seu Platão, um grande FI-LÓ-SO-FO!
— Até amanhã.
— Se Deus quiser.
Desceu a escada devagarzinho. Tirando
a sorte. Pé direito: volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não
volto, volto, não volto, vol...to, não vol...to, vol...to! Parou. Virou-se.
Mediu a escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da
porta? Mais um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um
passo: volto. Aí está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou os músculos
armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia chegando com a
velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o guarda-sol. O chofer do
outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão Soares finalmente suspendeu o
corpo. Ficou tudo suspenso. Até que Platão muito digno pegou o chapéu.
Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.
— Não, minha senhora! Prefiro assim
mesmo aberto, por favor. Muito agradecido. Muito agradecido.
De guarda-sol em punho deu uns
tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Coisa
mais interessante ver mudar um pneumático.
E não demorou muito.
— Eu se fosse o senhor levantava um
pouquinho mais o macaco, não acredita?
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