O Banqueiro Anarquista
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Tínhamos acabado de jantar.
Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante e açambarcador
notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que fora amortecendo, jazia
morta entra nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me de uma ideia que me
passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
— É verdade: disseram-me há dias
que você em tempos foi anarquista...
— Fui, não: fui e sou. Não mudei
a esse respeito. Sou anarquista.
— Essa é boa! você anarquista! Em
que é que você é anarquista?... Só se você dá à palavra qualquer sentido
diferente...
— Do vulgar? Não; não dou.
Emprego a palavra no sentido vulgar.
— Quer você dizer, então, que é
anarquista exatamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das
organizações operárias? Então entre você e esses tipos da bomba e dos
sindicatos não há diferença nenhuma?
— Diferença, diferença, há...
Evidentemente que há diferença. Mas não é a que você julga. Você duvida talvez
que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
— Ah, já percebo! Você, quanto às
teorias, é anarquista; quanto à prática...
— Quanto à prática sou tão
anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais,
anarquista que esses tipos que você citou. Toda a minha vida o mostra.
— Hein?!
— Toda a minha vida o mostra,
filho. Você é que nunca deu a esta coisas uma atenção lúcida. Por isso lhe
parece que estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando consigo.
— Ó homem, eu não percebo nada!...
A não ser... a não ser que você julgue a sua vida dissolvente e antissocial e
dê esse sentido ao anarquismo...
— Já lhe disse que não — isto é,
já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar.
— Está bem... Continuo sem
perceber... Ó homem, você quer-me dizer que não há diferença entre as suas
teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida — a prática da sua
vida como ela é agora? Você quer que eu acredite que você tem uma vida
exatamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
— Não; não é isso. O que eu quero
dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há
divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida
como a dos tipos dos sindicatos e das bombas — isso é verdade. Mas é a vida
deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim —
sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se você quiser —, em
mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. Você comparou-me
a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente
deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas
só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e
estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o
verdadeiro anarquista. Eles — os dos sindicatos e das bombas (eu também lá
estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo) — eles são o lixo
do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária.
— Essa nem ao diabo a ouviram!
Isso é espantoso! Mas como concilia você a sua vida — quero dizer a sua vida
bancária e comercial — coma as teorias anarquistas? Como o concilia você, se
diz que por teoria anarquista entende exatamente o que os anarquistas vulgares
entendem? E você, ainda por cima, me diz que é diferente deles por ser mais
anarquista do que eles — não é verdade?
— Exatamente.
— Não percebo nada.
— Mas você tem empenho em
perceber?
— Todo o empenho.
Ele tirou da boca o charuto, que
se apagara; reacendeu-o lentamente; tirou o fósforo que se extinguia; depô-lo
ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um momento abaixada, disse:
— Ouça. Eu nasci do povo e na
classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a
condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência
naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons
naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar.
“Fui operário, trabalhei, vivi
uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da gente é naquele meio. Não
digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia tê-la
passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor,
nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.”
“Fui um operário vulgar, em suma;
como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos
possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia
coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande
revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim.
Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era;
mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha
feito todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais
para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos — vinte e um o máximo — que
foi quando me tornei anarquista.”
Parou um momento. Voltou-se um
pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco.
— Fui sempre mais ou menos
lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista
consciente e convicto — o anarquista consciente e convicto que hoje sou.
— E a teoria, que você tem hoje,
é a mesma que tinha nessa altura?
— A mesma. A teoria anarquista, a
verdadeira teoria, é só uma. Tenho a que sempre tive, desde que me tornei
anarquista. Você já vai ver... Ia eu dizendo que, como era lúcido por natureza,
me tornei anarquista consciente. Ora o que é um anarquista? É um revoltado
contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente — no fundo é só isto. E
de aí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções sociais que tornam
essa desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora é o caminho
psicológico, isto é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos à parte
teórica do assunto. Por agora, compreenda você bem qual seria a revolta de um
tipo inteligente nas minhas circunstâncias. O que é que ele vê pelo mundo? Um
nasce filho de um milionário, protegido desde o berço contra aqueles
infortúnios — e não são poucos — que o dinheiro pode evitar ou atenuar; outro
nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a mais numa família onde as
bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um nasce conde ou marquês, e
tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o que fizer; outro nasce
assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos
tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar, viajar,
instruir-se — tornar-se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que
naturalmente o são mais. E assim por aí adiante, e em tudo...
“As injustiças da Natureza, vá:
não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções — essas, por
que não evitá-las? Aceito — não tenho mesmo outro remédio — que um homem seja
superior a mim por o que a Natureza lhe deu — o talento, a força, a energia;
não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças, com que não saiu
do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram por bambúrrio logo que ele apareceu
cá fora — a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc. Foi da revolta
que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de
então — o anarquismo que, já lhe disse, mantenho hoje sem alteração nenhuma.”
Parou outra vez um momento, como
a pensar como prosseguiria. Fumou e soprou o fumo lentamente, para o lado
oposto ao meu. Voltou-se, e ia a prosseguir. Eu, porém, interrompi-o.
— Uma pergunta, por curiosidade...
Por que é que você se tornou propriamente anarquista? Você podia ter-se tornado
socialista, ou qualquer outra coisa avançada que não fosse tão longe. Tudo isso
estava dentro da sua revolta... Deduzo do que você disse que por anarquismo você
entende (e acho que está bem como definição do anarquismo) a revolta contra
todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a abolição de
todas...
— Isso mesmo.
— Por que escolheu você essa fórmula
extrema e não se decidiu por qualquer das outras... das intermédias?...
— Eu lhe digo. Eu meditei tudo
isso. É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias. Escolhi a
teoria anarquista — a teoria extrema, como você muito bem diz — pelas razões
que vou dizer em duas palavras.
Fitou um momento coisa nenhuma.
Depois voltou-se para mim.
— O mal verdadeiro, o único mal,
são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais
— tudo, desce a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. A gente nasce
homem ou mulher — quero dizer, nasce para ser, em adulto, homem ou mulher; não
nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre,
como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês.
É todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas ficções sociais
são más por quê? Porque são ficções, porque não são naturais. Tão mau é o
dinheiro como o Estado, a constituição de família como as religiões. Se houvesse
outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também seriam
ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais. Ora
qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista, completamente, é uma
ficção também. Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa
inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em
vez de outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma
perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma. Se achamos
injustas as ficções sociais, porque esmagam e oprimem o que é natural no homem,
para que empregar o nosso esforço em substituir-lhes outras ficções, se o
podemos empregar para as destruir todas?
“Isto parece-me que é concludente.
Mas suponhamos que o não é; suponhamos que nos objetam que isto tudo estará
muito certo, mas que o sistema anarquista não é realizável na prática. Vamos lá
a examinar essa parte do problema.”
“Por que é que o sistema
anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os avançados, do
princípio, não só de que o atual sistema é injusto, mas de que há vantagem,
porque há injustiça, em substituí-lo por outro mais justo. Se não pensamos
assim, não somos avançados, mas burgueses. Ora de onde vem este critério de
justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às ficções sociais e às
mentiras da convenção. Ora o que é natural é o que é inteiramente natural, não
é metade, ou um quarto, ou um oitavo de natural. Muito bem. Ora, de duas
coisas, uma: ou o natural é realizável socialmente ou não é; em outras
palavras, ou a sociedade pode ser natural, ou a sociedade é essencialmente
ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma. Se a sociedade pode ser
natural, então pode haver a sociedade anarquista, ou livre, e deve haver,
porque é ela a sociedade inteiramente natural. Se a sociedade não pode ser
natural, se (por qualquer razão que não importa) tem por força que ser ficção,
então do mal o menos; façamo-la, dentro desse ficção inevitável, o mais natural
possível. Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é
ficção; a mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais natural,
que se sinta como mais natural? É aquela que estamos habituados. (Você compreende:
o que é natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em
tudo com o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do
instinto). Ora qual é a ficção social que constitui um hábito nosso? É o atual
sistema, o sistema burguês. Temos pois, em boa lógica, que ou achamos a
sociedade natural, e seremos defensores do anarquismo; ou não a julgamos
possível, e seremos defensores do regime burguês. Não há hipótese intermédia.
Percebeu?...”
— Sim, senhor; isso é
concludente.
— Ainda não é bem concludente...
Ainda há uma outra objeção, do meu gênero, a liquidar... Pode concordar-se que
o sistema anarquista é realizável, mas pode duvidar-se que ele seja realizável
de chofre — isto é, que se possa passar da sociedade burguesa para a sociedade
livre sem haver um ou mais estados ou regimes intermédios. Quem fizer essa
objeção aceita como boa, e como realizável, a sociedade anarquista; mas
palpita-lhe que tem que haver um estado qualquer de transição entre a sociedade
burguesa e ela.
“Ora muito bem. Suponhamos que
assim é. O que é esse estado intermédio? O nosso fim é a sociedade anarquista,
ou livre; esse intermédio só pode ser, portanto, um estado de preparação da
humanidade para a sociedade livre. Essa preparação ou é material, ou é
simplesmente mental; isto é, ou é uma série de realizações materiais ou sociais
que vão adaptando a humanidade à sociedade livre, ou é uma simples propaganda
gradualmente crescente e influente, que vai preparando mentalmente a desejá-la
ou aceitá-la.”
“Vamos ao primeiro caso, a
adaptação gradual e material da humanidade à sociedade livre. É impossível; é
mais que impossível: é absurdo. Não há adaptação material senão uma coisa que
já há. Nenhum de nós se pode adaptar materialmente ao meio social do século
XXIII, mesmo que saiba o que ele será; e não se pode adaptar materialmente
porque o século XXIII e o seu meio social não existem materialmente ainda.
Assim, chegamos à conclusão que, na passagem da sociedade burguesa para a
sociedade livre, a única parte que pode haver de adaptação, de evolução ou de
transição é mental, é a gradual adaptação dos espíritos à ideia da sociedade
livre... Em todo o caso, no campo da adaptação material, ainda há uma hipótese...”
— Irra com tanta hipótese!...
— Ó filho, o homem lúcido tem que
examinar todas as objeções possíveis e de as refutar, antes de se poder dizer
seguro da sua doutrina. E, de mais a mais, isto tudo é em resposta a uma
pergunta que você me fez...
— Está bem.
— No campo da adaptação material,
dizia eu, há em todo o caso um outra hipótese. É a da ditadura revolucionária.
— Da ditadura revolucionária
como?
— Como eu lhe expliquei, não pode
haver adaptação material a uma coisa que não existe, materialmente, ainda. Mas
se, por um movimento brusco, se fizer a revolução social, fica implantada já,
não a sociedade livre (porque para essa não pode a humanidade ter ainda
preparação), mas uma ditadura daqueles que querem implantar a sociedade livre.
Mas existe já, ainda que em esboço ou em começo, existe já materialmente qualquer
coisa da sociedade livre. Há já portanto uma coisa material, a que a humanidade
se adapte. É este o argumento com que as bestas que defendem a “ditadura do
proletariado” a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de pensar. O
argumento, é claro, não é deles: é meu. Ponho-o, como objeção, a mim mesmo. E,
como lhe vou mostrar... é falso.
“Um regime revolucionário,
enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é
materialmente só uma coisa — um regime revolucionário. Ora um regime
revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras,
um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposta à sociedade
por uma parte dela — aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O
que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única
coisa que ele é materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico,
adapta-se a um regime militar despótico. A ideia, que conduziu os
revolucionários, o fim, a que visaram, desapareceu por completo da realidade
social, que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que
sai de uma ditadura revolucionária — e tanto mais completamente sairá, quanto
mais tempo essa ditadura durar — é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial,
isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre
assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia
deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O Império Romano
e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e seu
despotismo militar. E você verá o que sai da Revolução Russa... Qualquer coisa
que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que
era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?...”
“Enfim, isto já está fora de
conversa... Você percebeu o meu argumento?”
— Percebi perfeitamente.
— Você compreende portanto que eu
cheguei a esta conclusão: Fim: a sociedade anarquista, a sociedade livre; meio:
a passagem, sem transição, da sociedade burguesa para a sociedade livre. Esta
passagem seria preparada e tornada possível por uma propaganda intensa,
completa, absorvente, de modo a predispor todos os espíritos e enfraquecer
todas as resistências. É claro que por “propaganda” não entendo só a pela
palavra escrita e falada: entendo tudo, ação indireta ou direta, quanto pode
predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda.
Assim, não tendo quase resistência nenhuma que vencer, a revolução social, quando
viesse, seria rápida, fácil, e não teria que estabelecer nenhuma ditadura
revolucionária, por não ter contra quem aplicá-la. Se isto não pode ser assim,
é que o anarquismo é irrealizável; e, se o anarquismo é irrealizável, só é
defensável e justa, como já lhe provei, a sociedade burguesa.”
“Ora aí tem você por que e como
eu me tornei anarquista, e por que e como rejeitei, como falsas e antinaturais,
as outras doutrinas sociais de menor ousadia.”
“E pronto... Vamos lá continuar a
minha história.”
Fez explodir um fósforo, e
acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e de aí a pouco prosseguiu.
Havia vários outros rapazes com
as mesmas opiniões que eu. A maioria era de operários, mas havia um ou outro
que o não era; o que todos éramos era pobres, e, que me lembre, não éramos
muito estúpidos. A gente tinha uma certa vontade de propaganda, de espalhar as
nossas ideias. Queríamos para nós e para os outros — para a humanidade inteira
— uma sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que fazem os homens
desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades, sofrimentos,
estreitezas, que a Natureza lhes não tinha imposto. Por mim, o que eu lia
confirmava-me nestas opiniões. Em livros libertários baratos — os que havia ao
tempo, e eram já bastantes — li quase tudo. Fui a conferências e comícios dos
propagandistas do tempo. Cada livro e cada discurso me convencia mais da
certeza e da justiça das minhas ideias. O que eu pensava então — repito-lhe,
meu amigo — é o que penso hoje, a única diferença é que então pensava-o só,
hoje penso-o e pratico-o.
— Pois sim; isso, até onde vai,
está muito bem. Está muito certo que você se tornasse anarquista assim, e vejo
perfeitamente que você era anarquista. Não preciso mais provas disso... como é
que saiu de aí sem contradição... Isto é, mais ou menos já calculo...
— Não, não calcula nada... Eu sei
o que você quer dizer... Você baseia-se nos argumentos que acaba de ouvir, e
julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como lhe disse, só
defensável e justa a sociedade burguesa — não é?...
— Sim, calculei que fosse mais ou
menos isso...
— Mas como o podia ser, se desde
o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que sou anarquista, que não
só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse tornado banqueiro e comerciante
pela razão que você julga, eu não era anarquista, era burguês.
— Sim, você tem razão... Mas
então como diabo?... Vá lá, vá dizendo...
— Como lhe disse, eu era (fui
sempre) mais ou menos lúcido, e também um homem de ação. Essas são qualidades
naturais; não mas puseram no berço (se é que tive berço), eu é que as levei
para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável ser anarquista
passivamente, só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos. Não: era
preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos
oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter ombros a isso,
conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil à causa
libertária. Pus-me a traçar o meu plano de ação.
“O que quer o anarquista?
Liberdade — a liberdade para si e para os outros, para a humanidade inteira.
Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais; quer ser
livre tal qual nasceu e pareceu no mundo, que é como em justiça deve ser; e
quer essa liberdade para si e para todos os mais. Nem todos podem ser iguais
perante a Natureza: uns nascem altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos;
uns mais inteligentes, outros menos... Mas todos podem ser iguais de aí em
diante; só as ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais é que era preciso
destruir.”
“Era preciso destruí-las... Mas
não me escapou uma coisa: era preciso destruí-las... mas em proveito da
liberdade, e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre. Porque isso de
destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou preparar o
caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais diferentes,
igualmente más porque igualmente ficções. Aqui é que era preciso cuidado. Era
preciso acertar com um processo de ação, qualquer que fosse a sua violência ou
a sua não-violência (porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo),
pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo,
estorvar a criação da liberdade futura; criando já mesmo, caso fosse possível,
alguma coisa da liberdade futura.
“É claro que esta liberdade, que
deve haver cuidado em não estorvar, é a liberdade futura e, no presente, a
liberdade dos oprimidos pelas ficções sociais. Claro está que não temos que
olhar a não estorvar a “liberdade” dos poderosos, dos bem situados, de todos
que representam as ficções sociais e têm vantagens delas. Essa não é liberdade;
é a liberdade de tiranizar, que é o contrário da liberdade. Essa pelo
contrário, é o que mais devíamos pensar em estorvar e em combater. Parece-me
que isto está claro...”
— Está claríssimo. Continue...
— Para quem quer o anarquismo a
liberdade? Para a humanidade inteira. Qual é a maneira de se conseguir a
liberdade para a humanidade inteira? Destruir por completo todas as ficções
sociais? Já lhe antecipei a explicação, quando, por causa da sua pergunta,
discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e por que era
anarquista... Você lembra-se da minha conclusão?...
— Lembro...
-... Uma revolução social súbita,
brusca, esmagadora, fazendo a sociedade passar, de um salto, do regime burguês
para a sociedade livre. Esta revolução social preparada por um trabalho intenso
e contínuo, de ação direta e indireta, tendente a dispor todos os espíritos
para a vinda da sociedade livre, e a enfraquecer até ao estado comatoso todas
as resistências da burguesia. Escuso de lhe repetir as razões que levam
inevitavelmente a esta conclusão, a dentro do anarquismo; já lhe expus e você
já a percebeu.
— Sim.
— Essa revolução seria
preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os pontos
importantes, do mundo; ou não sendo assim, partindo rapidamente de uns para
outros, mas em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e
completa.
“Muito bem. O que poderia eu
fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a ela, à revolução
mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao
país onde estava. O que podia era trabalhar, na inteira medida do meu esforço,
para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei como: combatendo,
por rodos os meios acessíveis, as ficções sociais; não estorvando nunca ao
fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem a liberdade futura,
nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo possível, qualquer
coisa da futura liberdade.”
Puxou fumo; fez uma leve pausa;
recomeçou.
— Ora aqui, meu amigo, pus eu a
minha lucidez em ação. Trabalhar para o futuro, está bem, pensei eu; trabalhar
para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu? Eu não sou ninguém?
Se eu fosse cristão, trabalhava alegre mente pelo futuro dos outros, porque lá
tinha a minha recompensa no céu; mas também, se eu fosse cristão, não era
anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não tinham importância
na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e lá seriam
compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e
perguntava-me: mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo? Mais ainda:
por que é que eu me vou sacrificar?
“Vieram-me momentos de descrença;
e você compreende que era justificada... Sou materialista, pensava eu; não
tenho mais vida que esta; para que hei de ralar-me com propagandas e
desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entreter-me
muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida, quem não crê na
vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao Estado
porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro
porque ele não é natural, porque cargas-d'água é que defende o altruísmo e o
sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício
também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não
nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre,
mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão
para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário, e
portanto exclusivamente egoísta.”
“Eu discuti a questão comigo
mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes à espécie
humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens. Mas a ideia
de “dever” era natural? De onde é que vinha esta ideia de “dever”? Se esta ideia
de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu
instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que divergia a
ação dessa ideia da ação de qualquer ficção social, que produz em nós
exatamente o mesmo efeito?”
“Esta ideia de dever, isto de
solidariedade humana; só podia considerar-se natural se trouxesse consigo uma
compensação egoísta, porque então, embora em princípio contrariasse o egoísmo
natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre, no fim de contas, o
não contrariava. Sacrificar um prazer, simplesmente sacrificá-lo, não é
natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro da Natureza: é,
entre duas coisas naturais que se não podem ter ambas, escolher uma, o que está
bem. Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a dedicação à causa
da sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a consciência de dever
cumprido, do esforço para um fim bom; e nenhuma destas coisas é uma compensação
egoísta, nenhuma destas coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é,
nascido de uma ficção social, como pode ser o prazer de ser imensamente rico,
ou o prazer de ter nascido em um boa posição social.”
“Confesso-lhe, meu velho, que me
vieram momentos de descrença... Senti-me desleal à minha própria doutrina,
traidor a ela... Mas em breve passei sobre tudo isto. A ideia de justiça cá
estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que havia um
dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante na minha
intenção.”
— Não me parece que essa decisão
revelasse uma grande lucidez da sua parte... Você não resolveu a dificuldade...
Você foi para diante por um impulso absolutamente sentimental...
— Sem dúvida. Mas o que lhe estou
contando agora é a história de como me tornei anarquista, e de como o continuei
sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as hesitações e as dificuldades
que tive, e como as venci. Concordo que, naquele momento, venci a dificuldade
lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. Mas você há de ver que, mais
tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista, esta
dificuldade, até então logicamente sem resposta, teve a sua solução completa e
absoluta.
— É curioso...
— É... Agora deixe-me continuar
na minha história. Tive esta dificuldade, e resolvi-a se bem que mal, como lhe
disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos, surgiu-me outra
dificuldade que também me atrapalhou bastante.
“Estava bem — vamos lá — que estivesse
disposto a sacrificar-me, sem recompensa nenhuma propriamente pessoal, isto é,
sem recompensa nenhuma verdadeiramente natural. Mas suponhamos que a sociedade
futura não dava em nada do que eu esperava, que nunca havia a sociedade livre,
e que diabo é que eu, nesse case, me estava sacrificando? Sacrificar-me a uma ideia
sem recompensa pessoal, sem eu ganhar nada com o meu esforço por essa ideia,
vá; mas sacrificar-me sem ao menos ter a certeza de que aquilo para que eu
trabalhava, existiria um dia, sem que a própria ideia ganhasse com o meu
esforço — isso era um pouco mais forte... Desde já lhe digo que resolvi a
dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra; mas
advirto-o também que, do mesmo modo que a outra, resolvi esta pela lógica,
automaticamente, quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu anarquismo...
Você depois verá... Na altura do que lhe estou contando, saí-me do apuro com
uma ou duas frases ocas. “Eu fazia o meu dever para com o futuro; o futuro que
fizesse o seu para comigo”... Isto, ou coisa que o valha...”
“Expus esta conclusão, ou, antes
estas conclusões, aos meus camaradas, e eles concordaram todos comigo
concordaram todos que era preciso ir para a frente e fazer tudo pela sociedade
livre. É a verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram um pouco
abalados com a exposição, não porque não concordassem, mas porque nunca tinham
visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas têm... Mas enfim,
concordaram todos... Iríamos todos trabalhar pela grande revolução social, pela
sociedade livre, quer o futuro nos justificasse, quer não! Formamos um grupo,
entre gente certa, e começamos uma grande propaganda — grande, é claro, dentro
dos limites do que podíamos fazer. Durante bastante tempo, no meio de
dificuldades, embrulhadas, e por vezes perseguições, lá fomos trabalhando pelo
ideal anarquista.”
O banqueiro, chegado aqui, fez
uma pausa um pouco mais longa. Não acendeu o charuto, que estava outra vez
apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar de quem chega ao ponto
importante, fitou-me com mais insistência e prosseguiu, clarificando mais a voz
e acentuando mais as palavras.
— Nesta altura, disse ele,
apareceu uma coisa nova. “Nesta altura” é modo de dizer. Quero dizer que,
depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova
complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a
valer...
“Você recorda-se, não é verdade?
Daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia ser o
processo de ação dos anarquistas... Um processo, ou processos, quaisquer pelo
qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo,
estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa
nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um
processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...”
“Pois bem: uma vez assente este
critério, nunca mais deixei de o ter presente... Ora, na altura da nossa
propaganda em que estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda — não
éramos muitos; éramos quarenta, salvo erro — dava-se este caso: criava-se
tirana.”
— Criava-se tirania?... Criava-se
tirania como?
— Da seguinte maneira... Uns
mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e
obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por
artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em coisas graves;
mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o fato é que isto
acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos relacionados com
a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam
insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram
chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No fato mais simples isto
se via. Por exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao
fim da rua, e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um
tinha conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia
para o outro, “venha você comigo por aqui”; o outro respondia, e era verdade,
“Homem, não posso; tenho que ir por ali” por esta ou aquela razão... Mas
afinal, contra sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a
esquerda... Isto era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência,
uma terceira vez por um outro motivo qualquer... Isto é, nunca era por uma
razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa
de espontâneo, de como que instintivo... E como neste caso simples, em todos os
outros casos; desde os menos até aos mais importantes... Você vê bem o caso?
— Vejo. Mas que diabos há de
estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural...
— Será. Já vamos a isso. O que
lhe peço que note é que é exatamente o contrário da doutrina anarquista. Repare
bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo sem influência nem
importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão
grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se passava num
grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim
anarquista — isto é, para combate, tanto quando possível, as ficções sociais, e
criar, tanto quando possível, a liberdade futura. Você reparou bem nestes dois
pontos?
— Reparei.
— Veja agora bem o que isto
representa... Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era
sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da
liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de positivo e
concreto — a criação entre si de tirania. E repare que tirania... Não era uma
tirania derivada da ação das ficções sociais, que, embora lamentável, seria
desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos essas
ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade
baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de
todo fugir à sua ação. Mas não era isso. Os que mandavam nos outros, ou os
levavam para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da
posição social, ou de qualquer autoridade de natureza fictícia, que se
arrogassem; faziam-no por uma ação de qualquer espécie fora das ficções
sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente
essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por cima, tirania
exercida entre si por gente cujo intuído sincero não era senão destruir tirania
e criar liberdade.
“Agora ponha o caso num grupo
muito maior, muito mais influente, tratando já de questões importantes e de
decisões de caráter fundamental. Ponha esse grupo a encaminha os seus esforços,
como o nosso, para a formação de um sociedade livre. E agora diga-me se através
desse carregamento de tiranias entrecruzadas você entrevê qualquer sociedade
futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um humanidade digna de si
própria...”
— Sim: isso é muito curioso...
— É curioso, não é?... E olhe que
há pontos secundários também muito curiosos... Por exemplo: a tirania do
auxílio...
— A quê?
— A tirania do auxílio. Havia
entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros,
pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contrário, não é
verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do mesmo modo ir
contra os princípios anarquistas.
— Essa é boa? Em quê?
— Auxiliar alguém, meu amigo, é
tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou
supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo.
Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos
inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou
incapaz de liberdade.
“Voltemos ao nosso caso... Você vê
bem que este ponto era gravíssimo. Vá que trabalhássemos pela sociedade futura
sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscando-nos, mesmo, a que ela
nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era demais era estarmos trabalhando para
um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo, mais que criar tirania, e
não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por nós, os oprimidos, uns
sobre os outros. Ora isto é que não pode ser...”
“Pus-me a pensar. Aqui havia um
erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas
pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que deveriam
ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em doido.
Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a solução. Foi
o grande dia das minhas teorias anarquistas; o dia em que descobri, por assim
dizer, a técnica do anarquismo.”
Olhou-me um momento sem me olhar.
Depois continuou, no mesmo tom.
— Pensei assim... Temos aqui uma
tirania nova, uma tirania que não é derivada das ficções sociais. Então de onde
é que ela derivada? Será derivada das qualidades naturais? Se é, adeus
sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação apenas as qualidades
naturais dos homens — aquelas qualidades com que eles nascem, que devem só à
Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum —, se uma sociedade onde
estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias, quem é
que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa sociedade?
Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que estamos
habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma tirania
nova, e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente
da Natureza — o não haver revolta possível contra ela, como não há revolução
contra ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido
alto. Mesmo, eu já lhe provei que, se por qualquer razão não é realizável a
sociedade anarquista, então deve existir, por ser mais natural que qualquer
outra salvo aquela, a sociedade burguesa.
“Mas seria esta tirania, que
nascia assim entre nós, realmente derivada das qualidades naturais? Ora o que
são as qualidades naturais? São o grau de inteligência, de imaginação, de
vontade, etc., com que cada um nasce — isto no campo mental, é claro, porque as
qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um tipo que, sem ser por
uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força que o faz por
lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o pelo emprego
das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver: esse emprego das
qualidades naturais será legítimos, isto é, será natural?”
“Ora qual é o emprego natural das
nossas qualidades naturais? O servir os fins naturais da nossa personalidade.
Ora dominar alguém será um fim natural da nossa personalidade? Pode sê-lo; há
um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém está para nós num lugar de
inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está num lugar de inimigo, é qualquer
representante das ficções sociais e da sua tirania; mais ninguém, porque todos
os outros homens são homens como ele e camaradas naturais. Ora, você bem vê, o
caso da tirania, que tínhamos estado criando, era exercida sobre homens como
nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas vezes nossos
camaradas, porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal. Conclusão: esta
nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não era derivada
das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma perversão,
das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?”
“Tinha que provir de uma de duas coisas:
ou de o homem ser naturalmente mau, e portanto todas as qualidades naturais
serem naturalmente pervertidas; ou de uma perversão resultante da longa
permanência da humanidade numa atmosfera de ficções sociais, todas elas
criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já instintivamente
tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora, destas duas
hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório — isto é,
rigorosamente lógico ou científico — era impossível determinar. O raciocínio
não pode entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou científica,
e depende do conhecimento de fatos. Por seu lado, a ciência também nos não
ajuda, porque, por mais longe que recuemos na história, encontramos sempre o
homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social, e portanto sempre num
estado que nos não permite averiguar como é o homem quando vive em
circunstâncias pura e inteiramente naturais. Não havendo maneira de determinar
ao certo, temos que pender para o lado da maior probabilidade; e a maior
probabilidade está na segunda hipótese. É mais natural supor que a longuíssima
permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada
homem nascer já com as suas qualidade naturais pervertidas no sentido de
tiranizar, do que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente
pervertidas, o que, de certo modo, representa una contradição. Por isso o
pensador decide-se, como eu me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela
segunda hipótese.”
“Temos, pois, que uma coisa é
evidente... No estado social presente não é possível um grupo de homens, por
bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos só em
combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem juntos
sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma tirania
nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo quanto
querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o próprio
intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É
trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.”
— Separados?
— Sim. Você não seguiu o meu
argumento?
— Segui.
— E não acha lógica, não acha
fatal esta conclusão?
— Acho, sim, claro... Disse eu:
trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados. Trabalharmos todos para o
mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu esforço para a destruição das
ficções sociais, que é para onde o dirige, e para a criação da sociedade livre
do futuro; e trabalhando separados não podemos, de modo nenhum, criar tirania
nova, porque nenhum tem ação sobre o outro, e não pode portanto, nem,
dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem, auxiliando-o, apagar-lha.
“Trabalhando assim separados e
para o mesmo fim anarquista, temos as duas vontades — a do esforço, e a da não
criação de tirania nova. Continuamos unidos, porque o estamos moralmente e
trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim; continuamos anarquistas, porque
cada um trabalha para a sociedade livre; mas deixamos de ser traidores,
voluntários ou involuntários, à nossa coisa, deixamos mesmo de poder sê-lo,
porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora da influência
deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as qualidades
que a Natureza deu.”
“É claro que toda esta tática se
aplica ao que eu chamei de período de preparação para a revolução social.
Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade inteira ao estado de
aceitação das doutrinas anarquistas, faltando só fazer a revolução social,
então, para o golpe final, é que não pode continuar a ação separada. Mas nessa
altura, já a sociedade livre estará virtualmente chagada; já as coisas serão de
outra maneira. A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em
meio da sociedade burguesa, como agora, como no grupo a que eu pertencia.”
“Era esse — até que enfim! — o
verdadeiro processo anarquista. Juntos, nada valíamos, que importasse, e, ainda
por cima, nos tiranizávamos, e nos estorvávamos uns aos outros e às nossas
teorias. Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao menos não estorvávamos
a liberdade, não criávamos tirania nova; o que conseguíamos, pouco que fosse,
era realmente conseguido, sem desvantagem nem perda. E, de mais a mais, trabalhávamos
assim separados, aprendíamos a confiar mais em nós mesmos, a não nos
encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais livres já, a prepararmo-nos,
tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso exemplo, para o futuro.”
“Fiquei radiante com essa descoberta.
Fui logo expô-la aos meus camaradas... Foi uma das poucas vezes em que fui
estúpido na minha vida. Imagine você que eu estava tão cheio da minha
descoberta que esperava que eles concordassem...”
— Não concordaram, é claro...
— Repontaram, meu amigo,
repontaram todos! Uns mais, outros menos, tudo protestou!... Não era isso!...
Isso não podia ser!... Mas ninguém dizia o que era ou o que é que havia de ser.
Argumentei e argumentei, e, em resposta aos meus argumentos, não obtive senão
frases, lixo coisas como essas que os ministros respondem nas câmaras quando
não têm resposta nenhuma... Então é que eu vi com que bestas e com que
covardões estava metido! Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para
escravos. Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade, logo que
fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhe fosse dada como um rei dá um
título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios!
— E você, escamou-se?
— Se me escamei! Enfureci-me!
Pus-me aos coices. Dei por paus e por pedras. Quase que me peguei com dois ou
três deles. E acabei por me vir embora. Isolei-me. Veio-me um nojo àquela
carneirada toda, que você não imagina! Quase que descri no anarquismo. Quase
que decidi não me importar mais com tudo aquilo. Mas, passados uns dias, voltei
a mim. Pensei que o ideal anarquista estava acima destas quizilas. Eles não
queriam só brincar aos libertários? Não estava eu para brincar num caso desses.
Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros, e criando,
entre si, um simulacro novo da tirania que diziam querer combater? Pois que o
fizessem, os parvos, se não serviam para mais. Eu é que não ia ser burguês por
tão pouco.
“Estava estabelecido que, no
verdadeiro anarquismo, cada um tem que, por sua própria forças, criar liberdade
e combater as ficções sociais. Pois por minha própria forças eu ia criar
liberdade e combater as ficções sociais. Ninguém queria seguir-me no verdadeiro
caminho anarquista? Seguiria eu por ele. Iria eu só, com os meus recursos, com
a minha fé, desacompanhado até do apoio mental dos que tinham sido meus
camaradas, contra as ficções sociais inteiras. Não digo que fosse um belo
gesto, nem um gesto heroico. Foi simplesmente um gesto natural. Se o caminho
tinha que ser seguido por cada um separadamente, eu não precisava de mais
ninguém para o seguir. Bastava o meu ideal. Foi baseado nestes princípios e
nestas circunstâncias que decidi, por mim só, combater as ficções sociais.”
Suspendeu um pouco o discurso,
que se lhe tornara quente e fluido. Retomou-o de ali a pouco, com a voz já mais
sossegada.
— É um estado de guerra, pensei
eu, entre mim e as ficções sociais. Muito bem. O que posso eu fazer contra as
ficções sociais? Trabalho sozinho, para não poder, de modo nenhum, criar
qualquer tirania. Como posso eu colaborar sozinho na preparação da revolução
social, na preparação da humanidade para a sociedade livre? Tenho que escolher
um de dois processos, dos dois processos que há; caso, é claro, não possa
servir-me de ambos. Os dois processos, são a ação indireta, isto é, a
propaganda, e a ação direta, de qualquer espécie.
“Pensei primeiro na ação
indireta, isto é, na propaganda. Que propaganda poderia eu fazer só por mim? À
parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em conversa, com este ou
aquele, ao acaso e servindo-nos de todas as oportunidades, o que eu queria
saber era se a ação indireta era um caminho por onde eu pudesse encaminhar a
minha atividade de anarquista energicamente, isto é, de modo a produzir
resultados sensíveis. Vi logo que não podia ser. Não sou orador e não sou
escritor. Quero dizer, sou capaz de falar em público, se for preciso, e sou
capaz de escrever um artigo de jornal; mas o que eu queria averiguar era se o
meu feitio natural indicava que, especializando-me na ação indireta, de
qualquer das duas espécies ou em ambas, eu poderia obter resultados mais
positivos para a ideia anarquista que especializando os meus esforços em
qualquer outro sentido. Ora a ação é sempre mais proveitosa que a propaganda,
exceto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como
propagandistas — os grandes oradores, capazes de eletrizar multidões e
arrastá-las atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de fascinar e
convencer com os seus livros. Não me parece que eu seja muito vaidoso, mas, se
o sou, não me dá, pelo menos, para me envaidecer daquelas qualidades que não
tenho. E, como lhe disse, nunca me deu para me julgar orador ou escritor. Por
isso abandonei a ideia da ação indireta como caminho a dar à minha atividade
anarquista. Por exclusão de partes, era forçado a escolher a ação direta, isto
é, o esforço aplicado à prática da vida, à vida real. Não era a inteligência,
mas a ação. Muito bem. Assim seria.”
“Tinha eu pois que aplicar à vida
prática o processo fundamental de ação anarquista que eu já tinha esclarecido —
combater as ficções sociais sem criar tirania nova, criando já, caso fosse
possível, qualquer coisa da liberdade futura. Ora como diabo se faz isso na
prática?”
“Ora o que é combater na prática?
Combater na prática é a guerra, é uma guerra, pelo menos. Como é que se faz
guerra às ficções sociais? Antes de mais nada, como é que se faz guerra? Como é
que se vence o inimigo em qualquer guerra? De uma de duas maneiras: ou
matando-o isto é, destruindo-o; ou aprisionando-o, isto é, subjugando-o,
reduzindo-o à inatividade. Destruir as ficções sociais não podia eu fazer;
destruir as ficções sociais só o podia fazer a revolução social. Até ali, as
ficções sociais podiam estar abaladas, cambaleando, por um fio; mas destruídas,
só o estariam com a vinda da sociedade livre e a queda positiva da sociedade
burguesa. O mais que eu poderia fazer nesse sentido era destruir — destruir no
sentido físico de matar — um ou outro membro da classes representativas da
sociedade burguesa. Estudei o caso, e vi que era asneira. Suponha você que eu
matava um ou dois, ou uma dúzia de representante da tirania das ficções sociais...
O resultado? As ficções sociais ficariam abaladas? Não ficariam. As ficções
sociais não são como um situação política que pode depender de um pequeno
número de homens, de um só homem por vezes. O que há de mau nas ficções sociais
são elas, no seu conjunto, e não os indivíduos que as representam senão por
serem representantes delas. Depois, um atentado de ordem social produz sempre
uma reação; não só tudo fica na mesma, mas, as mais das vezes, piora. E, ainda
por cima, suponha, como é natural, que, depois de um atentado, eu era caçado;
era caçado e liquidado, de uma maneira ou outra. E suponha que eu tinha dado
cabo de uma dúzia de capitalistas. Em que vinha isso tudo dar, e resumo? Com a
minha liquidação, ainda que não por morte, mas por simples prisão ou degredo, a
causa anarquista pedia um elemento de combate; e os doze capitalistas, que eu
teria estendido, não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha
perdido, porque os elementos componentes da sociedade burguesa não são
elementos de combate, mas elementos puramente passivos, pois o `combate' está,
não nos membros da sociedade burguesa, mas no conjunto de ficções sociais, em
que essa sociedade assenta. Ora as ficções sociais não são gente, em quem se
possa dar tiros... Você compreende bem? Não era como o soldado de um exército
que mata doze soldados de um exército contrário; era como um soldado que mata
doze civis da nação do outro exército. É matar estupidamente, porque não se
elimina combatente nenhum... Eu não podia portanto pensar em destruir, nem no
todo nem em nenhuma parte, ficções sociais. Tinha então que subjugá-las, que
vencê-las subjugando-as, reduzindo-as à inatividade.”
Apontou para mim o indicador
direito súbito.
— Foi o que eu fiz!
Retirou logo o gesto, e
continuou.
— Procurei ver qual era a
primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria a essa que me cumpria,
mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à inatividade. A mais
importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro. Como subjugar o dinheiro,
ou, em palavras mais precisas, a força, ou a tirania do dinheiro? Tornando-me
livre da sua influência, da sua força, superior portanto à influência,
reduzindo-o à inatividade pelo que me dizia respeito a mim. Pelo que me dizia
respeito a mim, compreende você? porque eu é que o combatia; se fosse reduzi-lo
à inatividade pelo que respeita a toda a gente, isso não seria já subjugá-lo,
mas destruí-lo, porque seria acabar de todo com a ficção do dinheiro. Ora eu já
lhe provei que qualquer ficção social só pode ser “destruída” pela revolução
social, arrastada com as outras na queda da sociedade burguesa.
“Como podia eu tornar-me superior
à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me da esfera da sua
influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer raízes e beber água
das nascentes; andar nu e viver como animal. Mas isto, mesmo que não houvesse
dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era mesmo
combater: era fugir. Realmente, quem se esquiva a travar um combate não é
derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não se bateu. O processo
tinha que ser outro — um processo de combate e não de fuga. Como subjugar o
dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando
o seu encontro? O processo era só um — adquiri-lo, adquiri-lo em quantidades
bastante para lhe não sentir a influência; e enquanto mais
quantidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência. Foi
quando vi isto claramente, com toda a força da minha convicção de anarquista, e
toda a minha lógica de homem lúcido, que entrei na fase atual — a comercial e
bancária, meu amigo — do meu anarquismo.”
Descansou um momento da
violência, novamente crescente, do seu entusiasmo pela sua exposição. Depois
continuou, ainda com um certo calor, a sua narrativa.
— Ora você lembrasse daquelas
duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me haviam surgido na princípio
da minha carreira de anarquista consciente?... E você lembra-se de eu lhe dizer
que naquela altura as resolvi artificialmente pelo sentimento e não pela
lógica? Isto é, você mesmo notou e muito bem, que eu não as tinha resolvido
pela lógica...
— Lembro-me, sim...
— E você lembra-se de eu lhe
dizer que mais tarde, quando acertei por fim com o verdadeiro processo
anarquista, as resolvi então de vez, isto é, pela lógica?
— Sim.
— Ora veja como ficaram
resolvidas... As dificuldades eram estas: não é natural trabalhar por qualquer
coisa, seja o que for, sem uma compensação natural, isto é, egoísta; e não é
natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que
esse fim se atinge. As duas dificuldades eram estas; ora repare como ficam
resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a
descobrir como sendo o único verdadeiro... O processo dá em resultado eu
enriquecer; portanto, compensação egoísta. O processo visa ao conseguimento da
liberdade; ora eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é,
libertando-me dela, consigo liberdade. Consigo liberdade só para mim, é certo;
mas é que como já lhe provei, a liberdade para todos só pode vir com a
destruição das ficções sociais, pela revolução social. O ponto concreto é este:
viso liberdade, consigo liberdade: consigo a liberdade que posso... E veja você:
à parte o raciocínio que determina este processo anarquista como o único
verdadeiro, o fato que ele resolve automaticamente as dificuldades lógicas, que
se podem opor a qualquer processo anarquista, mais prova que ele é o
verdadeiro.
“Pois foi este o processo que eu
segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo.
Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande, mas consegui. Escuso
de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária.
Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas já não pertence ao
assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei
mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei o processo — confesso-lhe,
meu amigo, que não olhei o processo; empreguei tudo quanto há — o
açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal. O quê?!
Eu combatia as ficções sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia
de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e havia de olhar as armas
com que combatia a tirania?! O anarquista estúpido, que atira bombas e dá
tiros, bem sabe que mata, e bem sabe que as suas doutrinas não incluem a pena
de morte. Ataca uma imoralidade com um crime, porque acha que essa imoralidade
pede um crime para se destruir. Ele é estúpido quanto ao processo, porque, como
já lhe mostrei, esse processo é errado e contraproducente como processo
anarquista; agora quanto à moral do processo ele é inteligente. Ora o meu
processo estava certo, e eu servia-me legitimamente, como anarquista, de todos
os meios para enriquecer. Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático
e lúcido. Sou livre. Faço o que quero, dentro, é claro, do que é possível
fazer. O meu lema de anarquista era a liberdade; pois bem, tenho a liberdade, a
liberdade que, por enquanto, na nossa sociedade imperfeita, é possível ter.
Quis combater as forças sociais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.”
— Alto lá! Alto lá! disse eu.
Isso estará tudo muito bem, mas há uma coisa que Você não viu. As condições do
seu processo eram, como você provou, não só criar liberdade, mas também não
criar tirania. Ora você criou tirania você como açambarcador, como banqueiro,
como financeiro sem escrúpulos — você desculpe, mas você é que disse —, você
criou tirania. você criou tanta tirania como qualquer outro representante das
ficções sociais, que você diz que combate.
— Não, meu velho, você engana-se.
Eu não criei tirania. A tirania, que pode ter resultado da minha ação de
combate contra as ficções sociais, é uma tirania que não parte de mim, que
portanto eu não criei; está nas ficções sociais, eu não ajuntei a elas. Essa
tirania é a própria tirania das ficções sociais; e eu não podia, nem me propus,
destruir as ficções sociais. Pela centésima vez lhe repito: só a revolução
social pode destruir as ficções sociais; antes disso, a ação anarquista
perfeita, como a minha, só pode subjugar as ficções sociais, subjugá-las em
relação só ao anarquista que põe esse processo em prática, porque esse processo
não permite uma mais larga sujeição dessas ficções. Não é de não criar tirania
que se trata: é de não criar tirania nova, tirania onde não estava. Os
anarquistas, trabalhando em conjunto, influenciando-se uns aos outros como eu
lhe disse, criam entre si, fora e à parte das ficções sociais, uma tirania;
essa é que é uma tirania nova. Essa, eu não a criei. Não a podia mesmo criar,
pelas próprias condições do meu processo. Não, meu amigo; eu só criei
liberdade. Libertei um. Libertei-me a mim. É que o meu processo, que é, como
lhe provei, o único verdadeiro processo anarquista, me não permitiu libertar
mais. O que pude libertar, libertei.
— Está bem... Concordo... Mas
olhe que, por esse argumento, a gente quase que é levado a crer que nenhum
representante das ficções sociais exerce a tirania...
— E não exerce. A tirania é das
ficções sociais e não dos homens que as encarnam; esses são, por assim dizer,
os meios de que as ficções se servem para tiranizar, como a faca é o meio que
se pode servir o assassino. E você decerto não julga que abolindo as facas
abole os assassinos... Olhe... Destrua você todos os capitalistas do mundo, mas
sem destruir o capital... No dia seguinte o capital, já nas mãos de outros,
continuará, por meio desses, a sua tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o
capital; quantos capitalistas ficam?... Vê?...
— Sim; você tem razão.
— Ó filho, o máximo, o máximo, o
máximo que você me pode acusar de fazer é de aumentar um pouco — muito muito
pouco — a tirania das ficções sociais. O argumento é absurdo, porque como já
lhe disse, a tirania que eu não devia criar, e não criei, é outra. Mas tem mais
um ponto fraco: é que, pelo mesmo raciocínio, você pode acusar um general, que
trava combate pelo seu país, de causar ao seu país o prejuízo do número de
homens do seu próprio exército que teve que sacrificar para vencer. Quem vai à
guerra, dá e leva. Consiga-se o principal; o resto...
— Está muito bem... Mas olhe lá
outra coisa... O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si, mas
também para os outros... Parece-me que quer a liberdade para a humanidade
inteira...
— Sem dúvida. Mas eu já lhe disse
que, pelo processo que descobri que era o único processo anarquista, cada um
tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim; fiz o meu dever
simultaneamente pra comigo e para com a liberdade. Por que é que os outros, os
meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que teria sido o
crime, se os tivesse impedido. Mas eu nem sequer os impedi ocultando-lhes o
verdadeiro processo anarquista; logo que descobri o processo, disse-o
claramente a todos. O próprio processo me impedia de fazer mais. Que mais podia
fazer? Compeli-los a seguir o caminho? Mesmo que o pudesse fazer, não o faria,
porque seria tirar-lhes a liberdade, e isso era contra os meus princípios
anarquistas. Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca
ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é
também contra os meus princípios. Você o que me está censurando é eu não ser
mais gente que uma pessoa só. Por que me censura o cumprimento do meu dever de libertar,
até onde eu o podia cumprir? Por que não os censura antes a eles por não terem
cumprido o deles?
— Pois sim, homem. Mas esses
homens não fizeram o que você fez, naturalmente, porque eram menos inteligentes
que você, ou menos fortes de vontade, ou...
— Ah, meu amigo: essas são já as
desigualdades naturais, e não sociais... Com essas é que o anarquismo não tem
nada. O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é com ele e com a
Natureza; as próprias ficções sociais não põem p'raí nem prego nem estopa. Há
qualidade naturais, como eu já lhe disse, que se pode presumir que sejam
pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais; mas a
perversão não está no grau da qualidade, que é absolutamente dado pela
Natureza, mas na aplicação da qualidade. Ora uma questão de estupidez ou de
falta de vontade não tem que ver com a aplicação dessas qualidade, mas só com o
grau delas. Por isso lhe digo: essas são já absolutamente as desigualdades
naturais, e sobre essas ninguém tem poder nenhum, nem há modificação social que
a modifique, como não me pode tornar a mim alto ou a você baixo...
“A não ser... A não ser que, no
caso desses tipos, a perversão hereditária das qualidades naturais vá tão longe
que atinja o próprio fundo do temperamento... Sim, que um tipo nasça para
escravo, nasça naturalmente escravo, e portanto incapaz de qualquer esforço no
sentido de se libertar... Mas nesse caso... nesse caso... que têm eles que ver
com a sociedade livre, ou com a liberdade?... Se um homem nasceu para escravo,
a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania”
Houve uma pequena pausa. De
repente ria alto.
— Realmente, disse eu, você é
anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido,
compara o que você é com o que são os anarquistas que p'raí há...
— Meu amigo, eu já lho disse, já
lho provei, e agora repito-lho... A diferença é só esta: eles são anarquistas
só teóricos, eu sou teórico e prático; eles são anarquistas místicos, e eu
científico; eles são anarquistas que se agacham, eu sou um anarquista que
combate e liberta... Em uma palavra: eles são pseudoanarquistas, e eu sou
anarquista.
E levantamo-nos da mesa
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