Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Muito, mas muito, contente sempre de si e consigo mesmo o Amaro
Esteves, sobretudo agora que ganhara, por bamburrio, não pouco dinheiro no
encilhamento. Por cima, o prêmio integral de cem contos de reis na loteria da
Baía.
Sim senhor, graças aos inesperados e meigos sorrisos da sorte, se
tornara, nada mais, nada menos, um capitalista importante.
E rapaz ainda, bonitaço, na casa dos 35, atirado às mulheres,
gostando de roupagens claras, gravatas vermelhas com alfinetes de grande
brilhante, pilhérico, metido a contar anedotas engraçadas, picarescas.
A maçada era a Nicota, a mulher, tão franzina, desengonçada,
chochinha, sem carnes, sempre retraída, muito acaipirada, coisa demais. Também
fora aquele casamento uma bobagem, estopada de marca maior.
Mocinho, numa festa de roça, tolamente se embeiçara por ela, então
rapariga sem graça nenhuma, e, quando dera acordo de si, zás, traz, nó cego,
estava casado, amarrado para todo o sempre pelo conjungo de um vigário de aldeia. Que espiga!
Não era, de certo, mazinha a Nicota, muito acomodada, calada, no
fundo nula, absolutamente nula. Dela não vinha nem bem, nem mal ao mundo.
Incapaz de matar uma mosca. Servira nos tempos de penúria e miséria, quando
vegetara nuns empregos reles, de cacaracá;
mas agora que pretendia fazer figura na sociedade, frequentar teatros, concertos
e bailes, receber e dar jantares, como se avir com semelhante pamonha?
Nada lhe assentava no corpo mal ajorcado, sem ondulações nem
quadris. Não havia chapéu que lhe quadrasse, e por mais joias que pusesse
ficava até pior.
Metia-lhe deveras vergonha, ela ao seu braço pela rua do Ouvidor
afora.
Não sabia nem sequer aproveitar o cabelo que tinha comprido e
abundante. Penteava-o à china, puxando-o todo para traz e deixando a testa de
bater roupa, com uma cara muito feia, rechupada, faces encovadas, olhos empapuçados,
beiços escados em ponta, como bico de chocolateira.
Por mais que lhe dissesse: “arranje-se melhor, Nicota; veja
fulana, veja sicrana”, não adiantava um passo, nem coisa alguma conseguia.
Tinha por vezes vontade de lhe empurrar a mão, dar-lhe pancada e
até cabo da pele, vê-la morta, metida no caixão e enterrada. Que alívio! Com
mil bombas, aquilo não era mulher para ele!
Ah! fosse casado com alguma desempenada, que vida, que figurão!
Alguém que o compreendesse e estivesse na altura da posição conquistada, ele
que pretendia agora abrir os seus salões, mandar até comprar um título em
Portugal.
Vejam, porém, só a Nicota Baronesa ou Viscondessa; ninguém a
tomaria a sério, ninguém; um varapau de saias, sem expressão, sem vida, nem
peixe, nem carne. E a abrir a boca, era logo um chorrilho de asneiras “muié, havéra, promóde, teia, panhou, rancou”.
Mal sabia ler e escrever.
Aquilo nunca se havia de desemburrar, escusado!
Só prestava para pregar botões às camisas e ceroulas e coser na
máquina, assim mesmo tão vagarosa, desconsolada sempre, à mercê do marido, numa
pasmaceira enorme, desfibrada, atônica, inerte, atenta só à limpeza da casa,
que trazia como um brinco.
Que maçada, que peso, a tal Nicota! Se ela pudesse esticar a
canela, morrer de uma boa vez!... Não faria nada por isso, porque afinal não
era nenhum criminoso, desalmado e assassino. Só se a natureza se lembrasse de
libertá-lo daquela lesma. E devia merecer esse favor, porque estava mil furos
acima de semelhante criatura clorótica, esgrouvinhada, incapaz de lhe seguir os
passos, sobretudo na vida nova que a fortuna lhe proporcionara.
Com a breca, dispor de centenas de contos e estar de mãos e pés
atados, preso a um ente daqueles!
Lá podia pensar em viajar a Europa com Nicota? Por toda a parte
provocaria riso e chasco, bem merecidos, lá isso era verdade.
Nunca tivera filhos e felizmente. Haviam de ser uns apatetados da
força da mãe.
E de alguns anos a esta parte de contínuo achacada; ora disto, ora
daquilo outro, umas dores vagas, opressões, faltas de respiração, que a
tornavam ainda mais feia, obrigando-a a estúrdias caretas.
Falara, um médico em moléstia do coração adiantada até. Qual! Já
havia disso um bom par de anos, e nada dela arrebentar. Mulher doente, mulher
para sempre; o ditado tinha toda a razão. Mil raios!
Depois então das histórias do encilhamento,
parecera melhorar, e muito. Não se queixava, nem mesmo o pouco ou quase nada do
costume.
Se, pelo menos, mostrasse ufania e admiração pelo marido! Nada!
Incapaz de qualquer movimento que não tivesse repetido na véspera, anteontem,
uma semana, um mês, dez ou quinze anos atrás.
Também ele a socava sem a menor cerimônia em casa e, em todos os
tempos, ia lá fora pagodear à grande. Agora não se fartava de ceiatas com
francesas bem pandegas e de cabelo pintado de açafrão. E, no dia seguinte das
grossas patuscadas, encontrava sempre a mesma fisionomia, fria, impassível, sem
a menor alteração.
Deveras atacava-lhes os nervos.
Ah! se a tal moléstia de coração pudesse estar caminhando! Quem
sabe? Qual! às vezes lhe perguntava com ar de interesse: “Então, Nicota,
aquelas dores?” “Estou bem mió,
respondia ela a arrastar a voz esganiçada e chorosa. Nunca mais tive nada!”
Ele viúvo, que vidão! Tudo se havia de transformar, desligado
daquela pesada poita. Montara casa rica, cheia de trastes dourados e numerosas
criadagem, alguns até franceses. E não é que a Nicota se levantava quase de
madrugada, como nos tempos de amanuense da secretaria de polícia, em que tinha
de ir acender fogo e preparar café?
Que estúpida, afinal!
E não ter ânimo de largá-la de vez em algum pasto de Minas ou
Goiás! Não se tinha em conta de nenhum bárbaro, sem piedade ou canalha
refinado. E que dirão depois?
Só mesmo a morte. Nem podia tardar; tinha ela vivido quanto bastava.
Estavam casados, já uns 16 anos. Na tal festa da roça (maldita festa, sua
desgraça) contava 20 feitos. Ora, 20 com 16, são 36; a sua idade, dele, vejam
só. Que loucura, que asneira aquele casamento! Nem um vintém de dote, nem
olhos, nem cintura, nada, nada, um pau seco! E isso era a mulher de um
capitalista!
Por esse tempo sofreu Amaro Esteves um desgosto não pequeno; a notícia da morte,
em Caxambu, do Pantaleão, seu bom amigo de pagodeiras. O homem, sem saber,
padecia do coração; foi às águas, abusou delas e bumba! botou-se de repente
para o outro mundo! Ora, o Pantaleão, tão belo, moço, alegre e divertido,
morrer assim aos 32 anos, quando tinha tanto que gozar nesta vida!
Mas que perigo as tais águas! Qualquer coisa nos pulmões ou
coração e toca a fugir. Nada de facilitar. Custa, às vezes, tão pouco revirar
de uma feita os olhos!
Por esse tempo, começara também o nosso Amaro o namoro com a
Baronesa da Silva Velho, no lírico; uma viúva quase quarentona, toda faceira,
um peixão em todo o caso. Chegarão as coisas a dar na vista de todos. “Ah,
senhor manganão, lhe dissera o Santos Alves, o corretor, lembre-se de que é
casado. “Diabo, ter de lembrar-se logo disso!
Um pobre coitado, um pé rapado poucos anos antes, metido agora em
derriço, escandaloso com uma senhora do high-life,
uma titular! Tivesse a sua liberdade e jogava-se a seus pés, pedindo-lhe
humildemente a mão de esposa.
Mas o inferno de Nicota! Que trambolho...
Não, aquilo, não podia continuar assim, indefinidamente, até o
demo dar com o basta!
E a ideia de Caxambu não o deixava um instante, não lhe saía mais
da cabeça, à toda a hora do dia e da noite, principalmente à noite, lá pela
madrugada, durante longas insônias.
Foi afinal consultar o Dr. Maria Meireles, um médico
formado de fresco, seu vizinho, muito mocinho; indagou se uma estação de
Caxambu não conviria à mulher. Mostrava pouco apetite, supunha-a doente do
estômago e fígado. Caxambu? Ótimo, excelente! Não podia haver coisa melhor.
Aí, meio conturbado, falou em pontadas do coração, receios de
estar esse órgão afetado.
Então convinha examinar, auscultar. Mas não, coração que dói é
como cão que ladra. Ligavam-se os incômodos uns aos outros, e Caxambu daria
conta de tudo. Pagou generosamente e saiu da consulta todo alegre, exultante quase.
Estava salva a sua responsabilidade. Cobria-o a autoridade daquele
profissional, que tinha obrigação de saber o seu ofício.
Quanto a ele, nada ocultara; fora até bem claro, pusera os pontos nos ii. Podia
lavar as mãos pelo que desse e viesse.
Chegou a se ter em conta de marido exemplar. Afinal, buscava
solícito a saúde da mulher, sua companheira de tantos anos. Com certeza,
Caxambu lhe faria um bem enorme.
E a pensar em tudo isso, na mais singular amalgama, em que via
combinada a vantagem de ambos, divisava futuro todo cor de rosa.
Aliás, com a breca, ainda quando a opinião do Dr. Meireles não o
desculpasse bastante aos próprios olhos, absolviam-no plenamente as teorias
modernas. Tinha o direito, como homem de resolução, de quebrar com coragem os
obstáculos que lhe impediam os passos.
Parafusou, parafusou e, afinal, partiu com a mulher para Caxambu.
E não é que as águas começaram a fazer sensível benefício à Nicota?
Chegou até a engordar, fato que nunca lhe sucedera. Bom, a ele, é que as coisa
saíam às avessas. Viera para um fim e o contrário é que se dava. Forte caipora!
E nos seus íntimos frenesis sentia ímpetos de esganar a mulher, ao
vê-la dormir com os beiços cada vez mais bico de chocolateira. Que cara, que
pele amarelada e por cima ainda cheia de sardas! Metia nojo.
Não havia remédio; era resinar-se. Tinha que carregar aquela cruz
até ao último dia da vida, seu destino.
Certo dia, porém, à mesa do jantar, Nicota ergueu-se de repente,
levou a mão ao peito, soltou um grito abafado de angústia e tombou no chão,
redondamente morta.
Causou o caso no hotel imenso alarma, correrias, quedas, desmaios,
um horror!
Desfez-se ele num pranto sem fim, consolado pelos amigos de
ocasião. “Tivesse Paciência, a sorte de todos, D. Nicota fora feliz até na morte.”
“Com efeito, mas era tão bôa, companheira de tantos anos, assim de repente,
agravante à sua dor.” E mais isto e mais aquilo.
E, não cessou de chorar e lamentar-se, ora mui leal e
convencidamente, ora por simples comédia, até à volta do cemitério de Baependi,
pois nesse tempo Caxambu não Possuía ainda terreno para enterrar os seus
mortos, ou hóspedes, ou moradores do lugar.
Essa volta de Baependi!... A tarde estava tão linda e serena, o
céu tão puro e risonho, a paisagem toda tão grata, iluminada pelos últimos
raios do poente em fogo!
Amaro Esteves sentiu-se outro, o peito desafogado e dos lábios
entreabertos deixou escapar expressivo e misterioso Enfim!
E sorrio-se ao recordar-se da Baronesa da Silva Velho. Fá-la-ia
Viscondessa, não havia dúvida.
Recolheu-se, ao chegar, a um aposento qualquer, deitou-se cedo e
dormiu largo e tranquilo sono.
De madrugada acordou assombrado, tiritando de horror.
Clamor imenso, sem nome, indizível, enchia aquele quartinho de
hotel; mil clarins de Jericó, trompas infernais, repercussões medonhas, ecos
terríficos, tudo dominado por uma voz pungente, um uivo de suprema agonia a
bradar: Assassino! Assassino! Assassino!
Gélido suor inundou-lhe o corpo todo e os cabelos se lhe eriçarão
no alto da cabeça...
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