Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Tomé e Joaninha viviam quase sós na sua pequena casinha, fora do bosque, tão
sós como nunca tinham vivido. O pai era coiteiro e guarda-matas, e por isso, ou
o tempo estivesse bom ou mau, passava muitos dias sem ir a casa, a guardar as
florestas e a matar a caça silvestre que era para a mesa do senhor das terras.
A mãe tinha morrido, e na choupana ninguém estava com os meninos senão a avó,
que já via mal e ouvia pouco. A avó passava todo o dia assentada ao lar, menos
quando andava coxeando pela cozinha para preparar a pobre comida para os
pequenos, ou quando dormia. De dois em dois ou de três em três dias vinha Luíza,
que morava na aldeia, trazer o leite, o pão e o que era mais necessário; mas
passavam-se semanas sem entrar um homem na choupana.
No verão pouco cuidado dava isso aos pequenos, porque
iam todos os dias à escola da aldeia, e era isso para eles um divertimento. Os
pássaros faziam-lhes companhia cantando alegres; no caminho encontravam lírios
ou morangos, que colhiam para venderem na aldeia ou para levarem ao mestre.
Passadas as horas de aula, corriam à floresta, por onde andavam de um para
outro lado com o pai, e espreitavam esquilos
e cabritinhos monteses, e já uma vez tinham visto de longe um belo veado. E
assim, lendo nos seus livros na escola ou colhendo avelãs nas matas, não sabiam
o que era aborrecimento em todo o verão.
Mas no inverno era verdadeiramente triste, porque não
podiam entrar na floresta, e tinham de estar em casa como dois ratinhos no seu
buraco. O pai era obrigado a andar por fora e levava consigo Fiel, bonito
perdigueiro, que era o companheiro único dos pequenos. Também, se o pai estava
em casa era raro que dissesse alguma coisa; assentado à lareira, dormia ou
limpava armas de caça. Em outro tempo contava a avó muitas histórias bonitas,
mas então já não contava nada, e se falava era a meia voz e só consigo.
Joaninha assentava-se ao pé da avó com uma roca pequena e fiava; mas era um
trabalho aborrecido por não haver quem conversasse. Tomé talhava em bocados de
pau figuras de cães e de lebres; mas saíam-lhe sempre mal feitas, e tantas
vezes dava golpes nos dedos que perdia a paciência e deixava a obra. O que mais
o divertia era fazer casinhas com pedras e bocados de pau que ajuntava; mas as
casas caíam com grande barulho, e a avó dizia-lhe que não tinha jeito nenhum
para aquilo. Então dizia às vezes Tomé com mau humor:
— Ora, porque não havemos nós de ser como os filhos
dos ricos, como o filho de um fidalgo que uma vez passou na aldeia, ou como os
do balio, que podem comer tudo que quiserem, ou como os filhos dos ciganos que
andam por onde querem?
Em uma tarde, perto do Natal, tudo estava calado e
triste. O azeite nos candeeiros estava quase acabado, e o caminho para a aldeia
estava tão cheio de neve que Luíza não tinha podido aparecer com as coisas precisas. Não havia com que fazer
arder o candeeiro. Por fortuna o luar era claro como o dia; mas os pequenos
tinham medo das sombras esquisitas que o luar fazia.
Joaninha chegava-se muito para a avó, e Tomé fez o
mesmo e disse à velha avó em voz alta:
— Avozinha, conte-nos hoje uma história, ainda que
seja pequenina: ainda há de saber alguma.
— Não sei nenhuma, rapaz, resmungou a velha, mesmo
nenhuma. Esqueceram-me todas.
— Só uma, avozinha; conte do anão da pedreira.
— Da pedreira, ah, sim, rapaz, espera; deixa ver se me
lembra. Onde está a grande pedreira, embaixo
no barranco era em outro tempo uma rocha forte e a prumo como um muro, de onde
nunca tinha saído nenhuma pedra, e defronte da rocha havia um pedaço de terreno
coberto de viçosa verdura: por debaixo moravam os anões; descia-se por degraus
ao pequenino castelo da rainha dos anões, e debaixo da terra era uma cidade
muito bonita. Na floresta não entravam caçadores nem cortadores de lenha nem
montantes, e nos dias de sol subiam todos os anões e assoalhavam-se no musgo
verde, e faziam banquetes e dançavam com muita alegria. Um dia começaram os
homens de fora a levantar casas na planície, e entraram na floresta e cortaram
árvores, e acarretaram grandes pedras para fora. Ficou tudo cheio da entulho de
redor do belo rochedo que ficava defronte do terreno cheio de verdura, e de
redor da cidade dos anões. Para que os homens não pudessem cortar mais pedras,
foram os anões de noite todos juntos à floresta e cortaram pedras muito grandes
e levaram-nas de rodo com toda a força até à entrada da mata. Os homens
descontentes foram à rocha e fizeram saltar as pedras em pedaços, e elas caíam com grande estrondo no
prado. Assim ficou toda arruinada a bonita cidade dos anões, e houve muitas
lágrimas e sentimento: Os anões que não tinham sido mortos, escavaram um
subterrâneo fora do bosque. Lá vivem agora, e se edificaram outra cidade é
coisa que não se sabe. Desde então tem rodado para fora muitas pedras de noite;
mas estão sempre a cair outras lá dentro, e todos os anos na noite de São Tomé,
saem eles para verem se ainda há muitas pedras no terreno, e a quem de lá tirar
nessa noite três pedras, não negam os anões coisa nenhuma que lhes seja pedida.
Assim contou a avó. Havia muito tempo que ela não
tinha falado tanto, e estava cansada. Joaninha estava cheia de medo e
chegava-se muito para ela, mas Tomé, com as faces ardentes e olhos brilhantes,
pensava na história e bem quisera saber se os anões ainda apareciam.
Então Fiel ladrou fora, e entrou o pai, cansado,
carrancudo e gelado; mesmo às escuras procurou alguma coisa que pudesse comer;
mas a velha esquecia-se dele muitas vezes, e ele teve de deitar-se com fome. No
inverno dormia a avó na alcova e Joaninha com ela, e o pai com Tomé na salinha
próxima. O pai, depois de pegar a dormir, roncava toda a noite, e não havia
nada neste mundo que o acordasse, só se fosse algum tiro dado na mata.
Nessa noite Tomé não podia dormir. Não era a primeira
vez que ele ouvia contar a história dos anões; mas nunca tinha sabido que
estavam tão perto e que ainda apareciam. Batia-lhe o coração com desejos
ansiosos, pensando que podia com as riquezas dos anões alegrar aquela miserável
solidão dos bosques. E faltavam só dois dias para o São Tomé!
Não pôde calar-se que não dissesse na manhã seguinte
ao ouvido de Joaninha:
— Joaninha, depois de amanhã, é o dia de São Tomé;
vamos tirar pedras do território dos anões.
Mas Joaninha olhou para ele com olhos espantados, e
disse:
— Ora essa! Tu não vês que é só uma história do que já
passou há mais de cem anos? E demais, eu morreria de medo se saísse de noite.
Tomé ficou entendendo que nada faria com aquela
maricas, apesar de Joaninha ser mais velha, e calou-se com o seu projeto.
Na noite de São Tomé foi o pai cedo para casa, e antes
de ter a avó apagado o candeeiro já ele dormia como uma pedra. Tomé esperou que
Joaninha também adormecesse; a avó sabia ele que não o ouviria ainda que
estivesse acordada. Não tardou muito que tudo fosse silêncio: ele não se tinha
despido, puxou o barrete de peles para as orelhas e saiu. Fiel não estava
acostumado a ver sair Tomé sozinho; e ficou muito espantado e resmungou quando
Tomé lhe pôs a mão pela cabeça.
A lua ainda brilhava clara, e no bosque havia um
silêncio de cemitério que assustava Tomé; mas tomou ânimo, e meteu-se com
passos ligeiros e firmes ao bem conhecido caminho da grande pedreira. Não se
ouvia o mais leve murmúrio quando ele entrou no barranco, e então estremeceu
vendo a rocha escavada em que mal entrava um raio da lua. Com passos trêmulos
foi andando até ao lugar onde tinha sido o território dos anões, e onde só
havia então uma grande quantidade de pedras grandes e pequenas. Com as mãos a
tremer, agarrou nas maiores que pôde levantar, e levou-as para fora.
— Quem está aí? perguntou uma voz fina, quando ele
deitava fora a última.
No único lugar que a lua alumiava no barranco estava
um homem muito pequeno vestido de verde, que era o que perguntava a Tomé:
— Quem está aí?
— Sou o Tomé do guarda-matas, disse ele muito
embaraçado, e tirando com todo o respeito o barrete.
— Que queres daqui?
— Só queria tirar pedras para que os senhores pudessem
viver aqui debaixo.
— Pouco podes fazer, disse o anão com tristeza, mas é
uma boa obra que deve ser recompensada. O que é que desejas mais?
Tomé já tinha pensado em muitas coisas, mas naquela
ocasião não lhe lembrava quase nada. Lembrou-se de um cavalo em que ele pudesse
ir à escola, de uma pipa cheia de azeite para que sempre houvesse que arder no
candeeiro, e de um saco cheio de maçãs e de nozes; mas nada disso valia o que
ele tinha feito. Por fim disse gaguejando:
— Uma saca de dinheiro.
O anão perguntou-lhe:
— Então já sabes o que isso é? Que queres fazer com o
dinheiro?
Tomé respondeu um pouco animado:
— Em lugar da nossa choupana, fazia uma casa grande,
muito grande, ainda maior que é na aldeia a casa do monteiro; e uma cavalariça
cheia de belos cavalos em que eu
pudesse correr, quando tudo estivesse cheio de neve; e comprava à Joaninha um
vestido novo, e um barril de azeite para não estarmos às escuras.
— E que mais? disse o anão sorrindo; hás de fazer uma
casa, mas não neste escuro bosque; andarás por fora da tua terra, mas para isso
não precisas de cavalo; Joaninha poderá ter o vestido novo sem ser dado por ti,
e quando quiseres ter azeite bastante, vai com a tua cestinha à pedreira onde
acharás com que faças azeite suficiente para arder no candeeiro em dois anos.
Entendo que a saca de dinheiro não te serve de nada; ainda és muito pequeno.
— Ah, disse Tomé desanimado, a nossa vida não seria
tão miserável e tão aborrecida nas grandes noites de inverno, se tivéssemos
algum bonito livro de estampas.
— Lá isso, disse o anão, é coisa que pode ter bom
remédio; vai descansado que depois da noite do Natal irei ter contigo e
cuidarei no modo de nunca mais te parecerem longas as noites de inverno.
Alegra-te, os anões sabem pagar o bem que lhes fazem.
O anão desapareceu, Tomé ficou a tremer, e foi-se
embora muito mais inquieto do que tinha saído. Sem que ninguém ouvisse, levantou
a aldrava de pau, entrou em casa, foi ao seu quarto, deitou-se, e toda a noite
sonhou com o anão. Não quis dizer nada a Joaninha, porque ele mesmo não sabia
bem o que o anão faria, apesar de esperar com ansiedade a chegada do Natal.
Chegou a noite de Natal, e não faltava alegria na
cabaninha da floresta. O pai tinha trazido da aldeia grande quantidade de maçãs
e de nozes, a avó tinha dado aos pequenos duas bonitas estampas que ainda achou na sua Bíblia, e na manhã do dia
de festa, chegou a criada da senhora do monteiro, que era madrinha de Tomé e de
Joaninha, e trouxe dois bonitos corações de pão doce, um lindo gibão novo para
Joaninha, e uma jaqueta bem forrada e quente para Tomé. O pai não saiu de casa
e cozinhou uma lebre. Havia muito tempo que eles não tinham vivido tão bem; mas
Tomé não estava tão contente como nos outros anos, porque não sabia se o melhor
ainda havia de vir.
Veio a noite e todos adormeceram, menos Tomé que se
assentou na cama vestido, e pensava no que poderia trazer-lhe o seu novo amigo
para passar o tempo enfadonho do sombrio inverno, quando ouviu bater de leve à
porta de casa. Com algum susto e temor, mas a toda a pressa saltou da cama, e
abriu ao homem pequenino vestido de verde, que não levava nada consigo senão um
vidro redondo, muito brilhante e de muitas cores.
— Leva-me ao teu quarto, disse o anão, entrando e
andando mais ligeiro do que Tomé.
Foram ao quarto de dormir em que se via tudo
claramente com a luz que o vidro dava. O que lá se via era um leito velho, uma
mesa manca com três pés, e duas cadeiras. O traste maior era uma alta e larga
caixa, metida na parede, enegrecida pelo tempo, e que muitas vezes tinha sido
um bom lugar para o jogo das escondidas. Nas costas da caixa havia um grande
buraco redondo por onde Joaninha tinha medo de espreitar porque via tudo
escuro.
Esta caixa foi o que deu mais nos olhos ao anão, que
entrou nela pela tampa meio aberta e esteve a trabalhar e a bater lá dentro
algum, tempo.
— Agora, disse ele, depois que saiu, já não haveis de
passar o tempo com aborrecimento; quando as horas parecerem muito compridas,
olhem pelo buraco redondo que está na caixa, seja de manhã ou seja de tarde,
quando estejam sós. Adeus, rapaz; Deus te dê da sua graça.
— E antes de Tomé saber o que havia de novo, já o anão
tinha saído. Tomé não entendeu bem o que tudo aquilo queria dizer, e não se
atreveu a ir logo ver à caixa. Foi deitar-se ao pé de seu pai, e pensando e
cismando se o anão falaria seriamente ou a gracejar, adormeceu.
Na manhã seguinte o pai saiu cedo, e Tomé não pôde
calar-se, e ao pé da surda avó contou baixinho à irmã toda a sua aventura, de
que ela se riu sem lhe dar crédito, mas tremendo de susto. Por fim resolveu-a a
ir de tarde com ele fazer a primeira visita à caixa, e como esperavam alguma
coisa, não souberam nesse dia o que era aborrecimento.
À noite, ainda o pai não tinha entrado e a avó
cabeceava com sono, quando ambos se meteram na caixa cheios de ansiedade. Tomé,
que era mais animoso, foi o primeiro que olhou pelo buraco onde brilhava o
vidro do anão. Ah! que resplendor lhe veio bater nos olhos! Puxou logo Joaninha
para si, porque a abertura era bastante larga para poderem ver ambos ao mesmo
tempo. Eram maravilhas o que eles viam, e mal se podiam conter para não darem
altos gritos de espanto. Viam uma grande sala, muito grande, alumiada de um
modo majestoso por lustres dourados, com muitos centos de velas de cores. E uma mesa estava carregada com as coisas
mais maravilhosas: soldados, de pé e de cavalo, regimentos inteiros com peças e
armas, e uma cavalariça cheia de cavalos pequenos de todas as raças, e livros
com ricas pinturas, e uma grande quantidade de objetos de brinquedo, que eles
nunca tinham visto, e pequenas esporas de prata, e uma espingarda e espada, e
um soberbo vestuário de veludo bordado a ouro. Todas estas coisas magníficas
estavam dispostas sobre a mesa na melhor ordem, e ao pé havia açafatinhos e
pratos com os doces mais finos.
— Ah, de quem será isto! disseram os dois irmãos
suspirando.
A porta abriu-se, e entrou um rapaz esguio e pálido,
que teria dez anos, e atrás dele muitas senhoras e homens da nobreza
vistosamente vestidos. Tomé e Joaninha pensavam que aquelas riquezas deviam
pertencer a muitos meninos, e olhavam para todos os que iam entrando na sala;
mas não havia outro menino senão o que entrou primeiro, e que passou por todas
aquelas coisas tão ricas sem fazer muito caso delas, enquanto que Tomé e Joaninha pregavam no
vidro os olhos afogueados e parecia que queriam devorar todas aquelas
maravilhas.
— Rapazes, onde estais vós? gritou fora a voz da avó.
Voltaram a cabeça assustados, e viram tudo às escuras,
como era nos outros dias, e a velha caixa estava sem luz como se nada tivesse
acontecido. Aos dois irmãos ainda parecia tudo um sonho quando se assentaram ao
pé do candeeiro no quarto velho e defumado. Nessa noite chegaram a sentir quase
alegria por a avó ser surda, porque podiam falar à vontade nas maravilhas que
viram, e a cada um lembrava alguma coisa muito
bonita em que o outro não tinha reparado.
— Ai, diziam eles suspirando, que boas coisas tem
aquele menino fidalgo! Se nós também tivéssemos coisas assim!
E ainda diziam o mesmo quando o sono lhes fechou os
olhos, para ainda lhes mostrar em sonho tanta grandeza.
Antes de ser bem dia, foi Joaninha à sala da caixa. O
pai não estava em casa, e por isso podiam à vontade ir olhar pelo vidro
maravilhoso. Como eles desejavam ver ainda uma vez a bela sala de ontem! Agora
era à luz clara do dia, mas, era quase tão bonito como com os centos de luzes
de cor: ainda havia todas as coisas ricas de ontem, mas não estavam em tão boa
ordem, o menino que tinham visto estava vestido de seda deitado sobre o sofá,
com alguns dos bonitos livros espalhados de redor dele, e parecia estar muito
aborrecido.
Quando Tomé e Joaninha se mostravam admirados de que
pudesse haver alguém que não estivesse contente com tão maravilhosas coisas,
abriu-se uma porta da sala, e entrou um senhor de idade. Os meninos ouviram
falar como muito ao longe, mas entendiam bem o que se dizia. O velho perguntou:
— Já está enfastiado, meu caro príncipe, de tantas coisas
que fariam felizes outros meninos?
— Outros meninos! disse o príncipe; os outros meninos
não estão sós, e eu já vi todas as minhas coisas que me deram.
— Mas vossa alteza bem sabe que se lhe dá companhia
quando a quer ter.
— Que companhia! Vem um, e diz: “Bons dias, príncipe”;
e diz outro: “Que tem príncipe?”; e brincam com
o que eu tenho e conversam e riem uns com os outros; e quando lhes chega o
aborrecimento, vão-se embora e eu fico só. Quem me dera sair como saem os
outros meninos!
— Mas se vossa alteza quer, pode ir passear ou viajar
— Ah, sim, ir passear na sua companhia, ou andar em
carro ou a cavalo acompanhado por camaristas. Que grande alegria! o que quisera
era ir só e para onde me parecesse. Antes queria ser filho de ciganos do que
príncipe.
Antes que Tomé e Joaninha pudessem ouvir mais nada,
chamou por eles a avó. Saíram da caixa e o buraco ficou às escuras.
Muito tinham os dois irmãos que dizer um ao outro! O
que eles não podiam entender era porque estava o príncipe tão impertinente.
— Ah, como nós estaríamos contentes com aquelas coisas
tão bonitas! dizia Tomé suspirando.
— Sim, mas nós não estamos sós, dizia Joaninha.
— É verdade que os meninos ricos quando não estão sós,
também estão contentes, dizia Tomé para si.
— Havemos de ver, dizia Joaninha, se o príncipe ainda
lá está hoje à noite.
Com grande alegria passaram eles todo o dia a
conversar, e a ansiedade não podia ser maior quando outra vez olharam pelo
vidro.
Já não era a sala, mas sim um bosque, quase como aquele em que eles moravam, e havia no
bosque um grande pedaço de terreno sem árvores onde ardia uma fogueira; em que
estava estendida uma bela peça de caça brava, e de redor da fogueira muita
gente esfarrapada e enfarruscada, e alguns tocadores de instrumentos que
tocavam uma música alegre, e uma multidão de crianças que dançavam e saltavam
com uma alegria de selvagens.
— Ah, isto é muito divertido, dizia Tomé.
Mas Joaninha abanava a cabeça porque não lhe agradava
o que via. Um rapaz daqueles ciganos chegou com um grande saco cheio de frutas
secas, e todos os pequenos o receberam com gritos de alegria, e ele despejou o
saco no chão. Todos se atiraram às frutas secas como quem tinha fome e comeram
a bom comer. Depois começaram outra vez a saltar e a cantar desentoados, e Tomé
começava a sentir desejos de também ir saltar com eles, quando o pai que
chegava de fora os chamou para o quarto.
Toda a noite teve Tomé os ciganos na imaginação, de
maneira que deu cuidado a Joaninha que pensava que Tomé podia muito bem sair de
casa de noite e fugir para os ciganos. Mesmo a dormir cantava Tomé o que tinha
ouvido tocar aos ciganos.
Muito cedo, antes de acordar o pai, foi Tomé olhar
pelo vidro, sem esperar por Joaninha, que só passado algum tempo é que foi ter
com ele. O que viram era ainda o verde prado do bosque, mas já não havia festa.
Era de manhã, a fogueira estava apagada, e os ciganos corriam para todos os
lados muito aflitos e desvairados. Chegaram soldados e todo aquele barulho e
desordem acabou pela prisão dos ciganos que eram acusados de roubos. Com agudos
gritos viram os pequenos dos ciganos que os soldados levavam à força seus pais e suas mães, e que outros
soldados os levavam a eles para outra parte. Tomé e Joaninha não tiveram ânimo
para ver mais e desviaram os olhos do vidro. Joaninha disse depois a Tomé:
— Ainda querias ser filho de cigano para ter aquela
vida livre que eles tem?
— É verdade, disse Tomé desanimado, quem rouba não
pode ter uma vida livre.
— Os meninos ricos, tornou Joaninha, decerto passariam
melhor vida, se não vivessem tão sozinhos como o príncipe.
À noite não puderam ir para a caixa das vistas
maravilhosas porque a avó nunca lhes deu tempo de saírem da cozinha, e o pai
foi para casa muito cedo. Por isso ainda mais desejavam que chegasse a ocasião
de poderem lá tornar.
Quando essa ocasião chegou, viram um quarto muito
bonito, não tão admirável como a sala do príncipe, mas muito mais bonito do que
o quarto da madrinha, com alcatifas de várias cores e belos quadros nas
paredes. O quarto estava cheio de lindas coisas para brincarem meninos e
meninas. Um bonito quarto de bonecas, com senhoras e senhores muito bem
vestidos, com sofás, cadeiras e caminhas pequenas, e uma cozinha cheia de
louças brancas, panelas e pratos, muito mais do que havia na cozinha da avó;
bonecas pequenas e grandes, quase da altura de Joaninha, berços e cadeirinhas;
e de outro lado um castelo com soldados, e uma loja muito enfeitada com uvas secas, amêndoas, confeitos e
figos, e um carro com baús e sacos, e lindos livros de estampas; em uma
palavra, eram quase tantas coisas como tinha o príncipe. Tomé e Joaninha não
cabiam em si de contentamento e admiração.
Então entraram no quarto os donos de todas aquelas
riquezas, que eram duas meninas e um menino. Parecia que vinham de passear. As
meninas correram para as bonecas e o menino para a loja. Uma foi com um
dinheiro pequenino e brilhante comprar doces ao irmão, a outra começou a vestir
as suas bonecas de uma caixinha cheia de ricos vestidos e chapeuzinhos.
Ah, como ficaram tristes Tomé e Joaninha quando a avó
os chamou para a ceia, e como sonhavam, a dormir e acordados, com aquelas
bonitas coisas, e como correram na manhã seguinte à caixa para continuarem a
ver como eram felizes os três irmãos!
Mas já não era tudo tão bonito no quarto; as bonecas
estavam no chão, e uma das meninas estava a chorar e a gritar; tinha deixado de
noite as bonecas no chão e a porta do quarto aberta; a gata tinha entrado,
tinha brincado com a boneca, e rasgou-lhe os vestidos de seda e estragou-lhe as
cores.
— A culpa é tua, gritou um dos meninos, porque não
puseste as coisas em ordem.
— Eu é que não tive culpa nenhuma, gritou a outra.
E nisto correram aos empurrões para a loja, e entraram
em desordem por causa de um pão de açúcar que as meninas queriam ter na sua
cozinha e o irmão não queria que se tirasse da loja. A questionar e a gritar
entraram as meninas na loja, e muitos dos vidros do doce foram deitados ao
chão: o menino cheio de cólera correu à cozinha e deitou tudo ao chão, e quebrou a bonita louça que lá havia. Então
foram tantos os gritos e queixas que Tomé e Joaninha não quiseram ver mais.
Tardou muito tempo que eles pudessem tornar a ver pelo
vidro. Quando chegou a ocasião, o que viram foi um lindo quarto e uma mesa com
quinquilharias, bolos doces, uma bela torta, confeitos e pasteis. Estavam lá
duas meninas, e parecia que era o dia dos anos de uma, que era a que tinha
recebido todas aquelas coisas. Não ralhavam nem se zangavam uma com a outra
como tinham feito os outros meninos, mas também não se podia dizer que tinham
boa saúde e que estavam satisfeitas. Dizia uma:
— Que te parece, Ema, vamos comer um bocadinho da tua
torta?
— Eu não, Sofia; antes queria maçãs.
— Maçãs! pois tu não sabes que o senhor doutor proibiu
que comêssemos fruta?
— Ah! também a torta me faz mal, e a avó foi que ma mandou;
e os doces fazem-me doer os dentes e foram mandados pela tia.
— Então vamos brincar para o jardim, tornou Sofia.
— Pois sim, vamos; e levo o meu chapéu novo. Iam para
sair quando apareceu a mãe e perguntou:
— As meninas onde querem ir?
— Vamos só um bocadinho para o jardim, manhã.
— Deus nos livre disso: no jardim está um vento muito
frio e a terra muito úmida. Nada, nada. Ema viria de lá com dores de dentes e
Sofia com a tosse. Deixem-se estar aqui. Eu vou levar daqui para fora todas
estas coisas, porque já comeram muito, e Sofia devia agora tomar o seu remédio.
A menina Sofia fez uma careta de enjoo quando ouviu
falar no remédio. Joaninha não quis esperar até que ele chegasse e deixaram tristes
o vidro e a caixa.
Não faltava a Tomé e a Joaninha que dizer e em que
pensar a respeito do que tinham visto.
— Diz-me cá, Tomé, perguntou Joaninha, parece-te que
são infelizes todos os meninos que vivem no mundo?
— Não, acudiu logo Tomé, eu acho que não pode ser. Se
o príncipe não vivesse tão só...
— Isso sim; e se os filhos dos ciganos tivessem bons
pais; e se os três irmãos não tivessem tão mau gênio; e se as meninas não
fossem doentes... Olha, quem é bom e de bom gênio e tem saúde, vive contente.
— Mas quem é pobre e só como nós? perguntou Tomé.
E Joaninha não soube o que havia de responder-lhe.
À noite a avó adormeceu cedo, mas eles mal se atreviam
a ir ao vidro receando que acabasse por coisas tristes. Contudo sempre foram. Desta
vez chegaram a gritar ambos ao mesmo tempo em voz um pouco alta: Isto é o nosso
quarto e nós nele!
E na verdade assim era, mas o quarto era mais alumiado
e mais alegre, estava com mais ordem e mais asseio e limpeza, as vidraças sujas
estavam bem lavadas, na janela havia em vasos um par de plantazinhas da
floresta, como Joaninha as conhecia bem, de umas que nasciam mesmo com a neve;
em uma gaiola de vimes, como Tomé já tinha visto fazer aos rapazes da aldeia,
saltava um passarinho, que parecia estar melhor naquele quarto agasalhado do
que estaria livre ao ar frio, porque cantava e trinava que era um gosto
ouvi-lo. E a avó assentou-se à roda de fiar e Joaninha ao pé dela e Tomé a
pequena distância e não estavam aborrecidos e tristes como era dantes; e
cantavam uma bonita canção que já tinham aprendido na escola e que nunca se
tinham lembrado de cantar em casa. Cantavam tão suavemente que a avó, que
percebia alguma coisa, piscava os olhos de contentamento. Por fim quando
acabaram de cantar, o Tomé que eles viam lá dentro pegou em um grande livro que
já há muito tempo estava cheio de pó no sobrecéu da cama da avó, desde que ela
nem com as lunetas podia ler. Tomé e Joaninha olhavam espantados, porque era
verdade que sabiam ler, mas ler em casa era coisa em que nunca tinham pensado. O
Tomé do vidro começou a ler em voz alta de maneira que a avó o ouvia; ao
princípio não foi tão correntemente como o verdadeiro Tomé teria lido, mas não
tardou que fosse melhor. Era a história de São José, que os meninos já tinham
ouvido, mas já há muito tempo, e agora parecia-lhe tão cheia de novidade e de
beleza que ao Tomé do vidro escutavam com toda a atenção, até que se ouviu um latido de cão. Era
também exatamente como o latir do Fiel.
E a Joaninha que se via lá dentro levantou-se, pôs um
par de sapatos velhos ao calor do lume e dependurou também ao calor do lar uma
jaqueta velha do pai, e quando o pai entrou com Fiel, tirou-lhe Tomé a jaqueta
molhada e pegou-lhe na espingarda, e Joaninha deu-lhe os sapatos quentes e a
jaqueta bem enxuta.
Tomé e Joaninha olhavam pasmados para aqueles cuidados
com que trabalhavam as suas imagens dentro do vidro. Até então tinham visto o
pai entrar e sair sem ao menos pensarem em cuidar dele. O pai que eles viam
pelo vidro estava muito admirado daqueles cuidados de seus filhos e mostrava-se
muito mais meigo do que o verdadeiro pai costumava ser. Ele assentou-se à mesa,
e Joaninha tinha uma ceia bem quente no lar, coisa que nunca lhe tinha
lembrado, porque também a avó nunca pensava nisso, e o pai batia-lhes no ombro,
o que ele nunca tinha feito, e começou a falar da mãe que Deus tinha levado
para si, e que também cuidava muito dele; e tudo isso encantava tanto Joaninha
e Tomé que não tinham vontade de tirar os olhos do vidro: mas a avó chamou por
eles para se deitarem.
Na manhã seguinte começaram Tomé e Joaninha a viver
uma vida muito diferente. Joaninha limpava e
espanava, punha tudo em ordem e lavava a janela, de maneira que a avó, a quem
aquilo parecia um sonho, perguntava: Então isto agora é uma igreja?— Como ainda
não era tempo de flores, Tomé levou do bosque alguns ramos verdes de faia, com
os quais adornou muito bem a sala. Depois ajudaram de boa vontade a avó a fazer
o almoço, coisa que nunca tinham feito, e quando o comeram soube-lhes melhor do
que nos outros dias. Depois assentou-se Joaninha com a roca ao pé da avó, e
Tomé subiu a uma cadeira e abriu a Bíblia, que estava cheia de pó como a que
viram pelo vidro, e começou a soletrar. A avó escutou com muita atenção, e
quando ele começou a ler correntemente e ela ouviu pela primeira vez da boca de
seu neto a palavra de Deus, o seu coração cheio de anos sentiu-se mais novo, e
ela ergueu as mãos ao céu, e não tirava de Tomé os seus olhos arrasados de
lágrimas de alegria. Tomé ficou muito contente vendo o efeito da sua leitura e
lia cada vez com mais fogo, e Joaninha escutava e fiava e não reparava como a
manhã se passava depressa, até que a avó, que tinha o relógio na cabeça, se
levantou para cozer as batatas. Então levantou-se Tomé e disse: Espere,
avozinha, que eu ajudo-a.
Foram ambos os netos tirar água ao poço e a avó não
cabia em si de alegria. Nunca tinham comido tão boas batatas. De tarde
lembrou-lhes cantar, e começaram baixinho, e depois foram subindo a voz, e a
avó escutava ao princípio como se sonhasse, e sorria com um contentamento como
há muitos anos não tinha tido.
Como passaram satisfeitos até que o pai chegou! E como
ele se mostrou admirado daqueles cuidados que via nos filhos e que nunca mais
vira desde que sua mulher fora
para a sepultura. Aqueceu-se com a roupa que eles lhe deram, e encantado com
aquelas meiguices dos meninos começou a contar muitas coisas da sua querida
Margarida que estava no céu. A avó escutava com grande alegria e de tempos a
tempos dizia alguma coisa. Antes de irem deitar-se disse ela ao pai: Tu deves
ver como Tomé lê bem.
E foi buscar o seu velho livro de orações da noite. O
pai, que já há muitos anos não se lembrava de orações, escutou com viva
alegria, e a voz de Tomé levava-lhe as santas palavras ao coração, que se abria
para Deus. Quando Tomé fechou o livro, ergueu o pai as mãos ao céu e rezou.
Tomé e Joaninha nunca dormiram um sono tão doce como
nessa noite.
Depois a mocidade foi passando, mas as boas obras
davam alegria ao coração, o bom anjo da oração tinha entrado em casa, e fazia
daquela sossegada choupaninha um templo da paz e do amor.
Os meninos não tinham desejos de tornar a olhar para o
espelho do anão, porque entendiam que não lhes podia mostrar coisas melhores do
que aquela sua vida caseira, principalmente quando veio a branda primavera, e
eles pensaram como haviam de dar alegria à sua casinha no próximo inverno.
Disseram-me que Tomé, passados anos, quando o pai e a
avó já eram mortos, tinham corrido algumas terras, e veio a ser um hábil e
robusto carpinteiro que ajudou a construir muito bonitas casas e fez para si
uma casinha muito aprazível. Joaninha tinha ido para casa do padrinho, e veio a
ser uma menina muito prendada e depois uma esperta aldeã e boa mãe de filhos
saudáveis.
Os dois irmãos viveram sempre contentes com a sorte
que Deus lhes deu, e quando viam de longe casas ricas, ou ricos vestidos ou
custosas gulosices, diziam consigo: Aquilo talvez seja de um pobre príncipe, ou
de algum menino de mau gênio ou de alguma Ema doente.
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