10/07/2017

O Desvalido (Conto), de Delminda Silveira


O Desvalido - Bem aventurados os misericordiosos

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Eu estava triste...

Tentara escrever, mas parecia-me haver esgotado os assuntos todos.

Não tinha inspiração; pensava mesmo não mais poder encontrar no Céu, no mar ou sobre a terra, coisa alguma que me comovesse, me interessasse e prendesse meu espírito tomado de displicência.

Eis que o vi pela estrada...

— O desvalido era um espectro vivo!

Magro, cadavérico, parecia que naquele mísero corpo nem mais um fio de sangue circulava já, tal era a espantosa cor de cera que, como um véu de morte, lhe cobria o rosto e as mãos descarnadas!

Arrimado a um bordão, caminhava lento, de instante a instante parando, vencido pela fraqueza que o fazia acocorar-se no chão abrasado pelo sol.

E o mísero chamava os transeuntes estendendo-lhes as esqueléticas mãos, falando com voz surda e entrecortada...

Um homem passava; o desventurado acenou-lhe.

O caridoso transeunte chegou-se a ele, e, complacente, escutou-lhe a cansada narrativa de amargurados revezes.

O infeliz pedia um meio de condução, sem o que, desfalecido, sucumbiria, em meio ao caminho.

O coração bem formado daquele que a Providência escolhera para a prática de uma obra misericórdia, comoveu-se, e, esquecendo por um momento seus negócios, com outros companheiros, guiados pela virtude celeste, foram em demanda do necessário em circunstâncias tais.

Os curiosos rodeavam já então o desvalido a quem o Anjo dos infelizes não abandonava, pois o óbolo da caridade ia generosamente caindo das mãos do povo na desfalecida mão, que, entretanto, não se estendera a pedir...

É que a alma cristã é generosa e compassiva!

Uma canoa tripulada por dois homens benfazejos vinha receber o infeliz. O primeiro benfeitor, auxiliado por outro de coração compadecido, ajudou o enfermo a levantar-se, conduzindo-o até a embarcação onde o acomodaram.

E a canoa vogou, abrindo, como um grande leque, a esteira na águas serenas da formosa baia que retratava o Céu azul da minha terra como num enorme espelho de cristal emoldurado de esmeraldas.

O desvalido ia, o quanto possível, consolado, pois levava no alquebrado peito a fé e a esperança companheiras inseparáveis da caridade, cujo perfume celestial, ficando na alma do benfeitor, inundava-a da mais pura, nobre e santa satisfação: — a de haver praticado o bem...

Oh! Pareceu-me ver, naquele momento, o Céu abrir-se e Deus abençoando uma vez as almas benfazejas, enquanto os anjos alegres registravam no livro de ouro das Boas Obras o nome daqueles que vinham de exercer a doce e sublime Caridade!

Ante aquela grandiosa cena de dor e comiseração, a minha alma comoveu-se, e, entre duas lágrimas eu murmurei:

Bem aventurados os misericordiosos!

O pequenito Leôncio morrera.

Dois anos apenas!...

Passados oito dias foram visitar a desventurada mãe.

Carmem vestia a cor das violetas, e, como a flor mimosa pendida à pálida fronte, chorava.

Palavras de consolação, de conforto, nada! Todo o remédio aplicado àquela ferida recente mais lhe avivava a grande dor, mais e mais fazia sangrar o materno coração.

Levantei-me, e, passeando pela sala, procurava uma ideia qualquer com que a distraísse.

Sobre uma das consolas de mármore havia uma grande quantidade de quinquilharias galantes; entre elas sobressaía um pequeno coração de veludo escalarte, artisticamente bordado a seda com uma coroazinha de amores e violetas, cercando em mimoso relevo de ouro a doce palavra Amor.

Tomei o delicado trabalho e chegando-me a triste amiga, disse:

— Que gracioso coração! Será a cópia do teu, tão formoso e sempre tão cheio de amor, Cármen?

E foste tu que lhe bordaste essa doce palavra?...

Cármen levantou para mim o terno olhar magoado e, uma explosão de lágrimas e soluços mais forte do que antes, rebentou-lhe da alma angustiada.

Atônita, buscando acalmá-la, depus-lhe no regaço o mimoso coração de veludo escarlate que ela, num arrebatamento inexplicável, tomou, cobrindo-o de fervorosos beijos.

— Sabes, me disse afim, por entre soluços e lágrimas, sabes com que fios de ouro bordei essa doce palavra que me enche o coração?...

Ele tinha os cabelos lindos... macios... longos... louros, muito louros caindo em graciosos anéis de ouro; um só anel, um só! daquele ouro precioso bastou-me para formar a doce palavra Amor!

Os fios dourados daqueles cabelos louros eram o esplendor do meu querido, e os lindos raios daquele esplendor formoso vestiam de carícias o meu pobre coração gelado pelo frio de uma eterna viuvez; então, as saudades podiam aqui abrir mais formosas, mais vividas como nos dias do meu passado feliz! Porém agora... E chorava, chorava pendida a pálida fronte, qual violeta mimosa a derramar na terra orvalhos que lhe vem do Céu!

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